COP30:
o capitalismo, o Direito do Trabalho e a destruição de tudo
Este
ano a COP30, uma conferência internacional sobre o clima, será realizada no
Brasil, em Belém do Pará. Tratar de meio ambiente é conversar sobre a iminência
do fim do mundo para os seres viventes. E isso, por si só, deveria ser
suficiente para que se percebesse a íntima relação da crise ambiental com o
modo como produzimos e consumimos alimentos, como vivemos e nos relacionamos.
Não há mágica ou quantidade de dinheiro capaz, hoje, de construir outro futuro,
sem alterar profundamente o presente.
Então,
falar de clima é necessariamente enfrentar a estrutura social em que a
destruição de tudo tornou-se a regra. É preciso problematizar o capitalismo.
Muitos
livros e artigos têm insistido nesse ponto.
A
sociedade capitalista é caracterizada pelo esgotamento dos recursos e pela
exploração dos corpos. Estabelece padrões de afetividade e relacionamento em
que em vez de somar e repartir, acumulamos. Está fundada na necessidade de
trocar trabalho por salário, para poder viver. Até mesmo o conceito de
liberdade está irremediavelmente atrelado à capacidade de venda de trabalho por
capital, como se essa fosse realmente uma escolha e não a condição
(praticamente exclusiva) para sobreviver em uma realidade capitalista.
Como
sempre houve uma parte significativa de pessoas alijadas desse discurso,
sustentá-lo dependeu do apagamento dessas outras vivências. As mulheres, por
exemplo, por muito tempo não foram sujeitas de direito. Eram as sombras de seus
pais, maridos ou filhos. As pessoas racializadas eram coisas passíveis de serem
comercializadas, das quais o trabalho podia ser extraído sem remuneração.
Pessoas sem possibilidade física ou psíquica para fazer a troca de trabalho por
capital foram segregadas, medicadas, rotuladas de incapazes. Os demais seres
foram bestializados e, junto com a água, o ar e a terra, tornaram-se bens
alienáveis, consumíveis, passíveis de serem usufruídos e destruídos.
Em
nossa realidade de país periférico e colonial, a racionalidade capitalista foi
imposta, determinada pela racialização dos corpos (e, pois, pelo imperativo de
extração de trabalho sem pagamento) e pelo aprofundamento da violência de
gênero. Por consequência, o Direito do Trabalho no Brasil sempre foi um
discurso bem mais simbólico do que real, de tal modo que a proteção social
nunca alcançou a maioria das pessoas trabalhadoras.
Por
isso, pode parecer contraintuitivo defender o discurso jurídico trabalhista
como um mecanismo potente para recolocar (e redimensionar) a luta por
estratégias de combate à destruição ambiental. Acontece que essa dimensão
simbólica de transgressão da lógica do capital não pode ser negligenciada.
Estabelece um parâmetro máximo de exploração capaz de – caso levado a sério –
permitir que a maioria das pessoas tenha condições materiais de existência e
possibilidade de vida fora do trabalho. E tem consequências práticas.
Quando
a Justiça do Trabalho impede a despedida; quando a jornada máxima de 8 horas é
respeitada; quando o salário entra na conta é a vida concreta das pessoas
trabalhadoras que se torna menos penosa. Isso significa, diretamente, poder
consumir alimentos mais saudáveis, dormir melhor, fazer atividades físicas,
conviver com os afetos. Indiretamente, implica a possibilidade de ler, estudar,
conversar e, portanto, pensar sobre o que está acontecendo ao nosso redor.
Lembro
agora de um exemplo simples, atual e muito triste. Praticamente não há mais
árvores no bairro onde moro. Os contêineres para resíduos recicláveis foram
todos substituídos, evidenciando uma política municipal de privatização e
apagamento do trabalho ambiental dos catadores.
Quem
está percebendo isso? Quem está se implicando?
A
efetividade dos direitos trabalhistas não garante consciência ambiental nem
política, mas constitui condição de possibilidade para que um outro modo de
viver seja possível, já que o discurso trabalhista define o limite material
necessário para permitir que haja vida além do trabalho. A redução da jornada,
por exemplo, é a forma mais eficaz de aumentar o tempo disponível para
engajamento comunitário. A proteção contra a despedida viabiliza a programação
da vida de um modo menos urgente e predatório.
Se a
destruição ambiental é efetivamente resultado de nossas escolhas coletivas, ter
condições materiais de existência é essencial para que seja possível alterar a
rota, enquanto ainda há tempo.
Claro,
também é preciso pensar na implementação de mais direitos trabalhistas, como a
condição de penosidade a quem trabalha no tempo, especialmente em razão do
calor extremo que cidades como Porto Alegre estão enfrentando. Não apenas para
garantir o pagamento de adicional de salário. Para proibir que o trabalho seja
realizado nos dias em que as temperaturas estão elevadas. É urgente enfrentar
discussões como essa. O problema é que para seguir implementando proteção
social é necessário, antes de tudo, que ela exista.
O que
estamos vivendo hoje, porém, é uma destruição concreta e simbólica do discurso
trabalhista. O aumento expressivo de contratações fraudulentas, em que a pessoa
torna-se empreendedora de si, é exemplo disso. Também são exemplos as inúmeras
decisões banalizando a realização de horas extraordinárias ou da despedida; a
naturalização da violência da terceirização, inclusive pela administração
pública, que tem a obrigação constitucional de contratar mediante concurso. No
campo do acesso à justiça, esse descompromisso se revela no uso de regras do
processo comum em lugar da dinâmica processual trabalhista; no incentivo a
fazer conciliações que implicam renúncia ou na fraude representada pela
aceitação acrítica da figura do falso preposto.
Essa é
uma realidade que vem sendo chancelada por parte da jurisprudência trabalhista
e pela corte constitucional. Ao lado de alterações legislativas violentas, como
é o caso da mal chamada “reforma trabalhista”, decisões que destroem ou
fragilizam direitos sociais compõem um quadro de ausência de proteção que é
nocivo também da perspectiva da nossa (urgente) necessidade de pensar formas de
garantir a continuidade da vida no planeta. O mais assustador é perceber o
quanto pessoas que atuam no ambiente jurídico conseguem, ao mesmo tempo,
demonstrar preocupação com a emergência ambiental e negar proteção social, como
se se tratassem de questões separadas. Como se eliminar direitos, por meio de
reforma legislativa ou decisão judicial, não fosse justamente aprofundar uma
realidade, na qual o tempo e a capacidade de reação são solapados pelo trabalho
obrigatório extenso, precário e mal remunerado.
Quem
atua no sistema de justiça trabalhista precisa assumir sua responsabilidade
diante dessa realidade. Se quiser seguir boicotando as possibilidades de
futuro, que o faça com a consciência de sua implicação nessa história. O
capitalismo não é um anti herói que habita um lugar, de onde emite ordens
capazes de tornar nossa vida mais difícil. É uma estrutura, uma forma de
sociabilidade, com a qual contribuímos diariamente, em todas as instâncias da
nossa existência.
Então,
superá-lo depende de pequenos gestos, mas também de decisões importantes, como
assumir compromisso com o direito social do trabalho, reconhecendo nesse
discurso estatal a potência para a efetividade de uma realidade material menos
violenta. O Direito do Trabalho também não é um ser dotado de vontade própria.
Ele é construído, todos os dias, nos ambientes de trabalho, nas salas de
audiência, nas sessões de julgamento e de deliberação legislativa. Pode ser
perda de tempo escrever tudo isso, sabendo como a estrutura judicial, por
exemplo, está já tão profundamente atravessada por metas e entendimentos que
parecem orientar-se no sentido diametralmente oposto àquele que proponho aqui.
Sabendo do cansaço e do sofrimento de quem pauta sua atuação profissional pelo
ideal de construção de um outro mundo, menos violento e autofágico.
Percebo
o quanto o discurso trabalhista sumiu das reivindicações sindicais e políticas,
com a importante exceção da luta pela redução do tempo de trabalho que, não por
acaso, foi inicialmente mobilizada por movimentos sociais que atuam à margem da
institucionalidade. Esse silenciamento não é um acaso.
Defender
direitos sociais trabalhistas é militar pela vida. Silenciar sobre o desmanche
da proteção social é compactuar com a morte. Separar esses temas serve apenas
para acomodar nossa angústia e alimentar um pacto necropolítico, que parece
ganhar cada vez mais aderência. Daí porque temas como proteção social parecem
quase heréticos em alguns ambientes de discussão. Mas não há outro modo de
colocar a questão, nem há mais tempo para contemporizar.
Minha
proposta, portanto, é que a pauta trabalhista seja tema do debate sobre a
emergência ambiental, não apenas na COP30 em Belém. É urgente uma reformulação
da nossa compreensão sobre o que significa compactuar com a violação dos
parâmetros de exploração do trabalho. Sem radicalizar a proteção social para
quem vive do trabalho, será muito difícil compreender, discutir e engendrar
possibilidades de futuro.
Fonte:
Por Valdete Souto Severo, em Brasil de Fato
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