É
mais importante ter generais como Braga Netto e Heleno como réus do que
Bolsonaro, diz historiador
Nesta
terça-feira (25/3), as atenções do mundo político se voltaram para a 1ª Turma
do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Seus
cinco ministros vão julgar a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por crimes como
tentativa de golpe de Estado no contexto das eleições de 2022. Se eles acatarem
a denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR), Bolsonaro vai virar
réu neste processo.
O
julgamento é aguardado à esquerda e à direita dada a relevância política do
ex-presidente. Mesmo fora do poder, ele é considerado por políticos e
especialistas como a maior liderança da direita no Brasil, neste momento.
Mas
para o professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Carlos Fico, mais importante que a possibilidade de Bolsonaro virar réu por
tentativa de golpe é a chance de que isso aconteça a oficiais generais das
Forças Armadas.
"Eu
acho mais importante a admissão (da denúncia) [...] a passagem à condição de
réu dos generais Braga Netto e (Augusto) Heleno. Mais até que do que
em relação ao ex-presidente Bolsonaro", defende Fico em entrevista à BBC
News Brasil.
No
julgamento desta semana, o STF vai avaliar a denúncia contra o núcleo 1 da
acusação feita pela PGR.
As
defesas de todos, exceto Mauro Cid, alegam inocência e
negam qualquer participação na suposta tentativa de golpe. Mauro Cid, por sua
vez, firmou um acordo de colaboração premiada com a Justiça e admitiu condutas
irregulares.
Carlos
Fico é professor titular de História e um dos principais pesquisadores do
Brasil sobre o papel dos militares na história política do país.
Ele é
autor de livros como "O golpe de 1964: momentos decisivos" e
atualmente está escrevendo outro sobre todos os golpes ou tentativas de golpe
orquestradas por militares no Brasil.
Ele
sustenta que o julgamento desta semana pode gerar situações inéditas na
história do Brasil.
Segundo
ele, nunca um ex-presidente e oficiais generais foram processados e julgados
por tentativas de golpe de Estado.
Crítico
do que ele chama de "tradição intervencionista" das Forças Armadas,
ele diz que a ida de oficiais generais como Braga Netto ou Augusto Heleno para
o banco dos réus por tentativa de golpe terá um forte impacto.
"Levar
esses generais, embora eles estejam na reserva, à condição de réus acusados de
planejar um golpe de Estado tem muito significado político e simbólico",
afirma o professor.
Na
entrevista à BBC News Brasil, Fico diz, no entanto, que não acredita que o
julgamento poderá acabar com a crença entre militares de que eles podem atuar
como "poder moderador" da República. Isso só começaria a acontecer se
o Congresso Nacional alterasse a redação do artigo nº 142 da Constituição Federal.
O
artigo descreve as atribuições das Forças Armadas e é frequentemente citado por
militantes de direita que defendiam uma intervenção militar após a vitória
de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de
2022. Para Fico, é preciso alterar a redação do artigo para acabar com as
interpretações de que os militares poderiam atuar como um poder moderador.
Fico
também diz não acreditar que o julgamento vai reduzir o eleitorado de
Bolsonaro, que o ex-presidente tenta se posicionar como um "mártir"
político e defende que o Congresso Nacional não aprove anistia aos envolvidos
nos atos de 8 de janeiro de 2023.
"A
tradição brasileira de leniência com militares golpistas tem sido muito
prejudicial no sentido de fazer persistir esse entendimento equivocado entre os
militares de que eles seriam um garantidor da República com direito de intervir
em situações de crise", diz o professor.
¨
Confira
os principais trechos da entrevista:
- O Brasil poderá
ter um ex-presidente e oficiais das Forças Armadas na condição de réus por
tentativa de golpe de Estado. Qual é a relevância histórica disso?
Carlos
Fico - A
relevância é o ineditismo. É claro que já houve no passado situações
assemelhadas. A mais parecida envolveu o ex-presidente Hermes da Fonseca, que
governou o Brasil de 1910 a 1914 e se envolveu numa tentativa de golpe em 1922.
Também tem um filho envolvido, o Euclides Hermes da Fonseca, que era o
comandante do Forte de Copacabana. Foi o famoso episódio dos "18 do
Forte". Esse episódio foi uma tentativa de golpe militar contra o
presidente Epitácio Pessoa e, tudo indica, à frente do qual estava o
ex-presidente Hermes da Fonseca, que foi preso e foi submetido a um inquérito,
mas acabou morrendo antes que o inquérito se concluísse. É o único caso
assemelhado e muito distante na história de modo que o envolvimento de um
ex-presidente numa tentativa de golpe e ele ser submetido a julgamento é algo
inédito. Mas tem algo ainda mais inédito. Vários militares, no passado, já
foram submetidos à prisão, no entanto, isso sempre no contexto de crises
institucionais muito graves e, por ordem do Executivo. Então, temos um outro
ineditismo porque o julgamento desta tentativa de golpe de 2022 está sendo
conduzida em período de normalidade democrática e pelo Poder Judiciário, com
todas as garantias processuais.
- O que mudou na
estrutura social e política do Brasil que permite que isso esteja
acontecendo?
Fico
- O
que mudou foi o empoderamento que a Constituição de 1988 deu ao STF e à
Procuradoria-Geral da República. Antes de 1988, esses órgãos não tinham o papel
privilegiado que têm hoje. Isso tem um impacto muito grande porque as
investigações estão se dando num contexto de normalidade democrática e com
instituições fortes [...] É esse fortalecimento institucional que garante a
normalidade democrática do momento e o possível julgamento dessas pessoas.
- Há muitos
militantes de direita que concordam que isso só está ocorrendo em razão do
empoderamento do STF. Segundo eles, haveria uma espécie de
"superempoderamento" do STF. Na sua avaliação, o fato de Jair
Bolsonaro e militares poderem virar réus é positivo ou negativo para a
sociedade brasileira?
Fico
- É
altamente positivo que o STF tenha a última palavra sempre, ainda que erre. Do
contrário, quem vai decidir? As Forças Armadas? A população nas ruas? Para o
perfeito funcionamento da democracia é necessário que o Poder Judiciário tenha
a última palavra [...] Se as coisas estão sendo conduzidas de acordo com as
regras emanadas pela Constituição, não vejo como isso pode ser considerado
negativo. Até porque nós temos uma tradição muito negativa de intervencionismo
militar na qual as Forças Armadas se consideravam o poder moderador e teriam a
palavra final, como se fosse um equivalente ao poder poder moderador do
Império.
- Que impacto, se
é que algum, esse julgamento vai ter sobre essa tradição?
Fico
- Olha…
inclusive eu acho mais importante a admissão (da denúncia) [...] a passagem à
condição de réu dos generais Braga Netto e (Augusto Heleno)...mais até que do
ex-presidente Bolsonaro. Do meu ponto de vista, a qualificação desses dois
generais tem mais importância. Levar esses generais, embora estejam na reserva,
à condição de réus acusados de planejar um golpe de Estado tem muito
significado político e simbólico. Me parece que as Forças Armadas, como se diz
na economia, já precificaram uma eventual condenação desses dois generais
usando estratégia de distinguir a instituição dos indivíduos que a compõem.
- Que sentido
simbólico é esse?
Fico
- O
sentido de que nenhum militar golpista na história do Brasil, e foram muitos,
nenhum jamais foi punido. Vou lançar um livro em maio no qual eu demonstro isso
estudando todas as tentativas de Golpe desde a proclamação da República até o
último, em 2022. Alguns até foram alvo de inquéritos ou processos
disciplinares, mas logo o Congresso Nacional aprovou uma anistia [...] Isso vai
modificar a realidade da democracia brasileira, que tem essa fragilidade
estrutural da presença intervencionista dos militares? Eu acho que não. O que
realmente vai alterar esse quadro da tradição de intervencionismo militar no
Brasil são outras iniciativas, como a mudança da redação do artigo 142 na
Constituição Federal.
- Por que, na sua
avaliação, esse julgamento não vai mudar a realidade da democracia
brasileira?
Fico
- Em
relação às consequências desse julgamento, eu posso dizer duas coisas. Uma é
que, sim, esse julgamento terá um impacto simbólico, sobretudo no interior das
Forças Armadas, porque se trata de uma coisa inédita. Mas não me parece que o
intervencionismo militar vá se resolver com esse julgamento. Eu acho que a
tradição de intervencionismo militar somente vai terminar, numa perspectiva
otimista, se a sociedade brasileira, por meio do Congresso Nacional, alterar a
redação do artigo 142, mas me parece que isto não está no horizonte. Creio que
isso seria fundamental para dizer claramente para as Forças Armadas que elas
não são garantidoras dos poderes constitucionais e muito menos poder moderador.
- O argumento de
Bolsonaro, de que não houve tentativa de golpe por não ter havido uso da
força faz sentido?
Fico
- Houve
uma tentativa de golpe que fracassou supostamente porque a maioria do
Alto-Comando do Exército não aderiu — algo bastante preocupante porque, nesse
caso, teria havido o apoio de alguns integrantes e os demais não denunciaram a
existência do plano [...] O crime em questão é a tentativa. A tentativa de
golpe teria sido bem-sucedida se tivesse havido adesão dos militares e emprego,
ainda que persuasivo, da força.
- Há um movimento
liderado por militantes de direita defendendo a anistia aos envolvidos nos
atos de 8 de janeiro de 2023. Também há um entendimento de que ela poderia
beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro. Qual sua opinião sobre essa
tentativa de aprovar uma anistia?
Fico
- Em
todos os episódios de tentativas de golpe de Estado, sempre houve anistia aos
militares. Neste caso mais recente, temos a peculiaridade do envolvimento de
civis nos episódios de 8 de janeiro de 2023. Provavelmente, surgirá uma
pressão, também, em relação à anistia desse núcleo conspirador que vai a
julgamento agora. Isso sempre aconteceu. Minha surpresa seria se não houvesse
nada nesse sentido [...] Eu espero que não haja a anistia caso haja condenação
das pessoas envolvidas, seja no núcleo conspirador, seja em outras atividades
igualmente condenáveis.
- Por que o senhor
espera que não haja anistia?
Fico
- Eu
espero que não haja porque a tradição brasileira de leniência com militares
golpistas tem sido muito prejudicial no sentido de fazer persistir esse
entendimento equivocado entre os militares de que eles seriam um garantidor da
República com direito de intervir em situações de crise. Vimos os episódios que
marcaram o governo Bolsonaro. A todo momento, os generais Heleno e (o
ex-vice-presidente Hamilton) Mourão falavam do artigo nº 142 como se ele desse
às Forças Armadas o direito de intervir em situações de crise. O fato de ter
havido anistia aos militares golpistas na história republicana foi sempre muito
negativa porque deu a impressão de que a sociedade não se incomodava.
- Os atuais
defensores da anistia aos envolvidos no 8 de janeiro têm feito uma
comparação com a campanha da anistia que resultou na lei da anistia de
1979. É possível comparar uma coisa à outra?
Fico
- As
pessoas que fazem essa comparação não conhecem a história do Brasil [...] Há
pessoas que se referem à ditadura militar e dizem: "Ah! Mas não vão ver os
dois lados?". Mas que dois lados? Na esquerda, que se posicionou contra a
ditadura militar, ou as pessoas foram mortas ou os que não foram mortos foram
presos, julgados e condenados por uma justiça militar muito dura. Foram
milhares de condenações de opositores do regime pela justiça militar. A
campanha da anistia visava dar anistia a pessoas que foram condenadas de forma
muito brutal e aos que conseguiram sobreviver à tortura [...] Não há
equivalência possível entre a atitude de oposição a um regime ditatorial que
matava e torturava e o momento atual.
- Qual o risco de
aumento da polarização política no Brasil em função deste julgamento
envolvendo Bolsonaro e militares?
Fico
- Não
gosto da palavra polarização porque dá a impressão de que a gente está vivendo
uma coisa inédita do ponto de vista político como essa contraposição entre
setores. Isso sempre acontece [...] É claro que o julgamento do ex-presidente
Bolsonaro e do restante do núcleo conspiratório vai ser também utilizado por
todos os setores políticos como arma de proselitismo político.
- Que efeitos esse
julgamento terá para o tamanho do bolsonarismo?
Fico
- Não
faço ideia. O que a gente tem percebido em relação a essas lideranças de
extrema direita, não só aqui no Brasil, mas em outras partes do mundo, é que
mesmo quando elas estão envolvidas em situações criminosas, ainda assim, o seu
eleitorado se mantém fiel [...] Ele (Bolsonaro) não me parece ter perdido, até
o presente momento, o seu eleitorado mais fiel. Não sei se uma eventual
condenação terá impacto do ponto de vista da fidelidade do seu eleitorado.
- Na sua
avaliação, qual a probabilidade de Bolsonaro se transformar numa espécie
de mártir político a partir desse julgamento?
Fico
- Tornar-se
mártir é tudo o que o ex-presidente Jair Bolsonaro está tentando fazer. Ele
tenta se colocar como vítima, o que é uma estratégia bastante comum de
lideranças políticas que são pegas pela Justiça. Agora, essa estratégia vai
emplacar? Realmente, eu não sei. Provavelmente, entre o eleitorado mais fiel
vai emplacar [...] Agora, para a sociedade como um todo, eu não sei. Muito
provavelmente não vai colar porque ao longo do julgamento, sobretudo se esse
julgamento for transmitido pela TV Justiça, vão ficar evidentes essas provas
que foram colhidas pela Polícia Federal e elas são muito eloquentes [...]
Muitas vezes, as coisas dependem não apenas das tecnicalidades da Justiça, mas
da maneira como a justiça é feita.
¨ Bolsonaro pede 'ajuda
do exterior' em entrevista a jornal britânico
Na
iminência do julgamento da denúncia feita pela
Procuradoria-Geral da República (PGR) por envolvimento em uma
suposta trama golpista, o ex-presidente
Jair Bolsonaro pediu "apoio do exterior" e comparou a situação do
Brasil a uma "ditadura" em entrevista ao jornal britânico Financial
Times.
"Temos
um problema de ditadura, uma ditadura real", disse Bolsonaro na entrevista
publicada nesta terça-feira (25/3).
"O
Brasil não tem como sair dessa situação sozinho. Precisa de apoio do
exterior."
Bolsonaro
disse ainda ao Financial Times que a "ajuda americana é muito
bem-vinda" e agradeceu o presidente americano, Donald Trump, por encerrar
a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), que,
segundo ele, havia "interferido" na maior democracia da América
Latina (o Brasil).
O
ex-presidente não disse o que exatamente espera de Trump.
Principal
órgão público de ajuda humanitária dos EUA, a USAID financia no Brasil
principalmente projetos ambientais e no apoio a populações vulneráveis, em
parcerias com órgãos públicos e outras organizações.
Recentemente,
nomes da direita brasileira, como Eduardo Bolsonaro, têm acusado a agência, sob
o governo Biden, de interferir nas eleições brasileiras.
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Críticas a Alexandre de Moraes
Na
entrevista, Bolsonaro também faz críticas ao ministro do STF Alexandre de
Moraes, relator do processo sobre a suposta trama golpista.
"Teve
pressa em me condenar", disse Bolsonaro. "Ele já tem a sentença para
mim, 28 anos de prisão."
A
defesa de Bolsonaro tem dito que não teve acesso integral às provas colhidas
durante a fase investigatória do processo. Entre as provas estariam dados
extraídos de telefones celulares, computadores e depoimentos.
Na
abertura do julgamento desta terça-feira, Alexandre de Moraes destacou que as
defesas tiveram acesso aos documentos necessários.
O
ex-presidente nega todas acusações e sua defesa tem uma outra grande aposta:
quer que seja retirado da denúncia o acordo de
delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-braço direito de Bolsonaro, que
consideram inválido.
O argumento da defesa, entre outros, é que
Cid foi coagido a colaborar. A PGR e a defesa de Cid reiteram que foi tudo
feito conforme a lei.
"Não
acho que eles me queiram na cadeia, eles me querem morto. É isso que está em
jogo no Brasil", declarou o ex-presidente Bolsonaro.
Em uma
entrevista anterior ao Financial Times, Eduardo Bolsonaro, filho do
ex-presidente que se afastou do cargo de deputado federal
para viver nos EUA,
disse que Alexandre de Moraes cumpria os requisitos para sanções dos EUA sob a
Lei Magnitsky, originalmente criada para punir violadores de direitos humanos
na Rússia.
Eduardo
disse que ficaria nos EUA para se dedicar em tempo integral a convencer o
governo Trump a atuar pela anistia aos envolvidos nos ataques do 8 de janeiro
no Brasil e para obter sanções ao ministro Moraes.
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Inelegível
Bolsonaro
também comentou a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de torná-lo inelegível até 2030.
O
ex-presidente foi julgado por causa de um episódio em julho de 2022, quando
reuniu dezenas de diplomatas estrangeiros no Palácio da Alvorada e fez uma
apresentação divulgando notícias falsas sobre insegurança das urnas eletrônicas
e teorias da conspiração sobre a legitimidade das eleições.
O
encontro foi transmitido pela emissora pública TV Brasil.
"Eu
não estar na cédula eleitoral é uma negação da democracia", disse
Bolsonaro na entrevista ao Financial Times. "É o fim da democracia."
Ele
comparou sua situação à da oposição na Venezuela, cuja principal
líder, María Corina
Machado, foi impedida de concorrer nas eleições do ano passado pelo
regime de Nicolás Maduro.
"A
única bandeira que Lula tem é a falsa bandeira da defesa da democracia. Ele é a
mesma pessoa que estendeu o tapete vermelho para Maduro", disse o
ex-presidente, referindo-se à visita do venezuelano a Brasília, em 2023.
Fonte:
BBC News Brasil
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