A
aposta de Bolsonaro contra a acusação por tentativa de golpe
A
Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) começou a analisar nesta
terça-feira (25/3) se aceita ou não a denúncia que acusa Jair Bolsonaro (PL) e seus
principais aliados de tramar um suposto golpe de Estado em 2022. Acompanhe aqui em ao vivo o julgamento.
Se o
tribunal aceitar, Bolsonaro e outros acusados se tornarão réus e vão a
julgamento pela mesma Primeira Turma do Supremo, formada por Alexandre de
Moraes, Carmen Lúcia, Luiz Fux, Flávio Dino e Cristiano Zanin (presidente da
turma).
Bolsonaro
foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) pelos crimes de
liderar organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado
Democrático de Direito e golpe de Estado, além de crimes ligados aos ataques às
sedes dos Poderes em Brasília em 8 de Janeiro de 2023.
O
ex-presidente nega todas acusações e sua defesa tem uma grande aposta: quer que
seja retirado da denúncia o acordo de delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-braço direito de
Bolsonaro, que consideram inválido.
O
argumento da defesa, entre outros, é que Cid foi coagido a colaborar. A PGR e a
defesa de Cid reiteram que foi tudo feito conforme a lei.
Um dos
que também dizem que Cid foi "coagido" é o ex-ministro e general da
reserva Walter Braga Netto, também parte do "núcleo crucial", segundo
a denúncia da PGR.
Braga
Netto foi acusado pelo ex-ajudante de ordem, entre outras coisas, de levantar
dinheiro para operacionalizar um suposto plano para matar Lula em 2022.
Os
questionamentos reacenderam o debate sobre o instituto da delação premiada, que
é quando um investigado fecha um acordo para colaborar com as autoridades em
troca de uma punição menor.
A
modalidade ficou popular durante a operação Lava Jato (2014-2021),
que apurou um esquema de corrupção na Petrobras e em outras obras públicas e
atingiu políticos dos principais partidos como o PT, o PP, o PSDB, além de
empresários das maiores empreiteiras do país.
A
investigação levou o então ex-presidente Lula à cadeia até que o Supremo
Tribunal Federal, anos depois, acabou por derrubar as sentenças consideradas
pela corte como inválidas.
Na
época da Lava Jato, as delações eram bombardeadas por críticos que afirmavam
que elas estavam sendo obtidas sob coerção pelo então juiz Sergio Moro.
O
principal argumento era de que prisões seriam feitas apenas para forçar uma
futura colaboração.
Os
mesmos críticos afirmavam que condenações não poderiam ser baseadas unicamente
em colaborações premiadas.
Agora,
parte destas mesmas questões voltam à tona.
Em vez
dos petistas, dessa vez são os bolsonaristas, que costumavam ser entusiastas da
Lava Jato, que criticam a delação de Cid e também o
ministro relator caso no Supremo, Alexandre de Moraes, que consideram parcial.
"O
surpreendente é que eu tenha que pedir a anulação", afirmou Celso Vilardi,
o advogado que defende Bolsonaro, à GloboNews, logo após a denúncia ser
apresentada.
"Cadê
os juristas, cadê os advogados que criticaram a Lava Jato? Qual é o recado que
nós vamos passar para o país admitindo uma delação como essa?", questionou
ele.
A BBC
News Brasil buscou juristas, incluindo críticos da Lava Jato, que defendem ou
são contrários ao instituto da delação premiada, para analisar tanto a denúncia
contra Bolsonaro, como o peso da delação de Mauro Cid no conjunto das acusações
contra o ex-presidente.
Os
juristas também avaliaram as críticas apontadas na colaboração. Entenda a
seguir.
- Os pilares da
denúncia e o peso da delação de Cid
Ao
todo, a PGR denunciou 34 pessoas, dentre elas o ex–presidente Jair Bolsonaro
(PL), por envolvimento em uma suposta trama golpista.
O texto
das denúncias, distribuídas em cinco peças separadas para facilitar a
tramitação, é praticamente o mesmo para todos os envolvidos — o que varia são
detalhes atribuídos a cada um, de acordo com seu suposto papel na organização
criminosa descrita pela PGR.
As
acusações são baseadas em relatórios de investigação da Polícia Federal e
contêm a delação de Mauro Cid, mas também depoimentos dos chefes das Forças
Armadas e integrantes da Polícia Rodoviária Federal e um compilado de ações e
discursos públicos de Bolsonaro.
As
denúncias apresentam ainda como supostas provas um amplo conjunto de troca de
mensagens entre os acusados, por WhatsApp e e-mails, e registros de suas
localizações e movimentações.
O
material também apresenta o rastreio da impressão de documentos considerados
comprometedores nos palácios presidenciais, entre eles uma minuta que
supostamente seria usada para suspender o estado democrático de direito e um
suposto plano para matar Lula e outras autoridades.
Em sua
delação, Cid implica Bolsonaro em alguns pontos principais, se considerado
somente a acusação de ter participado de uma suposta trama golpista:
1 - diz
que seu ex-chefe alimentava o plano de ficar no poder, mesmo após ter perdido a
eleição, e que editou o texto de uma minuta de decreto que declarava
"estado de defesa" no país visando interromper a passagem da
presidência para Lula
2- diz
que Bolsonaro ele mesmo apresentou essa minuta aos chefes militares
3 -
afirma ainda que Bolsonaro animou a permanência de apoiadores diante de
quartéis como meio de pressionar os militares a aderir os seus planos
A
reunião de Bolsonaro com os chefes militares mencionada por Cid foi corroborada
pelos depoimentos do general Marco Antônio Freire Gomes (Exército) e do
brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior (Aeronáutica).
Em mais
de um encontro com o ex-presidente, ambos disseram que se negaram a apoiar o
suposto plano de ruptura democrática proposto por Bolsonaro, que lhes teria
apresentado a minuta mencionada por Cid.
Além
disso, o próprio Bolsonaro também já falou publicamente da existência da
minuta, em um comício na avenida Paulista, em São Paulo, em fevereiro de 2024.
"Agora, o golpe é porque tem uma minuta de um decreto de estado de defesa.
Golpe usando a Constituição? Tenha a santa paciência."
Para
Mauricio Dieter, advogado criminalista e professor da Universidade de São Paulo
(USP), a delação de Cid não é determinante na denúncia.
De
acordo com Dieter, que é um crítico de colaborações premiadas, mesmo que toda
prova em consequência da delação de Cid fosse anulada, as acusações da PGR
ainda parariam de pé.
"Eles
não precisavam da delação para essa denúncia. A PF descobriu sozinha o plano
dos kids pretos", afirma.
Os
mencionados "kids pretos" são um grupo de militares especialistas em
operações especiais, do qual Cid fazia parte, assim como outros investigados
neste caso.
Segundo
o relatório da PF, alguns kids pretos faziam parte do plano "Punhal Verde
e Amarelo", que visaria matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), além do ministro Alexandre de Moraes.
O
advogado criminalista Leonardo Yarochewsky, professor e doutor em ciências
penais, também defende que a denúncia se sustentaria sem a delação de Mauro
Cid.
"A
delação não é o elemento mais importante", afirma. "As provas são
robustas no sentido de que houve uma tentativa de golpe e de abolição do estado
democrático de direito."
Mas
para Lenio Streck, jurista e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos), é difícil dizer se a denúncia se sustentaria sem os elementos
apontados na delação de Cid. "Teria que fazer uma lipoaspiração na
denúncia", brinca ele, sobre a necessidade de destrinchar o documento.
Ele
ressalta, no entanto, que mesmo que a delação seja anulada —- algo que ele
considera muito difícil de acontecer —- as provas encontradas e os depoimentos
dos chefes militares seriam mantidos.
"Os
documentos que foram encontrados são válidos, foram recolhidos por ordem
judicial", afirma. "A delação é um meio de obtenção de prova, então
[com uma eventual anulação da delação] você fica com os documentos."
O
jurista, que é contrário ao instituto da delação premiada, lembra que, se Mauro
Cid se sentiu coagido, ele mesmo poderia ter se retirado do acordo.
"Ele
teve a oportunidade, na frente do juiz, com o advogado, de dizer que foi
pressionado e não queria mais [colaborar]", afirma Streck. "Não o fez
porque lhe era conveniente a liberdade."
Até o
decano do Supremo, Gilmar Mendes, comentou sobre a delação de Cid logo após a
denúncia.
"É
claro que a delação do Mauro Cid é extremamente importante. Mas nós estamos
vendo que ela está lastreada em fatos", afirmou o ministro a jornalistas.
Gilmar
Mendes não compõe a Primeira Turma do STF, onde o julgamento sobre a suposta
trama golpista deve ocorrer — embora a defesa de Bolsonaro peça que seja o
plenário do Supremo que julgue a causa.
- As idas e vindas
da delação de Cid
O
acordo de delação de Mauro Cid foi firmado em setembro de 2023 e enfrentou idas
e vindas e turbulências desde então.
O militar
estava preso desde maio daquele ano, após uma operação que investigava
falsificação de cartões de vacinação de Bolsonaro, parentes e assessores.
Quando sua delação foi homologada, ele foi solto.
Cid
também é investigado por suposto envolvimento no desvio de joias sauditas que
Bolsonaro ganhou quando era presidente.
Em
março de 2024, o acordo esteve prestes a ruir. O militar foi preso novamente,
desta vez por obstrução de Justiça e descumprimento de medidas cautelares.
O pano
de fundo para essa nova prisão de Cid foi o vazamento de áudios, pela revista
Veja, em que ele dizia estar sendo pressionado pela PF para delatar integrantes
da trama golpista.
Naquele
momento, ele foi interrogado por Moraes, mas ganhou o direito de seguir em
liberdade, após se retratar.
Em
novembro, mais uma vez a colaboração esteve em risco. Isso ocorreu quando Cid
foi convocado novamente a depor, depois que a PF entregou seu relatório
apontando detalhes relevantes que o militar não havia mencionado durante a sua
colaboração.
Em
especial, o plano "Punhal Verde" que envolvia os kids pretos.
Moraes
então convocou novamente Mauro Cid a depor, dizendo que aquela era a
"última chance" para que ele falasse a verdade e ameaçando prendê-lo
novamente, caso ele omitisse os fatos.
Alguns
juristas, incluindo a defesa de Bolsonaro, apontam que Cid foi coagido naquele
momento, e que Moraes cometeu excessos.
"Moraes
cometeu um excesso", afirma o advogado Mauricio Dieter. "Toda delação
[de Mauro Cid] tem um monte de vício, Cid omitiu uma parte importante do plano
e depois, pressionado, acabou falando".
Ele
lembra que a delação tem que ser "livre e espontânea", algo que, em
sua opinião, não aconteceu. "Mauro Cid delatou o que o Moraes queria
ouvir".
Ao
contrário de Dieter, no entanto, Yarochewsky, que também é contrário ao
instituto da delação premiada, não vê excessos na conduta de Moraes.
"Não
vi abuso. Vi um juiz rigoroso, mas não vi arbitrariedade", afirma. "O
ministro o advertiu [Mauro Cid], uma vez que percebeu que havia omissões,
contradições e o intimou a prestar novo depoimento."
O
advogado Pierpaolo Bottini também acha que a conduta de Moraes ocorreu dentro
dos conformes.
"É
natural que, se o sujeito omitir, ele pode ser chamado de novo", afirma.
"A colaboração não é prova, é só um meio de orientação"
Lenio
Streck segue a mesma linha: "O juiz disse 'se você não cumprir [com o
acordo], você vai preso', isso é o mínimo que o juiz pode fazer".
- Mas quem poderia
ouvir Cid, segundo a lei?
A
defesa de Bolsonaro argumenta que Moraes, na figura de juiz, teria o papel de
apenas verificar se o acordo era voluntário e legal, e não de interrogar Cid e
negociar a sequência ou não do acordo.
A lei
determina que a negociação sobre a colaboração deve ser feita entre o advogado
do colaborador e o Ministério Público ou a Polícia Federal e que, nesta fase, o
juiz não participa das negociações.
Homologada,
a delação passa então às mãos do juiz, que deve fazer as verificações sobre o
que o delator prometeu entregar.
Não
está explícito, segundo a Lei das Organizações Criminosas, que o juiz não deve
ouvir o delator após a homologação da delação.
A lei
determina apenas que, depois de homologado um acordo de delação premiada,
"o colaborador poderá, sempre acompanhado pelo seu defensor, ser ouvido
pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas
investigações".
A BBC
News Brasil conversou com um delator da Lava Jato que afirmou, sob anonimato,
que realizou duas audiências com o juiz Sergio Moro para fazer sua delação
premiada durante as investigações da operação.
O que
está sendo questionado, no entanto, não é se Moraes poderia, na figura de juiz,
ouvir Mauro Cid, como explica Thulio Guilherme Nogueira, advogado e
sócio-fundador da DNA Penal.
"O
ponto é a postura ativa que ele [Moraes] toma", afirma. "No meu ponto
de vista, existe uma postura bastante questionável. Entendo que há uma certa
quebra da imparcialidade quando tem um juiz conduzindo de forma tão assertiva
um depoimento de colaboração premiada."
Para
Nogueira, que defende o instituto da delação premiada, a desistência de Cid no
meio do processo de colaboração não colocaria somente a liberdade provisória
dele em xeque. "Se ele decide por não seguir com esse acordo, ele teria um
julgamento justo e imparcial?", questiona.
Para a
defesa de Bolsonaro, a delação tem que ser anulada porque todo o processo é
"viciado".
Os
advogados do ex-presidente dizem que o acordo foi feito sob coerção e ameaça,
inclusive contra os parentes de Cid — seu pai, o general da reserva Mauro
Lourena Cid, sua filha maior de idade e sua esposa.
Isso
porque antes de interrogar Mauro Cid, Moraes alertou que a família do militar
poderia ser envolvida nas investigações em uma eventual quebra do acordo de
colaboração.
Mauricio
Dieter também acredita que o militar foi pressionado pelo ministro. O jurista
explica que, teoricamente, a delação pode ser o "fio condutor" de uma
denúncia. "É a narrativa que amarra as evidências, costura um sentido para
as conversas [entre os denunciados]", diz.
Mas,
tanto na Lava Jato, quanto agora, Dieter defende que a colaboração foi
utilizada como ponto de partida e não como parte da apuração da investigação.
"A
delação como ponto de partida de casos complexos como esse já se provou um
instrumento deficiente", afirma. "As delações sempre são o que a
acusação quer ouvir e raramente são a expressão da verdade."
Devido
ao que juristas apontam como brechas nas leis que instituem a colaboração
premiada — especialmente a Lei das Organizações Criminosas e a Lei
Anticorrupção — Streck defende uma regulamentação da delação premiada.
Ele
lembra que o PT entrou com uma ação no Supremo em 2021 para regulamentar a
delação premiada (ADPF 919), mas até o momento ela não foi julgada.
Fonte:
BBC News Brasil
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