sábado, 29 de junho de 2024

Os 8 grupos mais privilegiados do serviço público no Brasil, segundo novo livro

No ano passado, 93% dos juízes brasileiros ganharam mais por mês do que os salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – de R$ 39,3 mil até março de 2023 e depois reajustado para R$ 41,7 mil, valor que pela Constituição deveria ser o teto do funcionalismo.

Até 2026, os fiscais da Receita Federal devem ganhar mais de R$ 11 mil por mês para além de seus salários na forma de um "bônus de eficiência", cujo pagamento independe do desempenho individual de cada auditor fiscal.

Com isso, a categoria poderá receber a partir daquele ano vencimentos de mais de R$ 40 mil, somando salário e bônus.

Os titulares de cartórios são a categoria profissional com renda mais alta do país – uma média de R$ 142 mil por mês, segundo dados do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) de 2022.

Mas, no Distrito Federal, um titular de cartório – cargo provido por concurso público – chega a ganhar em média meio milhão de reais mensais.

Como essas e outras categorias da elite do serviço público conquistaram essas remunerações exorbitantes que, em última instância, são financiadas pelo bolso de todos nós – seja através do pagamento de impostos ou do pagamento pela prestação de serviços, no caso dos cartórios?

É o que responde o mestre em economia e doutor em direito Bruno Carazza, em seu novo livro O país dos privilégios – Volume 1: Os novos e velhos donos do poder, lançado pela Companhia das Letras na terça-feira (25/6).

"Temos esse modo de funcionamento do Estado brasileiro, que permite que alguns grupos muito bem organizados, com poder de pressão, muito bem articulados com as esferas de poder – no Executivo, no Legislativo e no Judiciário –, consigam extrair do Estado uma série de benefícios", diz Carazza, em entrevista à BBC News Brasil.

"É por isso que eu concebi essa obra com três volumes, porque não é algo restrito às carreiras públicas do funcionalismo. É algo também muito bem explorado pelo setor empresarial e pelas classes mais altas – os ricos e os super ricos", diz o professor da Fundação Dom Cabral, já antecipando os temas de seus próximos volumes, previstos para serem lançados respectivamente em 2025 e 2026.

"A meu ver, isso explica muito do nosso atraso, da nossa desigualdade de renda, porque todos esses privilégios são acessíveis a um grupo restrito da sociedade e que acaba concentrando boa parte da renda. E são benefícios que se perpetuam no tempo", acrescenta Carazza.

·        Desigualdade no funcionalismo

No primeiro volume de sua trilogia, dedicado aos privilégios no setor público, o pesquisador deixa claro que o problema do Brasil não é de excesso de servidores.

Apesar de o país contar com 10,8 milhões de vínculos formais de trabalho no setor público em 2021, ante 4,8 milhões em 1985 (num crescimento de 124% em 36 anos), o contingente de servidores públicos brasileiros não destoa da média internacional, demonstra Carazza.

Entre os membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, os servidores públicos representavam em média 17,9% da população economicamente ativa em 2020, cita o analista.

No Brasil, considerando todos os níveis da federação e incluindo os militares, o setor público empregava 12% da força de trabalho do país naquele ano.

Ou seja, menos do que a média dos países ricos e menos até do que os Estados Unidos (14,9%), considerado um país menos estatizante.

No entanto, analisando o peso da remuneração dos servidores na economia, a história é outra.

O Brasil gastava 13% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em 2019 com a folha de pagamentos do funcionalismo, acima de países ricos como Alemanha (7,6%), Reino Unido (8,9%), Itália (9,3%) e França (11,8%) e muito acima de vizinhos latino-americanos como México (4,7%) e Chile (7,2%).

Carazza também observa que, embora o setor público pague em média salários mais altos do que o setor privado, o problema mais grave está no governo federal, onde essa diferença chega a 93,4%, comparando trabalhadores de mesmo gênero, raça, idade, escolaridade, experiência e ocupação nos dois setores.

Nos Estados, o diferencial de salários em favor dos trabalhadores do setor público é de 27,9%.

Já nos municípios – que empregam uma maioria de professores, assistentes sociais, médicos e enfermeiros da saúde pública, atendentes de repartição pública e outros profissionais que atuam no atendimento direto à população – o diferencial chega a ser negativo em -2,46%, conforme estudo dos pesquisadores Gabriel Tenoury e Naercio Menezes Filho, do Insper, citado no livro.

Essas desigualdades internas ao funcionalismo também ficam evidentes quando se analisa a mediana de rendimentos mensais no setor público, nos diferentes poderes e níveis federativos.

·        Qual reforma administrativa

Carazza destaca que reconhecer essas diferenças entre os servidores públicos é fundamental para pensar qual é a reforma administrativa necessária para o país.

Discussões sobre essa reforma existem desde a Constituinte, lembra o pesquisador.

Depois disso, houve uma reforma no governo Fernando Henrique Cardoso, que foi aprovada, porém, muitos pontos não foram regulamentados. Desde então, não houve nenhuma proposta robusta aprovada pelo Congresso, diz o professor.

Segundo ele, a proposta de reforma apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro (PEC 32/2020), ainda que volta e meia seja lembrada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é considerada por especialistas como uma reforma muito ruim.

"Temos um 'não debate' no Brasil a respeito da reforma administrativa", avalia o professor da Fundação Dom Cabral.

"É um tema discutido de uma forma muito rasa no país. De um lado, temos aqueles radicais de direita, que entendem que o Estado deve ser o mínimo possível – o que não faz sentido, pois, pelos desafios que temos no Brasil, o Estado é muito necessário", avalia o pesquisador.

"De outro, temos várias pessoas na esquerda que têm uma visão de que não se deve mudar nada na forma como o Estado está estruturado hoje. Como se o Estado não tivesse todas essas distorções, que geram uma má prestação de serviços públicos e uma concentração de renda, agenda que a esquerda se posiciona corretamente contra."

Carazza avalia que, apesar das visões radicais de ambos os lados, que interditam um debate necessário, é possível encontrar pontos comuns para uma reforma administrativa.

No livro, ele analisa duas propostas de reforma, uma elaborada por Armínio Fraga, Ana Carla Abrão e Carlos Ari Sundfeld, especialistas considerados mais ligados ao mercado financeiro; e outra publicada pelo Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), organização formada por 37 associações e sindicatos, que representam mais de 200 mil servidores públicos.

"Quando você vê as propostas apresentadas por esses dois grupos, você vê que há muito mais pontos em comum, do que discordâncias", observa o pesquisador.

Entre esses pontos em comum, que podem servir de norte para uma reforma consensual, ele cita:

  • A necessidade de uma redução na quantidade atual de carreiras do serviço público;
  • A estruturação das carreiras no serviço público para que elas passem a ter uma remuneração inicial mais baixa e uma carreira longa, em que os profissionais progridam mediante avaliações individuais de desempenho;
  • A regulamentação de uma avaliação de desempenho no serviço público;
  • E a recuperação da autoridade do teto de remuneração no serviço público, acabando com penduricalhos que geram os super salários do Judiciário, Legislativo e Executivo.

Além de pesquisador e professor universitário, Carazza é também ele mesmo funcionário público de carreira, com passagem pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e por diversos órgãos do Ministério da Fazenda.

No entanto, está atualmente licenciado – o que ele também considera uma forma de privilégio.

"Por um bom tempo, eu acreditei que muitos dos privilégios que eu tenho, eram fruto do meu mérito", observa o pesquisador.

Ele cita, entre o que considera como privilégios, as universidades públicas onde fez graduação e pós-graduação de forma gratuita; os alto salários que recebeu como servidor público; estar licenciado do setor público, mas com a vaga assegurada se desejar voltar, um benefício que não existe no setor privado; além do fato de receber a maior parte de seus rendimentos atualmente como pessoa jurídica, não estando sujeito à tributação de lucros e dividendos.

"Ao longo da minha trajetória, não só no serviço público, mas desde que me licenciei para atuar com pesquisa, para mim fica cada vez mais claro que, para termos um país mais próspero, justo e sustentável, precisamos repensar esse modelo de distribuição de privilégios para grupos isolados da sociedade", diz Carazza.

"Meu propósito neste livro não foi atacar as pessoas ou as empresas que se beneficiam dessa rede de privilégios, mas convidar as pessoas a repensarem esse modelo."

Para repensar nosso modelo de distribuição de benesses, confira oito grupos privilegiados no Brasil, de acordo com o novo livro de Bruno Carazza.

·        1. Magistrados

"Talvez o Poder Judiciário seja a categoria em que essa questão dos privilégios esteja mais visível hoje em dia", observa o economista.

Ele lembra que o Judiciário tem autonomia funcional e administrativa e que, por isso, não está sujeito a todos os rigores do ajuste fiscal, como está sujeito o Poder Executivo, por exemplo.

Além disso, por se tratarem de juízes, muitas vezes eles arbitram sobre os próprios benefícios.

Isso ajuda a explicar como 93% dos juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores brasileiros tiveram rendimento médio mensal superior aos ministros do STF em 2023, já contabilizados todos os descontos legais.

E por que pelo menos 1.002 magistrados ganharam mais de R$ 1 milhão no acumulado daquele ano, equivalente a uma renda de R$ 83 mil por mês.

A explicação é simples: os salários do Judiciário são inflados pelos chamados "penduricalhos", uma série de adicionais, auxílios, bonificações e outros pagamentos que turbinam os contracheques dos magistrados Brasil afora.

No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, em 2023, um magistrado tinha direito a:

  • Auxílio-creche, para reembolsar as mensalidade pagas pela educação infantil de filhos ou enteados de seis meses a sete anos de idade;
  • Auxílio-educação, para cobrir as despesas com educação de dependentes legais até 24 anos, além de cursos de pós-graduação dos próprios magistrado – o valor de cada um desses auxílios era de R$ 1,5 mil por dependente, limitado a três benefícios por servidor;
  • Auxílio-alimentação de R$ 1,6 mil mensais;
  • Indenização de transporte de até R$ 1,5 mil mensais.

Outro exemplo de benefício da categoria são as férias de 60 dias anuais a que os magistrados têm direito, para compensar sua carga de trabalho supostamente exaustiva – o dobro do previsto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Acontece que boa parte dos juízes prefere não tirar essas férias adicionais, optando por converter os dias extras de férias em dinheiro.

Um único desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, chegou a receber R$ 649 mil referentes a férias não usufruídas entre 2017 e 2024, isso para além de seus vencimentos básicos, de R$ 37,6 mil.

"Por causa desses benefícios que são criados pelo próprio Judiciário, sem controle dos outros poderes, esses juízes, às vezes de primeira instância, acabam ganhando muito mais do que um ministro do Supremo, o que não faz sentido", conclui Carazza.

·        2. Membros do Ministério Público

Segundo o pesquisador, membros do Judiciário e do Ministério Público (MP), as duas carreiras jurídicas de elite do Brasil, competem entre si para ver quem turbina mais seus contracheques.

Assim, sempre que uma categoria conquista um "penduricalho", a outra recorre ao STF para pedir a equiparação.

Com isso, os vencimentos das duas carreiras vão se afastando cada vez mais do teto do serviço público e do padrão salarial da sociedade brasileira.

Mas o Ministério Público é ainda mais opaco do que a Justiça quanto à publicação dos rendimentos de seus membros, destaca o analista.

"É até uma incoerência, porque o Ministério Público é o órgão que deveria fiscalizar a transparência dos outros [órgãos do poder público]", aponta Carazza. "Ele fiscaliza a transparência dos outros, mas ele próprio não publica amplamente seus dados."

Mesmo com essa falta de transparência, o pesquisador conseguiu estimar, com base nos dados disponíveis de quatro MPs da União e de 13 MPs estaduais, que 92% dos membros do Ministério Público recebiam acima do teto do funcionalismo em 2023.

E pelo menos 1,2 mil membros do MP ganharam, em média, mais de R$ 50 mil por mês naquele ano, com os salários turbinados por indenizações, auxílios, gratificações, pagamentos retroativos e aditivos de todo tipo.

·        3. 'Carreiras típicas de Estado'

Na verdade, essa é uma categoria que não existe formalmente, esclarece Carazza.

Foi uma nomenclatura que surgiu na época da reforma do Estado proposta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

Seriam algumas carreiras que teriam estabilidade contra demissões e uma série de proteções, frente à perspectiva de que funções mais operacionais do serviço público pudessem ser exercidas por empregados celetistas, sem garantia de estabilidade.

Nesse grupo informal estão diplomatas, auditores fiscais da Receita Federal e do Trabalho, advogados da União, procuradores da Fazenda Nacional e policiais federais, assim como analistas do Banco Central, do Tesouro Nacional, do Orçamento e da CGU, além de gestores governamentais e analistas de comércio exterior – para citar apenas as carreiras principais.

"Essa ideia não foi para frente, não foi aprovada. Mas essas carreiras meio que se auto intitulam assim, 'carreiras típicas de Estado', que são carreiras muito poderosas, porque são muito articuladas dentro dos ministérios, e exercem funções muito relevantes para o funcionamento do Estado."

Como estas são carreiras do Executivo, elas estão de fato sujeitas ao teto do funcionalismo – diferentemente do Judiciário e de algumas carreiras do Legislativo que conseguiram contornar a limitação constitucional.

No entanto, essas carreiras têm feito de tudo para ganhar cada vez mais, com salários já muito maiores do que a média geral do serviço público e se aproximando cada vez mais do teto.

"Temos observado isso acontecer e é uma situação que, inclusive, tem criado muitos constrangimentos para o próprio governo", observa Carazza.

"Por exemplo, a recente greve nas universidades federais e a greve dos gestores ambientais do Ibama expõem essa desigualdade dentro do Poder Executivo."

Essas carreiras costumam ter salários iniciais acima de R$ 20 mil e topos de carreira que se aproximam ou ultrapassam os R$ 30 mil – com a possibilidade se chegar ao rendimento máximo em cerca de dez anos, com avaliações de desempenho que são mera formalidade.

·        4. Advogados públicos

Em qualquer ação no Judiciário em que há uma parte ganhadora, o juiz decide um valor que deve ser pago pela parte que perdeu para compensar custos da disputa judicial. São os chamados "honorários de sucumbência".

Tradicionalmente, esses valores eram destinados à parte vencedora da ação – a pessoa física, empresa ou União que foi acionada na Justiça e provou que estava correta.

Na advocacia privada, no entanto, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) conseguiu junto ao Congresso a aprovação de uma lei, que determinou que essa verba passasse a ser destinada ao advogado, e não mais à parte vencedora.

Os advogados da União, procuradores da Fazenda e de autarquias federais, e seus colegas nos Estados e municípios, foram então em busca da mesma vantagem, lembra Carazza.

Após algumas tentativas frustradas, a categoria conquistou essa benesse com a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 2015.

"Desde então, em qualquer ação que a União, Estados ou municípios vençam na Justiça, uma parte do valor que antes ia para os cofres públicos, hoje em dia é distribuído para os advogados públicos federais, estaduais ou municipais", explica o pesquisador.

Isso tem feito com que um advogado público da União, que já tem rendimentos na casa dos R$ 30 mil, receba todo mês, a título de honorários, um pagamento adicional de cerca de R$ 12 mil.

"Então, hoje em dia, apesar do teto ser respeitado dentro do Poder Executivo, praticamente todos os advogados públicos, procuradores da Fazenda Nacional e procuradores do Banco Central recebem o teto do ministro do Supremo, o que também não faz muito sentido", aponta o professor.

·        5. Fiscais da Receita

Os fiscais da Receita Federal adotaram estratégia parecida à dos advogados públicos.

Desde 2016, os auditores fiscais conseguiram, em negociação com o governo, que uma parte da receita das multas tributárias arrecadadas e da venda de mercadorias apreendidas fosse destinada a eles mesmos, na forma de um "bônus de eficiência e produtividade".

Mas o recebimento desse bônus independe do desempenho individual de cada fiscal e o valor do benefício, que era inicialmente de R$ 3 mil por mês, deve chegar a R$ 5 mil no segundo semestre de 2024, R$ 7 mil em 2025, atingindo finalmente R$ 11,5 mil mensais por servidor em 2026.

"Isso vai fazer com que, novamente, praticamente todo fiscal da Receita Federal ganhe o equivalente ao ministro do Supremo", observa Carazza.

"Tudo bem incorporar na remuneração uma parcela variável atrelada ao desempenho. Isso, inclusive, é uma boa prática que várias empresas já adotam", pondera o especialista.

"Mas não faz sentido ter essa estrutura em que se ganha um salário básico já altíssimo, em torno dos R$ 30 mil, e mais uma parcela variável que não está atrelada ao desempenho individual de cada um dos setores. Como elas não estão atreladas a uma avaliação efetiva de entrega, de mérito, acabam virando mero penduricalho para turbinar o salário dessas carreiras, que já é bem alto."

·        6. Militares

Os militares são um exemplo de como os privilégios nem sempre estão restritos à remuneração, observa Carazza.

Ele destaca duas vantagens principais da categoria: a Justiça Militar e o fato de os militares contarem com um regime especial de Previdência – tema que voltou ao debate público recentemente, após a ministra do Planejamento, Simone Tebet,

O pesquisador observa que, desde o tempo do Império, os militares têm um ramo próprio da Justiça, originalmente criado para tratar de assuntos ligados à guerra.

Mas, após a redemocratização da América latina, o Brasil é um dos poucos países democráticos da região a manter até hoje um foro militar – o que Carazza avalia como uma "excrescência".

"Quando os vários países da América Latina encerraram suas ditaduras militares, essas justiças militares foram extintas e causas militares agora são julgadas pela Justiça comum", diz o pesquisador.

"Mas, no Brasil, permanecemos com essa estrutura que, com o passar do tempo, foi expandindo suas competências. Então a Justiça Militar deixa de julgar apenas casos relacionados à disciplina militar e começa a julgar casos de crimes envolvendo militares, inclusive em operações com civis."

Carazza destaca ainda que, além de a Justiça Militar ter o costume de absolver ou aplicar penas drasticamente reduzidas aos militares que vão a julgamento por crimes, ela também tem custos completamente desproporcionais ao número de processos que movimenta.

Enquanto o funcionamento do Supremo Tribunal Militar (STM) consumiu cerca de R$ 600 milhões em 2022, tendo cerca de 3,7 mil processos pendentes, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) custa quase o triplo (R$ 1,6 bilhão), mas tem quase 70 vezes mais processos em andamento (256 mil).

Na Previdência militar o fenômeno é parecido. Embora o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tivesse o maior peso no déficit previdenciário do governo federal em 2022 (representando 73,3% do déficit total), ele atende a mais de 30 milhões de aposentados e pensionistas (95,9% do total).

Já o regime de previdência dos militares representava então 13% do déficit, para apenas 519 mil aposentados militares e seus pensionistas (ou 1,6% do total de beneficiários).

"Essa é uma briga que nenhum presidente quis comprar ainda", observa Carraza.

"Mas vamos ver se o governo Lula vai ter coragem de colocar a mão nesse vespeiro que é atacar os privilégios que os militares têm na questão previdenciária."

·        7. Políticos

A lista de privilégios da classe política é extensa, enumera o professor da Fundação Dom Cabral.

Começa com as cotas parlamentares para custear passagens aéreas, aluguel de veículos, publicidade, pesquisa e consultorias e a manutenção de escritórios em redutos eleitorais.

Passa pelos cargos comissionados, as verbas do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, as emendas parlamentares do Orçamento, e a proteção contra punições gerada pelo sistema de indicações dos tribunais de contas e pela instituição do foro privilegiado.

O resultado de tudo isso é uma condição de concorrência diferente entre o parlamentar eleito e seus adversários num processo eleitoral, considera o pesquisador.

"Isso desequilibra o jogo e aumenta as chances de reeleição de um parlamentar que já exerce o cargo. Há um combo de benefícios eleitorais, remuneratórios, de proteção judicial, orçamentários e de cargos, que acabam beneficiando muito a classe política estabelecida."

·        8. Cartórios

Por fim, chegamos aos cartórios, incluídas por Carazza à lista por prestarem um serviço por delegação pública, terem a titularidade auferida por concurso público de provas e títulos, mas gerarem lucros (gigantescos) privados.

Aqui a coisa já foi pior, é verdade. No passado, a titularidade dos cartórios passava de pai para filho, com indicações por critérios políticos. Desde a Constituição de 1988, passaram a valer as regras atuais, pondo fim à hereditariedade.

O pesquisador observa, porém, que os titulares de cartórios seguem desfrutando de uma série de privilégios, como o fato de não haver limites para a remuneração, o que leva, por exemplo, ao rendimento de R$ 500 mil dos donos de cartórios do Distrito Federal, citados no início desse texto.

Embora esse seja um valor fora da curva, não há nenhum Estado da federação onde a remuneração média de um titular de cartório seja inferior a R$ 40 mil mensais, segundo os dados da Receita Federal.

Além disso, há pouca fiscalização quanto à qualidade dos serviços prestados.

"É um serviço que impõe um ônus muito grande para as transações econômicas no Brasil, desde a compra e venda de imóveis, transferências de veículos, abertura de uma empresa, até atos corriqueiros de firmas e contratos."

"Então é uma atividade com uma remuneração altíssima, pouco regulada e que onera em termos de tempo e de custo, de uma forma muito significativa, a população brasileira em geral."

Carazza avalia que algumas soluções possíveis aqui incluiriam a limitação dos rendimentos de cartórios; eliminação de exclusividades territoriais nos registros de imóveis; a padronização da qualidade do atendimento; e a digitalização da escrituração.

"Há um amplo caminho para baratear e elevar a eficiência das trocas na economia brasileira."

 

Fonte: BBC News Brasil

 

Sincretismo brasileiro: especialistas destacam influências do Islã nas religiões de matriz africana

O Brasil, devido ao seu passado colonial, escravagista e com diferentes ondas migratórias, ganhou uma rica diversidade cultural e criações próprias. É o caso das chamadas religiões de matriz africana, que guardam muitas semelhanças com o cristianismo. Mas o que poucos sabem é que elas também receberam influências do islamismo.

As similaridades desconhecidas e o modo como o Islã influenciou as religiões de matriz africana brasileiras foram temas do episódio desta sexta-feira (28) do Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho.

•           Qual a semelhança do Islã com a umbanda e o candomblé?

Tido como menos sincrético que a umbanda, o candomblé é uma religião "orgulhosamente brasileira", diz Márcio de Jagun, advogado, escritor, babalorixá e professor de cultura iorubá na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

"Lá no continente africano nós temos várias matrizes, vários nascedouros de tradições, de grupos étnicos diferentes, que no contexto brasileiro, na nossa 'salada', nas várias formas de resistência […] produziram o que seria mais correto chamar de candomblés, assim como umbandas."

Ele afirma que "denominar no singular o candomblé seria pouco para dimensionar a quantidade de matrizes, de fontes […] trazidas para cá e [que] se constituíram aqui".

Segundo Jagun, entre essas influências que constituíram os candomblés e as umbandas brasileiras, muitas vezes é apontada a mistura que ocorreu com ritos católicos e indígenas.

Porém, aponta o babalorixá, "o período de escravização humana no Brasil foi muito longo, cerca de 400 anos", e dentro desses séculos, quatro ciclos ocorreram.

"Nos dois primeiros vieram, em maior quantidade, pessoas escravizadas das etnias bantos. No terceiro, no quarto e no chamado ciclo da ilegalidade, vieram mais aqueles de origem étnica nagô e iorubá, de etnia fom, como nós costumamos chamar os fons de jeje", explica.

De acordo com Jagun, havia muçulmanos entre todos esses grupos que foram trazidos para o Brasil.

"Então a presença do Islã, seja no contexto das religiões africanas produzidas no Brasil, assim como no período anterior, que a gente chama de pré-diaspórico, é muito intensa", acrescenta.

Jagun sublinha que muito se discute o sincretismo afro-católico como se esse "fosse o único nível, o único nicho de interseção entre essas matrizes religiosas, culturais e filosóficas".

"Mas a relação do sincretismo afro-islâmico, afro-indígena, intra-africano, podem ter certeza, é uma relação muito mais intensa", afirma o babalorixá.

Rafael Maron, graduado em história e mestre em antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), aponta que no livro "Rebelião escrava no Brasil", do professor João José Reis, há o detalhamento de um caso de uma guerra no antigo principado de Oió, no sudoeste da África, na qual os muçulmanos foram derrotados e vendidos como escravos para trabalharem no Brasil.

"Desde o século XVI se fala […] até em muçulmanos que chegam aqui também na própria frota de Cabral."

Quanto às influências pré-diaspóricas, Maron explica que "o Islã admite a possibilidade de aquisição cultural dos locais onde ele está, desde que essas práticas não contradigam sua mensagem principal, não contradigam seus princípios".

Jagun menciona como exemplo dessa aquisição cultural o episódio de Oió, citando uma história de Xangô, divindade iorubá, deus do fogo, da justiça e cultuado nos terreiros de umbanda e candomblé.

"Em determinada ocasião [Xangô] expandiu os seus domínios na cidade de Oió, que fica na região sudoeste da África, precisamente na atual Nigéria […] até o Mali, onde a população era, na época, majoritariamente islâmica", reconta o professor da UERJ.

"Xangô assentiu a um pedido, demonstrando politicamente respeito ao islamismo: ele adotou para si e para todos os seus descendentes um interdito típico do islamismo, que é não consumir carne de porco. E é curioso, porque até hoje nos terreiros de candomblé do Brasil, e depois, nessa nova diáspora, mundo afora, quem é filho de Xangô […] não come carne de porco."

João Luiz Carneiro, escritor e doutor em ciências da religião pela Pontífica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), traz ainda mais semelhanças entre as duas religiões, como o uso de amuletos sagrados no pescoço, como os talismãs do Islã, e os lequés, "que são cordões ritualísticos utilizados pelos praticantes de candomblé e de umbanda".

"Dependendo de características do terreiro, da sua filiação espiritual no candomblé, existe uma certa abstinência de certos tipos de alimentos. O uso de banhos de ervas, da purificação, também é comum em ambas as tradições."

Um dos exemplos mais significativos é o uso do mesmo instrumento musical: o atabaque, ou al-tabak, como é chamado pelos árabes, segundo aponta Carneiro.

"Existem muitas saudações, rezas, utilizadas tanto no candomblé quanto na umbanda, que possuem raízes e expressões que também transitam pelo Islã. Eu gosto de utilizar o exemplo do atabaque, que vem de al-tabak."

Jagun acrescenta que outra semelhança entre o candomblé e o islamismo pode ser observada em celebrações nas quais as mulheres fazem um sibilar de língua que produz um som muito similar à salguta, o som que as muçulmanas produzem com a boca em celebrações, sobretudo que envolvem dança.

"Igualzinho. Você vê que essas relações, o uso do branco na sexta-feira, o jejum de Oxalá às sextas-feiras, a origem referencial de paz, o Exu da umbanda que atende a Xangô, Xangô-Orixá, que respeitam o islamismo, tudo isso forma um caldo muito interessante de um sincretismo afro-islâmico que nós precisamos conhecer melhor", afirma.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

SAÚDE PÚBLICA: O fim da pandemia da Aids?

E a vida continua (1993), filme de Roger Spottiswoode, retrata os primeiros anos da epidemia de Aids nos Estados Unidos, período marcado por mortes de homossexuais em São Francisco, pela descoberta de uma doença até então desconhecida, por disputas políticas, mobilizações sociais, discriminações e pela identificação laboratorial do vírus da imunodeficiência humana (HIV). Naquele momento, início da década de 1980, tudo parecia perdido, e uma doença letal, incurável e sem tratamento ceifava a vida de grandes contingentes populacionais, espalhando-se rapidamente pelos demais países. Era o início da pandemia da Aids.

Susan Sontag aponta que, desde a descoberta da doença, as metáforas discriminatórias atribuídas à Aids conformaram o imaginário social e a experiência das pessoas que viviam com o vírus. Elas se viam merecedoras de castigos divinos, cujos pecados decorrentes dos atos transgressores deviam ser penalizados com a morte, que se concretizava próxima e real, merecida em razão do modo de vida que causou a infecção. As metáforas ameaçavam a integralidade física, psicológica e social, produzindo nas pessoas o medo do abandono, do julgamento e da revelação de sua identidade social; a culpa pelo adoecimento; a impotência, a fuga, a clandestinidade e a exclusão, construídas por sociedades permeadas por estigmas e preconceitos. Conformou-se, assim, uma pandemia marcada por vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas.

A Aids, desde sua descoberta, constituiu-se como um importante problema de saúde pública. Estima-se que 75,7 milhões de pessoas tenham sido infectadas com o HIV e que aproximadamente 32,7 milhões morreram desde o início da epidemia no mundo. Atualmente, há 39 milhões de pessoas vivendo com a doença, e, em 2022, a cada minuto, uma pessoa morreu em decorrência da Aids. Ainda, 9,2 milhões não têm acesso ao tratamento, incluindo 660 mil crianças.

Mulheres e meninas ainda são desproporcionalmente mais afetadas, especialmente na África subsaariana. Elas enfrentam riscos extraordinariamente altos de infecção pelo HIV em decorrência das desigualdades de gênero, violência, estigma e discriminação, incluindo legislações e práticas prejudiciais à saúde. Na região, mulheres e meninas de todas as idades representaram 63% das novas infecções. Ainda, as populações jovens, pobres, negras e LGBTQIA+ também sofrem dificuldades no acesso a serviços de saúde, diagnóstico precoce e tratamento, o que intensifica as vulnerabilidades e conformam barreiras de prevenção à doença em muitos países.

A UNAIDS, apesar desse cenário, publicou, em 2023, o relatório intitulado “O caminho que põe fim à Aids”, propondo metas para acabar com a pandemia provocada pelo HIV até 2030. O documento apresenta que alguns países como Botsuana, Essuatíni, Ruanda, República Unida da Tanzânia e Zimbábue adotaram ações e, com isso, alcançaram as metas de 95-95-95, e pelo menos outros 16 países (incluindo oito na África Subsaariana) estão próximos de fazê-lo. Os esforços propostos para pôr fim à Aids incluem forte liderança política que segue evidências científicas; enfrentamento das desigualdades que impedem o progresso; fortalecimento de comunidades e organizações da sociedade civil; e garantia de financiamento suficiente e sustentável.

Antonio Flores, especialista sênior para HIV e tuberculose de Médicos Sem Fronteiras (MSF), aponta que, de fato, há pesquisas sólidas com resultados satisfatórios em relação à combinação de estratégias de prevenção, tratamento, engajamento comunitário e acesso a medicações e tecnologias de saúde. No entanto, não parece factível alcançar essa meta em 2030. “É preciso explicar que não estamos falando, necessariamente, de acabar com a doença, mas acabar com a pandemia provocada pelo HIV, o que significa diminuir a carga viral globalmente e, consequentemente, a circulação do vírus entre as populações. Ainda assim, essa não é uma tarefa fácil”, explica.

“Em 2014, surgiu a meta ‘90, 90 e 90’, cujo prazo era o ano de 2020, que almejava testar 90% das pessoas, tratar 90% daquelas com teste positivo e ter 90% destas em tratamento com a infecção controlada, ou seja, com a carga viral suprimida. Isso obviamente não foi alcançado”, explica Antonio Flores. Também há uma meta atual que almeja atingir 95-95-95 até 2025. “Não alçamos em 2020 e nem alcançaremos em 2025 globalmente, ainda que alguns países tenham atingido metas. Esse progresso até existe, mas é heterogêneo ao redor do mundo”.

Richard Parker aponta que a promessa do “fim da Aids” e a mobilização por esperança iniciou ainda na década de 2010. O assunto esteve presente, por exemplo, na 20ª Conferência Internacional de Aids em Melbourne, na Austrália, no ano de 2014, e na 8ª Conferência sobre a Patogênese do HIV, em Vancouver, no Canadá, em 2015. Esse discurso foi mencionado por lideranças e instituições responsáveis por coordenar a resposta global e adotado como meta pela ONU até 2016, tendo sido importante para inspirar organizações multilaterais, mas também iniciativas bilaterais, como o PEPFAR estadunidense sob o mote de uma “geração livre da Aids”. Contudo, ativistas e pesquisadores questionam esse otimismo.

O discurso do “fim da Aids” encobre realidades permeadas por desigualdades, estigma e dificuldade de acesso a serviços de saúde. Em meados da década de 2010, pouco mais da metade das pessoas vivendo com HIV/Aids tinham acesso a medicamentos. Outra parcela, composta por países pobres, só tinha acesso a “medicamentos de segunda classe”, ou seja, antirretrovirais antigos e baratos, mas que possuem efeitos colaterais mais numerosos e sérios do que as novas gerações de antirretrovirais. Mesmo países com suposto acesso universal aos medicamentos, como o Brasil, tinham altas taxas de mortalidade nessa década. Além disso, havia falta de acesso à prevenção em todos os países, pelo menos se considerada como direito de todos, e não privilégio de alguns. Insumos como a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que surgiu nessa década, têm acesso restrito a alguns segmentos populacionais, e é limitado mesmo no conjunto desses grupos.

A Covid-19 configurou-se, ainda, como um dos obstáculos para a pandemia de Aids, pois teve impacto no sistema de saúde global. Sobrecarregados com o quantitativo de pessoas infectadas pelo coronavírus, os serviços de saúde apresentaram dificuldades para realizar testagem e diagnóstico de HIV, e parte das pessoas que viviam com o vírus tiveram o tratamento interrompido, principalmente em países de baixa e média renda.

Nas últimas décadas, é inegável os avanços no enfrentamento da pandemia da Aids. A inovação mais recente no combate à doença funciona como forma de PrEP, constituindo-se como um aliado no enfrentamento à pandemia, já que ainda não há vacina ou cura disponível. Primeiro a PrEP foi lançada em forma de comprimidos e exigia a utilização diária do medicamento. Recentemente, a indústria farmacêutica lançou uma versão injetável – o medicamento cabotegravir, de ação prolongada, cuja principal vantagem é o aumento da adesão ao tratamento e a comodidade de tomar uma dose do remédio que faz efeito a médio e longo prazo. Desde 2022, a Organização Mundial da Saúde passou a recomendar seu uso para a prevenção contra infecções causadas pelo vírus.

Antonio Flores é otimista em relação ao uso do PrEP injetável. Segundo ele, a estratégia, associada à testagem da população, acesso ao tratamento para suprimir a carga viral e a programas de engajamento comunitário pode ter impacto positivo no combate à pandemia da Aids. “A PrEP é uma tecnologia de saúde que vai mudar o jogo em relação ao enfrentamento da doença, assim como a versão oral já mostrou benefícios na prevenção ao HIV/Aids”, avalia. E completa: “desde a década de 1980, quando a doença surgiu, a vacina sempre foi algo aguardado, mas, até hoje, não temos um imunizante. E nem estamos perto de descobri-lo. Com a PrEP injetável, temos uma forma de prevenção de longa duração, já que só é preciso usar de dois em dois meses. Esse fator aumenta o engajamento das pessoas que antes, na versão oral, precisavam tomar comprimidos diariamente. Pensando em diferentes realidades, onde os serviços de saúde são difíceis de chegar ou que o estigma é grande, o uso da PrEP a cada dois meses pode derrubar barreiras de acesso”.

Estudos demonstram que a utilização da PrEP associada a outras medidas de saúde tiveram impactos positivos. Em Amsterdã, na Holanda, a utilização de PrEP, associada ao tratamento de infecções agudas causadas pelo HIV e à implementação de estratégias para alcançar pessoas, provocou declínio de 95% nas novas infecções. Por três anos, uma clínica em Londres registou queda de 90% nas infecções recentes por HIV entre homens gays e bissexuais que utilizam os serviços. A unidade associou diversas estratégias, como a oferta de PrEP, melhoria nas taxas de diagnóstico de HIV e aumento no número de pessoas em tratamento. Além disso, médicos foram encorajados a construir parcerias com populações-chave. Os resultados mostram que a estratégia foi bem-sucedida.

MSF irá implementar, até o final de 2024, o uso de PrEP injetável em projetos na África, onde a doença ainda é um grave problema de saúde pública. Atualmente, a organização humanitária oferta a versão oral aos seus pacientes em diversos locais, nos quais a população também encontra serviços de testagem, atendimento médico e tratamento para a doença. Só em 2022, MSF atendeu mais de 31.500 pessoas em terapia antirretroviral de primeira linha, além de 6.570 de segunda linha, pois esses pacientes haviam apresentado falência terapêutica aos medicamentos de primeira.

MSF aponta que, embora a PrEP tenha potencial para transformar a prevenção ao HIV, as práticas abusivas da farmacêutica ViiV, que produz o cabotegravir, cria barreiras de acesso ao injetável, especialmente em países de baixa e média renda. E essa não é uma novidade. Desde o início da pandemia provocada pelo HIV, MSF tem se posicionado contra a exclusão dos países de média e baixa renda ao tratamento da doença. “Entramos na discussão dizendo: os medicamentos são caros e há um monopólio por parte dos laboratórios, que produzem a medicação e têm as patentes. Logo, eles controlam a distribuição e o preço, que é muito alto. Na África, a epidemia era uma questão séria de saúde pública que não podia ser negligenciada. Era e ainda é preciso discutir as questões voltadas ao acesso às tecnologias de saúde. As pessoas em situação de maior vulnerabilidade não podem ser deixadas de lado”, explica Flores.

Mais de 40 anos depois, o mesmo ainda acontece com o cabotegravir de ação prolongada para a prevenção do HIV. A organização cobrou publicamente que a farmacêutica divulgasse de maneira transparente as informações sobre o volume disponível da medicação, os preços praticados e a distribuição geográfica planejada para ela. Até o momento, sem grande sucesso. Para MSF, a empresa precisa redefinir a prioridade da distribuição global às pessoas com maior risco de contrair HIV, especialmente em países pobres, assim como garantir preços acessíveis para que os governos possam disponibilizá-los de forma sustentável para quem mais precisa.

Herbert de Sousa, o Betinho, importante ativista dos direitos humanos no Brasil, ensinou que a cura da Aids é uma possibilidade real, justamente porque essa ideia nos mobiliza. Entretanto, para muitos países, o fim da pandemia da Aids parece estar longe, porque é preciso mais que tecnologias biomédicas, metas e slogans. Concordo com Parker de que, para isso, a solidariedade é fundamental, representada pela capacidade de compreender a dor e o sofrimento das pessoas.

Na história da Aids, a solidariedade surgiu quando não havia nenhum recurso técnico, preventivo ou medicamentoso. Nada que a medicina pudesse ofertar. Diante disso, a solidariedade emergiu no pensamento de pessoas como Herbert Daniel e Betinho, que falava da solidariedade como a única “vacina” disponível para o HIV, e isso vale para os tempos atuais. Hoje, existem mais recursos técnicos do que antes, mas a exclusão e o estigma persistem, sem remédio farmacológico, mas que podem ser atenuados com práticas ético-políticas concretas. Para o fim da pandemia da Aids, é preciso combater os determinantes políticos, sociais, econômicos e culturais da opressão e do preconceito que ainda assolam populações que vivem com a doença.

A solidariedade foi o ponto de partida desde a descoberta da Aids, e precisa continuar sendo. Para o fim da pandemia, é preciso também acabar com desigualdades de gênero, raça e classe social, além de implementar ações equânimes considerando países de baixa e média renda, para que esse “fim” não seja apenas mais uma metáfora ficcional e cinematográfica. Porque, como no filme, a vida continua.

 

Fonte: Por Roger Flores Ceccon, no Le Monde