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tentativas de golpes de Estado fracassadas que marcaram a história do Brasil
O
último ano do governo de Jair Bolsonaro (PL) e os primeiros
dias de 2023, que culminaram no ataque de seus apoiadores a Brasília em 8 de
janeiro, no início do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), estão sendo
tratados pela Polícia Federal (PF) e por diversos especialistas como uma
tentativa de golpe de Estado no Brasil.
A
denúncia criminal foi apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em
18 de fevereiro, e a partir desta terça-feira (25/03), cinco ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) decidirão se o ex-presidente Jair Bolsonaro e
outros sete acusados se tornarão réus por tentativa de golpe de Estado e outros
crimes.
Já
em julho de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro colocava em
questão a lisura das eleições e conclamava seu ministros a "fazer alguma
coisa antes" do resultado das urnas, que já estaria "pintado".
Nos
sete meses seguintes, e principalmente após a derrota de Bolsonaro para Lula na
eleição, houve acampamentos em frente a quartéis pedindo intervenção militar, bloqueios de estradas e tentativa de atentado a bomba no Aeroporto de Brasília.
Segundo
investigações da PF reveladas em novembro, alguns militares teriam tramado, no
final de 2022, além do golpe de Estado, um plano para assassinar Lula, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Bolsonaro
negou sua participação em qualquer plano golpista e disse que "ninguém vai
dar golpe com general da reserva e mais meia dúzia de oficiais. É um absurdo o
que estão falando".
De
fato, a história do país tem bons exemplos de tentativas de golpe fracassadas —
muitas delas com pouca adesão de setores das Forças Armadas.
As
investigações recentes trazem à tona semelhanças com esses episódios.
Neles,
aparecem recorrentemente fatores como falta de articulação, resistência de
instituições e doses de incompetência.
Para
David Maciel, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), as evidências
que têm surgido das investigações que apontam para uma tentativa de golpe entre
2022 e 2023 indicam alguns ineditismos, em comparação com outros episódios
históricos.
"Nenhuma
tentativa frustrada de golpe se caracterizou como um autogolpe, ou seja, quando
o próprio governo de plantão busca se perpetuar ao romper com a legalidade
vigente", diz Maciel, autor do livro A Argamassa da Ordem - Da
Ditadura Militar à Nova República.
O
autogolpe mais famoso — e neste caso, bem-sucedido — da história do Brasil
aconteceu em 1937, quando Getúlio Vargas proclamou o Estado Novo. Ele chegara ao poder por meio da Revolução
de 1930 e fora eleito em 1934. Três anos depois, liderou o golpe e virou
ditador.
Para
Rodrigo Patto Sá Motta, coordenador do Laboratório de História do Tempo
Presente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os acontecimentos
recentes lembram outro momento da história.
"Guardadas
as devidas proporções, essa mistura de marcha com protesto e atitudes de
vandalismo lembrou a Marcha sobre Roma [evento em que os fascistas tomaram o
poder na Itália, em 1922]."
Autor
de Passados Presentes: O Golpe de 1964 e de outros livros
sobre o período, o historiador vê características em comum entre os fatos
recentes e eventos passados — em especial, o envolvimento de militares de alta
patente e de políticos poderosos.
"Mais
importante do que buscar comparações na história é chamar atenção sobre a
gravidade desse episódio e a necessidade de que ele seja devidamente julgado,
para que não ocorra novamente", defende, acrescentando que o momento atual
pode trazer uma "virada na história da relação dos militares com a política
do Brasil".
"Há
135 anos, eles têm se imaginado como figuras-chave da nossa política, como
atores estratégicos. Fizeram isso alegando que tinham direito, porque eram
muito bem preparados. É o momento de superarmos essa retórica."
Sá
Motta argumenta que o governo Bolsonaro demonstrou que esse suposto preparo
acima da média não é realidade.
"Os
militares mostraram sua incompetência ao gerir o país, cometeram vários
equívocos, inclusive criminosos, no caso da pandemia, e ainda assim queriam
permanecer no poder à força. Julgamento e punição são essenciais, até porque
eles nunca foram punidos, especialmente os de alta patente."
O
historiador lembra que houve vários momentos da história brasileira em que
militares tentaram ou conseguiram dar um golpe de Estado — conheça quatro dos
mais emblemáticos no último século.
·
Levante Integralista (1938)
Em
1937, durante o governo Getúlio Vargas, a Ação Integralista Brasileira
(AIB), movimento político ultranacionalista
e de inspiração fascista, abraçou com entusiasmo o golpe que decretou o Estado
Novo.
A
participação e o apoio prestados, além das movimentações do próprio Vargas,
levaram os integralistas a pensar que teriam papel importante na nova
conjuntura do governo.
Eles
estavam empolgados. Seu líder, Plínio Salgado, já se sentia
ministro da Educação, segundo a historiadora Marly de Almeida Gomes Vianna
em um artigo apresentado no Simpósio
Nacional de História.
Em 1º
de novembro de 1937, dias antes do golpe, milhares de integralistas fizeram uma
parada em estilo militar no Rio de Janeiro, então capital federal, para saudar Vargas.
Mas um
decreto-lei ainda naquele ano frustrou os sonhos do grupo ao extinguir todas as
agremiações políticas no país — incluindo a AIB.
Em maio
de 1938, os integralistas resolveram tentar destituir Vargas do poder, em
parceria com militares — as ideias de extrema direita da AIB tinham muita
penetração na Marinha, mas não tanto no Exército, segundo Gomes Vianna.
"A
alma da conspiração [...] foram os militares", escreveu a autora.
A ideia
era prender lideranças civis do governo e autoridades policiais; capturar
estações de telégrafo, telefone, rádio e luz; bloquear pontes e tomar de
assalto o Palácio Guanabara. Hoje sede do governo do Rio de Janeiro, o edifício
foi, no Estado Novo, residência oficial do presidente.
Além
disso, os golpistas queriam dominar sedes policiais e unidades navais.
"A
maioria das ações planejadas não chegou a se realizar, por ausência de comando
ou por absoluta incompetência dos mobilizados", diz a historiadora.
Somente
duas tiveram relevância, os ataques ao Palácio Guanabara e ao Arsenal da
Marinha.
Na
emboscada na residência presidencial, os invasores dominaram os guardas e
abriram fogo contra os aposentos da família Vargas. Os reforços militares para
protegê-los demoraram para chegar, até que o líder do ataque, o tenente do
Exército Severo Fournier, fugiu pelo morro nos fundos do palácio.
A
investida contra o Arsenal da Marinha também fracassou. No fim, o complô foi
uma tentativa de golpe atrapalhada para derrubar um governo instituído por um
golpe bem-sucedido.
Segundo
reportagens da época, oito pessoas morreram — e Getúlio continuou no poder.
·
Tentativa de deposição de Getúlio Vargas (1954)
Vargas
governava de novo o país, dessa vez eleito por voto direto em 1950, quando
venceu o brigadeiro Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional (UDN). Foi a
segunda derrota consecutiva de Gomes, que em 1945 perdera a eleição para Eurico
Gaspar Dutra, ex-ministro e candidato de Vargas.
Em
1953, a UDN elegeu um novo inimigo público: o novo ministro do Trabalho, João Goulart, então um jovem
político relativamente pouco conhecido no país.
Para
combatê-lo, o partido contou com o apoio maciço de uma velha aliada, a imprensa
do eixo Rio-São Paulo, segundo as historiadoras Lilia M. Schwarcz e Heloisa M.
Starling em Brasil: Uma Biografia.
Jornais
oposicionistas atribuíam ao ministro a liderança das grandes greves de
trabalhadores que aconteciam no país. No ar, havia o temor que o Brasil seria
governado por sindicatos.
"A
mera evocação da 'República sindicalista' deixava a UDN de cabelo em pé, mas
era uma peça de ficção — não existiu nem como projeto nem como alternativa de
poder", escreveram as autoras.
O
jornalista e político Carlos Lacerda, o mais virulento
desses oposicionistas e grande voz do conservadorismo na época, atacava o
ministro sempre que podia — lembrando aos leitores que o herdeiro político de
Vargas, apelidado de Jango, era um jovem de 34 anos solteiro, bonito, rico,
boêmio e namorador.
"Joãozinho
Boa Pinta deve sair do ministério e voltar ao cabaré, que é a sua universidade,
a sua caserna e o seu santuário", escreveu em seu jornal, o Tribuna da
Imprensa.
Em
janeiro de 1954, Jango apresentou sua proposta de reforma, atendendo às
reivindicações do movimento sindical. A principal medida era dobrar o salário
mínimo.
"A
UDN estrilou no Congresso, os jornais oposicionistas cuspiram fogo, mas quem
ameaçou mesmo a estabilidade democrática foram os quartéis", segundo
Schwarcz e Starling.
No mês
seguinte, 42 coronéis e 39 tenentes-coronéis do Exército entregaram uma carta a
seus superiores, que fizeram questão de divulgá-la entre políticos da UDN e
jornalistas alinhados.
Conhecido
como "manifesto dos coronéis", o texto acusava o governo de aceitar
um clima de negociatas e dizia que uma crise de autoridade atingia as Forças
Armadas, ameaçando o país com o risco de desordens. O documento afirmava também
que a proposta salarial aumentava demais as contas públicas.
Jango
não resistiu à pressão e deixou o cargo. Nesse clima de muita instabilidade,
apenas seis meses depois, ocorreu o atentado da Rua Tonelero.
Nessa
rua carioca, em 5 de agosto, um pistoleiro contratado por Gregório Fortunato,
chefe da guarda presidencial, atirou em Carlos Lacerda. Ele ficou ferido, mas o
homem ao seu lado, o major da Aeronáutica Rubens Vaz, morreu.
O
atentado fracassado corroeu a base política de Vargas. Generais divulgaram um
novo manifesto, agora pedindo sua renúncia.
Ao
sobreviver, Lacerda ganhou força política. A trama golpista poderia ganhar
corpo, mas três semanas depois o presidente se matou com um tiro no peito.
Entretanto,
os coronéis que assinaram o manifesto precisariam aguardar mais alguns anos
para tomar o poder de vez.
Isso
porque o redator do "manifesto dos coronéis" era Golbery do Couto e
Silva, que teria papel central, dez anos depois, no Golpe de 1964 e na
subsequente ditadura militar.
Além
dele, outros futuros generais que participariam do regime, como Sylvio Frota e
Ednardo d'Ávila Melo, assinaram o texto.
·
Revolta de Jacareacanga (1956)
O
sábado de Carnaval de 1956 começou com dois oficiais da Aeronáutica, o major
Haroldo Veloso e o capitão José Chaves Lameirão, arrombando um depósito de
munição da Base Aérea dos Afonsos, no Rio de Janeiro, e surrupiando um avião de
combate.
A dupla
voou, cheia de armas e explosivos, até uma guarnição da Força Aérea localizada
em Jacareacanga, extremo-sudoeste do Pará. Udenistas de
carteirinha e fãs de Carlos Lacerda, eles não aceitaram o resultado das
eleições de outubro de 1955, em que Juscelino Kubitschek venceu para presidente
e João Goulart, para vice.
A ideia
era dar início a uma guerra civil no meio do Brasil. Mas eles não ganharam
adesão e, ainda na Quaresma, o levante estava liquidado, contou o jornalista
Claudio Bojunga no livro JK: O Artista do Impossível. Veloso foi
preso e Lameirão fugiu.
O
episódio mostra que, desde o ano anterior, um clima golpista pairava na capital
federal. A atmosfera contava com o endosso, ainda que discreto, de Café Filho,
o vice-presidente que assumiu o governo após o suicídio de Getúlio, e de
ministros poderosos, entre eles Eduardo Gomes, ministro da Aeronáutica e
ex-candidado duplamente derrotado.
No mês
seguinte à eleição, Café Filho se afastou do cargo alegando motivo de saúde. O
presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, assumiu interinamente a
presidência, como mandava a Constituição.
Luz,
que simpatizava com os golpistas, convocou o ministro da Guerra, o general
Henrique Teixeira Lott, para informá-lo que desautorizara uma decisão sua, a
fim de forçá-lo a abdicar do cargo.
Lott
era um legalista convicto, considerado um militar estritamente profissional e
contava com a lealdade das tropas. Ou seja, era uma pedra no sapato para
qualquer tentativa golpista.
O
ministro estava certo de que um golpe se desenhava. Então ele se adiantou, pôs
os tanques na rua, ocupou prédios do governo e isolou a Marinha e a
Aeronáutica, que estavam alinhadas com a trama golpista.
Lott
entregou o caso ao Congresso, que decidiu pela deposição de Carlos Luz. O
presidente do Senado, Nereu Ramos, assumiu a presidência até a posse de
Juscelino, dois meses depois.
Assim,
para evitar um golpe de Estado, o general Lott acabou liderando um golpe
preventivo. Ou um contragolpe, como o dia 11 de novembro de 1955 passou a ser
lembrado.
·
Revolta de Aragarças (1959)
Em
dezembro de 1959, corriam rumores de uma suposta rebelião esquerdista que seria
liderada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e
de uma possível desistência do presidenciável Jânio Quadros, apoiado pela UDN,
de concorrer à eleição de 1960. Foi um rebuliço entre os militares.
Eles
entendiam que isso abriria caminho para JK conseguir eleger seu sucessor — o
que seria mais uma derrota para os udenistas e os conservadores em geral.
Naquele
mês, um avião da Panair que saiu do Rio de Janeiro com destino a Manaus
desapareceu com 46 pessoas a bordo. Não foi um desastre, mas um sequestro: o
primeiro sequestro de uma aeronave na história do Brasil.
Paralelamente,
membros do mesmo grupo roubaram três aviões da Aeronáutica, cheios de
armamentos, na Base Aérea do Galeão, no Rio, e no Aeroporto da Pampulha, em
Belo Horizonte. Estava em curso mais uma tentativa de golpe de Estado.
Com os
cinco aviões em mãos, os rebeldes se instalaram em Aragarças, no sudeste de
Goiás. Seu objetivo era bombardear a então sede da Presidência da República, o
Palácio do Catete, no Rio, e matar JK. O atentado encerraria a hegemonia da
aliança do PTB de Jango e Getúlio com o PSD de Juscelino no poder.
A
Revolta de Aragarças, como ficou conhecida, foi arquitetada pelo chamado
Comando Revolucionário, formado por oficiais da Aeronáutica e do Exército.
O grupo
tentou angariar apoio da população ao divulgar um manifesto em que dizia que o
Brasil corria grave risco de virar comunista. Não deu certo.
O texto
atacava o Executivo ("corrupto"), o Legislativo
("demagógico") e o Judiciário ("omisso").
"Apesar
de o levante ter sido planejado ao longo de dois anos, os rebeldes conseguiram
adesões em número muito inferior ao esperado, o que os levou ao fracasso",
explicou a historiadora Marina Gusmão de Mendonça em um artigo apresentado em uma conferência
da Associação Nacional de História.
Apenas
15 pessoas participaram da intentona. Entre elas, estava o major Haroldo
Veloso, o líder da igualmente fracassada Revolta de Jacareacanga.
JK
havia anistiado os participantes da revolta de três anos antes, na esperança de
sossegar os ânimos golpistas. Por um tempo, deu certo, mas logo eles saíram da
toca de novo.
No dia
seguinte ao sequestro do voo da Panair, a rebelião estava eliminada. Não houve
mortes, e os revoltosos fugiram para países vizinhos.
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Golpe ou revolução?
Definir
o que é uma tentativa de golpe de Estado pode ser complexo, porque a própria
definição de golpe é disputada por setores da sociedade.
"No
léxico político, somente as rupturas de regime que possuem um caráter social e
politicamente conservador – ou seja, que mantêm a ordem social e as classes
dominantes no poder, mesmo que entre elas ocorra alguma alteração na hierarquia
interna – são designadas golpes de Estado", explica David Maciel, da UFG.
Para Sá
Motta, da UFMG, isso é um debate antigo, "especialmente porque os
golpistas de 1964 não gostam de se referir ao Golpe de 1964 como golpe".
"Preferem
chamar de movimento, de revolução".
"A
melhor definição para golpe é quando nós temos um episódio em que uma parte de
agentes estatais ou figuras que fazem parte do aparelho estatal tentam derrubar
ou fazer uma intervenção violenta nas instituições", explica.
"Revolução,
por outro lado, sempre vem de fora do Estado. Quase sempre são episódios
violentos de mudança de poder, movidos por agentes externos, que fazem a
revolução exatamente porque não são contemplados pelo regime político,
pelo status quo. Então, não faz sentido chamar 1964 de revolução,
porque os protagonistas eram agentes internos do Estado", diz Motta.
Além de
1964, foram golpes de Estado a Proclamação da República, em 1889; o início do
Estado Novo, em 1937, e seu fim, em 1945. Todos com ação direta dos militares.
Fonte:
BBC News Brasil
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