domingo, 31 de maio de 2015

Artigo: “Golpe contra a democracia”

Presidentes, governadores e prefeitos devem ou não ter o direito de disputar reeleições no Brasil? Empresas podem ou não financiar candidatos? O voto deve ser facultativo ou obrigatório? Nenhuma dessas questões é trivial. Todas elas merecem amplo debate com a sociedade. No entanto, na Câmara dos Deputados do presidente Eduardo Cunha (PMDB-RJ) a voz do povo é o que menos importa.
Numa reforma política que vem sendo feita de atropelo, passando por cima até por uma comissão interna da casa, que foi dissolvida pelo imperador Cunha, temas cruciais para o funcionamento da democracia brasileira vêm sendo decididos sem que a sociedade tenha qualquer chance de se manifestar. Nem um pio sequer.
Num belo dia, Cunha tenta consagrar na Constituição Federal o financiamento privado e é derrotado. No dia seguinte, numa manobra regimental cuja legalidade será questionada no Supremo Tribunal Federal, tudo muda e ele impõe sua vontade. Não se discute aqui o mérito das doações privadas, muito embora a história recente do País, repleta de escândalos, esteja a demonstrar o efeito nocivo que o interesse privado exerce sobre a política, seja no escândalo dos cartéis da Petrobras, seja no caso dos cartéis do metrô de São Paulo. A questão é a forma. Cunha age como se fosse ungido por um poder absoluto e como se a sociedade fosse um mero detalhe.
O mesmo se aplica à reeleição. Sem qualquer debate mais aprofundado, uma experiência recente no Brasil está sendo descartada. Dos três presidentes brasileiros que puderam se reeleger, todos foram vitoriosos. Fernando Henrique Cardoso teve um segundo mandato mais difícil do que o primeiro. Com Luiz Inácio Lula da Silva, deu-se o inverso. No caso de Dilma Rousseff, só o tempo dirá. De todo modo, o fato de a população depositar votos de confiança nos “incumbentes” sinaliza que a sociedade, de certa forma, aprova a reeleição – que, por sinal, existe nas mais avançadas democracias.

A reforma política de Cunha, chamada de “contrareforma” por seus adversários, ainda terá que passar por novos testes na Câmara e no Senado. O ideal, no entanto, seria recomeçar tudo do zero, permitindo um amplo diálogo com a sociedade. Até porque um dos principais problemas do Brasil de hoje é a crise da democracia representativa, com crescente distanciamento entre eleitos e eleitores. 

Artigo: “Quem se cala consente”

Primeiro, eles ofenderam e insultaram os negros nas cozinhas e nas portarias dos prédios.
Como temos a pele um pouco clara, não nos incomodamos.
Encorajados, passaram a chamar os negros de macacos em shoppings e estádios de futebol.
Nossos filhos, ao ouvir os insultos públicos e ver a nossa indiferença, achavam que isso era normal.
Aí, os sociopatas decidiram agredir verbalmente os pobres de maneira geral, acusando-os de preguiçosos, esmolés de bolsas e parasitas sociais.
Como não queremos nos passar por pobres, fingimos que não era com a gente.
E as agressões públicas passaram a ser publicadas.
Midiatizados, os valentes midiotas direcionaram sua ira contra os nordestinos.
E o que temos nós a ver com o nordeste, já até nos mudamos de lá?
Fortes e encorajados, certa vez entraram, em bando, em um estádio, e já sem pudor, para o mundo inteiro ouvir, xingaram e mostraram o dedo médio para a presidenta.
Como não votamos nela, achamos graça daquilo.
E de repente, sufocando ainda mais o nosso silêncio, o bando tomou as ruas, as praças, e a ágora que é as redes sociais.
Ódio e ranger de dentes.
Destemidos, insultam políticos - impunemente - em clínicas médicas, restaurantes, casamentos, aviões, e no próprio Congresso.
Como nãos somos políticos, achamos é pouco.
Quando abrimos os olhos, os vimos, odiosos e violentos, a chacoalhar um cadeirante que ousou sair à rua vestido com uma camiseta da cor que eles detestam.
Hoje, quem ousar adornar-se de vermelho, mesmo não sendo presidenta, negro, pobre, cadeirante ou nordestino, corre risco de ser agredido.
Agora, senhores das ruas, das praças, dos estádios, dos shoppings, dos noticiários e das redes sociais, eles invadiram as nossas casas.
De suas varandas, gritam e rufam panelas para nos impedir de escutar o pronunciamento da presidenta, só porque eles mesmos não querem ouvi-la.
Estupefatos, assistimos pela TV a turba agredir um pai de família com um bebê no colo; com mil diabos, dizemos.
Em seguida, insultaram um senhor por ler uma revista com a qual eles não concordam.
Até que um dia, num belo domingo de sol, no churrasco à beira da piscina, vimos que estes sujeitos odiosos faziam parte do nosso grupo mais seleto.
Ébrios de cerveja, com os dedos melados de gordura e a boca cheia de farofa, passaram a se agredir verbalmente cunhados, primos, tios e amigos: petralha, vagabundo, vitimista, heterofóbico, vaca, viado, comunista...
Foi aí que percebemos que também era com a gente.
Mas já era tarde demais.
Palavra da salvação.



Autor: Lelê Teles -  Jornalista e publicitário. Roteirista do programa Estação Periferia (TV Brasil), apresentador do programa Coisa de Negro (Aperipê FM) e editor do blog FALA QUE EU DISCUTO