Aviso:
Este não é um comentário sobre o filme Ainda estou aqui e a
vitória (merecidíssima!) do Oscar. Quero me deter sobre os temas da memória e
do esquecimento, aspectos centrais do filme, e o que eles suscitam sobre o
conhecimento histórico e o ensino de história.
A
assertiva “ainda estou aqui”, que dá título ao filme, remete ao fio de memória
que resta no brilho do olhar de Eunice Paiva, já acometida pelo Alzheimer,
quando vê a imagem de Rubens Paiva na televisão. O marido morto pela ditadura
militar e sua luta por justiça ainda estavam lá, mesmo que numa última centelha
de memória. A frase também remete, por óbvio, à obra de Marcelo Rubens Paiva
que inspirou o filme, o escritor que viveu a tragédia política que se abateu
sobre sua família, e sobre o povo brasileiro, ainda está aqui e registrou tais
acontecimentos em livro.
E o
próprio filme, numa espécie de metalinguagem, é a demonstração de que pela arte
rememoramos esse passado e o mantemos vivo, como se o diretor e os atores
dissessem a cada exibição: Ainda estamos aqui! É provável que boa parte do
público que tem comparecido entusiasticamente aos cinemas se sinta vingado, com
a recente derrota nas urnas daqueles que intentavam um novo período autoritário
na política brasileira.
É
inevitável pensar nessa espécie de Alzheimer que acomete o Brasil, em que
passados 60 anos do golpe de 1964, ainda conta com inúmeros defensores da
ditadura e pedem bis; convivemos bovinamente com um presidente da república que
pregava diariamente nas redes sociais um golpe de estado, e que, como veio a
público, pôs o plano em ação; embarcamos nas ondas negacionistas, revisionistas
e anti-ciência, segundo as quais o nazismo era de esquerda, os africanos
quiseram ser escravizados, o golpe militar não foi golpe e a ditadura não foi
ditadura. Consta no site do ministério da saúde que a doença de Alzheimer é uma
demência neurodegenerativa. Penso que não seja esse o caso do Brasil.
Marcelo
Rubens Paiva, autor do livro Ainda estou aqui, lembrou no
programa Roda Viva da TV Cultura que foi ao
ar em 23/12/2024, que ao participar de uma mesa da FLIP sobre os 50 anos
do golpe de 64, logo após as manifestações de 2013 (naquele momento não se
imaginava o golpe parlamentar do impeachment na presidenta
Dilma Roussef, em agosto/2016), alguns presentes na feira literária se
perguntavam, perplexos sobre os manifestantes: “O que essas pessoas estão lendo
na escola? O que está sendo ensinado?” (29’22’’).
O
questionamento faz algum sentido, não fosse pelo fato de que os participantes
daquelas manifestações e das que se seguiram, alguns já pedindo intervenção
militar, eram sujeitos de diferentes faixas etárias e que, portanto, estudaram
na educação básica nos anos 1960, 1970, 1980, 1990, 2000… Oras, se os
responsáveis por essa situação são a escola e seus professores – o que estão
lendo e o que está sendo ensinado? –, o problema é mais antigo do que
poderíamos supor. Os incautos diriam: “A escola do meu tempo é que era boa”.
Não era.
Nas
décadas passadas, como fartamente pesquisado, documentado e discutido, os
índices de reprovação e de evasão/expulsão nas escolas públicas eram
altíssimos, notadamente entre os filhos da classe trabalhadora. Claro que
alguém sempre passava pelo funil e chegava ao fim do que hoje chamamos Ensino
Médio, e alguns pouquíssimos até ingressavam no ensino superior. Essa educação
escolar excludente, decididamente, não era boa. Nas décadas seguintes
observamos uma espécie de exclusão por dentro, todos os estudantes eram
aprovados em sistemas de promoção automática, mas chegavam ao final do Ensino
Médio semialfabetizados. Convenhamos, isso também não é bom.
A culpa
invariavelmente recaia (e ainda recai) sobre a escola e seus professores, mas
pouco ou nada se fala das políticas públicas voltadas à educação e das
finalidades imputadas pelos grupos sociais dominantes à essa instituição. No
atual momento, por exemplo, como discutimos no artigo “O Jogo das disputas
curriculares”,
publicado no site A Terra é Redonda, a finalidade reside fundamentalmente
na formação do precariado e na inculcação da ideologia neoliberal na cabeça dos
estudantes, daí a criação de “disciplinas” alienígenas como Empreendedorismo e
Projeto de Vida.
No caso
específico do conhecimento histórico, a responsabilidade recai sempre sobre os
professores de história. O que eles estão ensinando sobre a história do Brasil?
Quais leituras estão indicando?
Sabe-se
que o conhecimento histórico, seja lá qual for, não se constitui apenas nos
bancos escolares, mas também em outras formas de socialização: em casa, no
botequim, com os amigos, nas igrejas e nos sindicatos, nos jornais e nos
livros, nas novelas e nos filmes, na TV aberta e na fechada, cada vez mais nas
redes sociais (Facebook, Instagram, X, WhatsApp, Telegram, YouTube, TikTok).
Contudo, não se pode negar que a instituição escolar, local onde passamos boa
parte das nossas vidas, foi e ainda é a forma hegemônica de socialização.
Já a
disciplina escolar história, consta nos currículos escolares brasileiros desde
a 1ª metade do século XIX, passando por diversas conformações, e sempre teve um
papel crucial na formação de certa identidade[iii] brasileira e de
noção de cidadão/cidadania: cristão, branco, eurocêntrico, cumpridor das leis,
pagador de impostos, patriótico, nacionalista, crítico, democrático,
transformador, decolonial, antirracista, intercultural, feminista.
No
ensino de história a ideia de que “antigamente é que era bom” é uma constante.
O ensino dessa disciplina foi muitas vezes factual, laudatório, destacando
grandes vultos e eventos notáveis, decoreba de datas e de nomes. No final dos
anos 1950 e início dos anos 1960, houve busca de renovação do ensino dessa
disciplina, como é o caso, por exemplo, de Emília Viotti da Costa, então
professora do Colégio de Aplicação da USP, que em artigo de 1957, entendia
que a História “educa a imaginação”, desenvolve o “espírito crítico” e
“capacidade de julgamento” e que a “análise de situações passadas cria o hábito
da análise de situações contemporâneas”.
Também
Joel Rufino dos Santos e outros, em publicação editada pelo MEC
intitulada Coleção História Nova (1964), um pouco antes do
golpe militar, propunham “que de uma nova reflexão sobre os dados componentes
de nossa história se passe de imediato àquela ação capaz de dar ao povo
brasileiro o Brasil pelo qual ele realmente anseia”. Essas iniciativas não
duraram muito tempo, com o golpe a ditadura militar promoveu um retrocesso
também nesse campo.
Nos
anos 1980, com a crise da ditadura, a chamada “abertura lenta, gradual e
segura” e o processo de redemocratização, observamos a retomada e o surgimento
de diferentes propostas e práticas curriculares inovadoras no ensino de
história, assim como houve renovação na produção didática, com novos temas e
abordagens.
Houve
momentos, anos 1980 e 1990, em que se acreditava numa potencialidade quase
revolucionária do ensino de história, certa dimensão utópica rondava os
professores de história, que se investiam de um papel transformador quando
lecionavam. Nas décadas mais recentes novas demandas chegaram a essa disciplina
escolar: LGBTQIAPN+, racismo, antirracismo, feminismo, gênero. Na 1ª década
século XXI foram aprovadas as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, tornando
obrigatório o ensino de história e cultura africana e afrobrasileira e
indígena, respectivamente, que incidiram diretamente sobre o currículo de
história, provocando intenso debate.
Não
obstante os avanços e recuos, acertos e equívocos da disciplina História, na
última década, não por coincidência com a crise do 2º governo de Dilma
Rousseff, fomos atropelados pela BNCC, que ao contrário do tem sido afirmado,
não estava prevista na LDB 9394/96, que falava apenas em base nacional comum,
não havendo o “curricular”. Tal reforma curricular padronizou conhecimentos e
pasteurizou disciplinas em áreas, diluindo a História numa maçaroca chamada
Ciências humanas e sociais aplicadas, mistureba que envolve história,
sociologia, filosofia e geografia, como se não houvesse especificidades
epistemológicas. História deixa de ser “disciplina escolar” para ser
“componente curricular”, um componente que pode ser dosado na área e até
extirpado, se for o caso.
O
chamado Novo Ensino Médio, que de novo não tem nada, criou as tais Trilhas
Formativas, que ninguém sabe explicar exatamente o que seja, e se juntou aos
novíssimos aliens curriculares (empreendedorismo, projeto de
vida, liderança, oratória, et.c), que não possuem lastro em nenhuma ciência de
referência e podem ser dadas por qualquer sujeito disponível.
Como no
fundo do poço pode ter um alçapão, no estado de São Paulo, a dupla Tarcísio de
Freitas e Renato Feder dispensou os livros didáticos do PNLD (selecionados em
rigoroso processo seletivo do MEC, adquiridos e distribuídos pela União aos
estados) e enfiou goela abaixo da rede pública paulista a plataformização do
ensino (que já havia sido feita no Paraná pelo governador Rato Jr. e pelo mesmo
Feder), na qual professores são reduzidos a meros passadores de slides de
qualidade duvidosa.
Sendo
assim, tais professores não mais planejam suas aulas, não escolhem ou elaboram
seus materiais didáticos, não selecionam os conteúdos, não avaliam. Apenas
executam, acessam plataformas, que controlam suas ações e dos alunos, e
despejam algum conteúdo pré-determinado.
E o
horror continua, agora, em 2025, fomos informados que as escolas públicas
paulistas de tempo parcial e integral no Ensino Médio, com jornada de 7 horas
diárias, perderam 35,1% das aulas da área de humanidades; o ensino noturno
perdeu 23,8%; as escolas de tempo integral com jornada de 9 horas diárias,
foram reduzidas em 22,2% e as turmas de EJA, 57,1%[vii]. Desse modo, temas
como ditadura militar ou escravidão no Brasil ficam reduzidos a ½ dúzia de
slides a serem aplicados numa hora/aula.
Se a
escola pública idílica “de antigamente” não era boa, a atual piorou, e o ensino
de história vai de roldão. É certo que as recentes reformas curriculares
levadas a cabo na última década por fundações privadas, (que ainda dão as
cartas como se não houvesse amanhã, com a anuência dos últimos governos),
aniquilaram todo e qualquer debate educacional que havia no país, e fizeram
tábula rasa das diversas pesquisas e iniciativas bem-sucedidas dos últimos 50
anos.
Nesse
momento em que o tema da ditadura militar, com seu autoritarismo, repressão,
violência, perseguições, tortura e arbitrariedade, voltam a despertar o
interesse de setores da população, e a disciplina história é chamada a
contribuir com o debate, talvez seja adequado perguntarmos: Ainda estaremos
aqui?
Antes
de indagarmos “O que essas pessoas estão lendo na escola?” e “O que está sendo
ensinado pelos professores de história?”, é preciso, com urgência, considerar a
negligência com que temos tratado o conhecimento histórico nas escolas
brasileiras, notadamente as públicas. Ainda estaremos aqui? No que depender da
BNCC, do “Novo” Ensino Médio e da plataformização do ensino escolar, receio que
a resposta seja negativa. Não estaremos.
Fonte: Por Antonio Simplicio de Almeida Neto, em A Terra é Redonda
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