Suzana Prizendt: (D)efeito Agro - comida cara
e envenenada no território brasileiro
Responda
uma pergunta simples, se você pudesse escolher, compraria comida barata, mas
cheia de agrotóxicos, ou comida cara, mas livre de venenos? Infelizmente,
talvez nenhuma das duas opções seja viável para boa parte da população do país.
Sim – embora a inflação de janeiro de 2025 tenha
desacelerado fortemente -, podemos caminhar para uma única possibilidade, caso
sigamos no curso agroalimentar insustentável atual: ter nos mercados e feiras
somente alimentos com preços “salgados” e que vêm “temperados” com resíduos de
substâncias tóxicas variadas. É preciso entender o que está nos levando a esse
cenário, para darmos um cavalo de pau e seguirmos em outra direção, enquanto há
tempo. Somos o celeiro do mundo, anunciam as propagandas que o setor
agroalimentar espalha aos quatro ventos. Um gigante na produção de comida, que
alimenta não apenas a nossa gente brasileira, mas as gentes de muitos lugares
do globo terrestre. Se esse delírio ruralista fosse verdade, como se explicaria
o fato de que ainda tem tantas pessoas com fome no país? E a carestia dos
produtos? Mesmo sabendo que as contradições são uma constante no sistema
capitalista, como já dizia nosso bom e velho Marx, fica difícil engolir esse
discurso fantasioso frente a uma realidade em que 8,93 milhões de habitantes
do país estão em insegurança alimentar severa e 60,3 milhões não têm acesso
pleno e regular aos alimentos necessários a uma vida digna.
É a
caquética, mas imperativa, receita colonialista: os territórios do sul global
são considerados fontes baratas de matéria prima básica, como produtos
agrícolas e minérios, para o livre abastecimento dos países considerados
desenvolvidos. E, se chegarem a tanto, dado o nível de miséria em vários deles,
formam um mercado consumidor para os produtos altamente industrializados
produzidos por estes últimos. Nem é preciso dizer que a diferença de valor
entre o tipo de produto que se vende e o tipo de produto que se compra é
absolutamente gritante e ajuda a perpetuar a existência de um profundo abismo
econômico entre as chamadas potências mundiais e a ralé planetária. Nesse
processo que se arrasta há séculos, houve uma inegável divisão no setor
agroalimentar entre o que é considerado commodity e o que continua sendo a boa
e velha comida. A primeira categoria é composta de produtos agrícolas que são
internacionalmente padronizados e negociados nas bolsas do mundo afora, podendo
ou não ser destinados à cadeia alimentar, como é o caso dos grãos que vão virar
ração para a criação de animais e óleo para a indústria alimentícia (mas também
da cana-de-açúcar, que pode virar etanol, do eucalipto, que virará papel, do
algodão, que abastece a indústria têxtil e até da própria soja, que vem sendo
muito usada para biodiesel, o que explica parte do aumento do preço do óleo
feito com a leguminosa). Uma vez fora de seu país de origem, é provável que
tais commodities, mesmo se destinadas ao setor comestível, jamais façam parte
do prato da população que o habita. Resumindo: a carne dos animais alimentados
com a ração feita com soja brasileira vai ficar na barriga dos gringos.
Já
aquilo que continua sendo chamado de comida e que forma milenarmente a base da
alimentação dos povos do mundo – como as hortaliças, as raízes, os frutos, as
sementes e grãos tradicionais -, não tem um lugar tão valorizado no cenário do
financismo mundial e, portanto, pode ser preterido na hora de decidir o que
será produzido pelo setor agrícola de cada região. Ou seja, se é mais vantajoso
comercialmente para quem está nesse mercado produzir soja e milho transgênicos
para alimentar porcos e frangos a dezenas de milhares de quilômetros de
distância, ao invés de produzir feijão para a população local, não há nenhuma
dúvida sobre qual será a escolha feita. Só pra ilustrar, a área de cultivo de
soja passou, em apenas 10 anos, de 30 milhões de hectares para quase 48 milhões
de hectares. E, se depender da sanha do Agribusiness, vai saltar mais
outros 30, chegando a 78 milhões – quando temos, segundo a PAM (Produção
Agrícola Municipal) de 2023, uma área cultivada total de 96 milhões de hectares
para todas as culturas do país!
- Quem regula quem
Se o
que chamamos de mercado age conforme os interesses financeiros de uma elite e
se nega a olhar para as consequências concretas de suas escolhas na vida do
povão, a quem caberia o papel de contrabalançar esse (d)efeito do sistema
econômico globalizado? Podemos dizer que a existência dos Estados Nacionais se
daria justamente para limitar minimamente os mecanismos que alimentam as
desigualdades dentro de seus territórios, além de tomar medidas para proteger
suas economias de serem devoradas pelo processo de dominação financeira de uns
(poucos) países sobre os demais. Aos Estados caberia, portanto, a função
de reguladores, apoiando-se em suas leis nacionais e em tratados
internacionais, para criar políticas públicas que garantam os direitos
fundamentais de suas populações. No caso do DHANA, o Direito Humano à
Alimentação e à Nutrição Adequadas, essas políticas têm como base a promoção de
um Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional capaz de assegurar que todas as
pessoas tenham acesso a alimentos em quantidade e qualidade para que possam se
desenvolver física, mental, emocional, cultural e socialmente. É algo que vai
muito além de estar livre da fome.
No
entanto, em uma sociedade em que o controle do que se produz está nas mãos de
grandes corporações transnacionais, que não respeitam fronteiras, que financiam bancadas parlamentares, que compram
anúncios nos principais veículos de mídia, que mantém robustas redes de
advocacia e que, se necessário, usam a força das armas para que seus interesses
não sejam contrariados, o poder regulador dos governos nacionais vem sendo
sistematicamente violado – e quem deveria ditar as regras na área econômica
passa a seguir as regras impostas pela elite internacional.
Voltando
ao Brasil, como nosso país pode traduzir na prática o que consta no SISAN, o
Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, se é refém de uma
política econômica cerceada por algo como o Arcabouço Fiscal? Se é pautado por
uma agenda que é elaborada pelos representantes de setores do mercado
especulativo e é posta em prática (muitas vezes à base de chantagens, boicotes
e ameaças) por bancadas, como a Ruralista, uma das maiores no Congresso
Nacional? Se ele destina a imensa maioria do crédito subsidiado para a produção
de commodities e não de comida?
Mesmo
reconhecendo as inegáveis diferenças entre a atual administração do país e a
anterior, sendo o desgoverno Bolsonaro responsável por chegarmos ao número de
700 mil mortes durante a crise da pandemia e por submeter dezenas de milhões de
famílias brasileiras à fome – entre outras ações imperdoáveis -, temos que
dizer que, apesar das atuais políticas redistributivas e da redução do
desemprego, que diminuíram em 14,7 milhões a quantidade de
pessoas famintas em 2023, não estamos virando a página da insegurança alimentar
e nutricional, como a atual crise de carestia e a contaminação de água e
alimentos deixa nítido. Sim, há muitos fatores envolvidos no imbróglio dos
preços altos da comida. As dificuldades produtivas decorrentes da emergência
climática; a resistência aos agrotóxicos desenvolvida por insetos, fungos e
plantas que são consideradas pragas; o esgotamento dos solos de muitas regiões…
são condições reais, é inegável. Mas são consequências diretas da
insustentabilidade do modelo produtivo baseado em extensas monoculturas
mecanizadas – e não surgiram inesperadamente, já que os sinais de que a
situação está se agravando vêm sendo dados pela natureza há décadas.
Neste
momento, também estão pipocando denúncias sobre toneladas de
alimentos produzidos
pela agricultura brasileira sendo jogadas no lixo. Trata-se de uma prática
conhecida, que tem o objetivo de influenciar o valor do produto em questão, ao
diminuir sua oferta no mercado. Pode ter ocorrido uma ação orquestrada, desde
os últimos meses de 2024, como forma de atingir o atual governo e dar força
para a narrativa de que, com ele, a vida está pior. Ainda é necessário
investigar o que realmente aconteceu porque vídeos em redes sociais, por mais
convincentes que pareçam, podem ser manipulados. Mas, dado o nível de golpismo
que já testemunhamos nos últimos tempos, é bem possível que essa atitude
criminosa de jogar comida fora tenha mesmo ocorrido de modo combinado, com fins
nitidamente políticos, e dado uma mãozinha para elevar os preços de alguns
hortifrutis. Junte-se aí o que se passa na economia e na geopolítica
internacional, como as guerras, as ameaças trumpistas e a subida do dólar
frente ao real no ano passado – lembrando que as empresas produtoras de
maquinário, fertilizantes e venenos agrícolas são estrangeiras, ditam preços de
modo dolarizado e canalizam parte substancial da renda no campo -, e temos mais
elementos para decifrar essa charada. Para arrematar esse pequeno levantamento,
não podemos esquecer de mencionar que a CONAB, empresa pública que controla os
estoques reguladores no Brasil, foi duramente atacada no governo anterior, que não apenas
zerou as reservas estocadas, como desmontou boa parte da estrutura do
órgão. Mesmo assim, a disparada de preços e a dificuldade da população em
adquirir comida em um país fértil como o nosso é algo que não deveria fazer
muito sentido, não é? Vejamos…
- Pagando para nos
envenenar
Quando
um setor da economia recebe crédito farto, isenção de impostos, afrouxamento de
regras para pagar seus trabalhadores e trabalhadoras e outras benesses, você
espera que o que ele forneça fique mais caro ou mais barato? Pois é… o chamado
AGRO brasileiro teve acesso ao maior Plano Safra da história do país, mais de
400 bilhões de reais; não precisa pagar muitos dos impostos relacionados a
insumos, como fertilizantes industriais e agrotóxicos, ou à exportação, graças
à famigerada Lei Kandir; não arca com uma quantidade de encargos de empregos
minimamente condizente com sua estrutura econômica, e, por mais incrível que
isso possa parecer para pessoas comuns, como eu e você, retribui ao povo (que o
carrega nas costas) com produtos caros e nada saudáveis. Eu disse “nada”
saudáveis, sim.
Infelizmente,
na esteira do recorde do crédito público para as grandes empresas do
agronegócio, nossa nação bateu um outro recorde em 2024. Superando a marca do
desgoverno Bolsonaro – que liberou 652 novos agrotóxicos no ano de 2022 -, o
atual governo autorizou, nos 12 meses do ano passado, 663 dessas substâncias venenosas. Para nós,
movimentos sociais agroecológicos, que lutamos arduamente para botar um fim na
gestão agrofascista do clã miliciano, é um duro golpe. A conclusão é óbvia: as
forças ruralistas seguem subjugando o executivo do país e estamos pagando para
ser vítimas de um processo de envenenamento massivo.
Essa
constatação é alicerçada pelo fato de que os agrotóxicos liberados no último
ano não são menos danosos do que os que já estavam autorizados a circular em
nosso território até então. A imensa maioria deles é composta pelos velhos
ingredientes que já se provaram prejudiciais à saúde humana e à natureza. E,
entre os ínfimos 2,3% das novidades, dois produtos, o Orandis e o Miravis,
foram considerados altamente tóxicos pela ANVISA e podem até levar a óbito, se
inalados, segundo quem os produz. Vale lembrar que o PARA, Programa de Análise de Resíduos de
Agrotóxicos em Alimentos, revelou a presença de venenos em 26% dos alimentos
analisados em 2023, sendo 31 tipos diferentes no abacaxi e 25 tipos diferentes
no arroz, muitos deles proibidos em países do norte global. É um coquetel
tóxico que tem ligação direta não apenas com a explosão de diversas doenças no
país (principalmente entre os povos campesinos, que estão mais expostos aos
aviões pulverizadores), mas também com o aumento do preço da comida, já que,
como eu havia mencionado, esses produtos são fabricados por empresas de fora do
Brasil e precificados em dólar, moeda que subiu bastante em relação ao real nos
últimos meses de 2024.
No
plano internacional, a FAO, órgão das Nações Unidas relacionado à alimentação,
já reconheceu, através de um levantamento feito em 2021, que nosso país é o
campeão do veneno e usa uma quantidade de agrotóxicos que é maior do que a
usada por Estados Unidos e China juntos – inclusive se considerarmos o valor
por hectare ou o valor per capita. E estamos falando de dois países
continentais que são grandes parceiros comerciais do Brasil, dos quais o nosso
modelo produtivo atual é dependente. Por falar na China, a notícia de que
ela suspendeu a importação de soja produzida por grandes empresas no nosso
território repercutiu com força há alguns dias e parece sugerir que o mercado
internacional não está disposto a comprar produtos com doses tão gigantescas de
venenos. O irônico dessa suspensão é que, no ano passado, a empresa do setor
veneneiro que recebeu maior isenção fiscal por parte do
governo brasileiro – R$1,77 bilhão – foi a Syngenta, controlada desde
2017 pela ChemChina, uma estatal chinesa. E é justamente a empresa que fabrica
os dois novos produtos altamente tóxicos liberados pelo governo entre os 663 da
leva de 2024, o Orandis e o Miravis. Dá-lhe contradição por parte do Comunismo
de Mercado (ou Capitalismo de Estado) adotado pela super potência
asiática. Basf, Bayer, e outras gigantes do setor também estão na lista
das corporações que mamaram (e mamam) muito nessas tetas brasileiras, com
descontos de centenas de milhões de reais no que deveriam nos pagar em impostos
em 2024. E vendem aqui os produtos que não são permitidos em seus próprios
países, deixando explícito que, para elas, somos um povo de categoria inferior
à dos povos europeus, e podemos engolir as substâncias comprovadamente tóxicas
que eles tão sabiamente se recusam.
- Terra para quem
produz comida
Será
que estamos caminhando para virar “picadinho” no prato dos grandes
representantes do mercado venenoso? O fato da CONAB ter retomado a formação de
estoques de alimentos da Agricultura Familiar em seus galpões é algo a ser
celebrado e incentivado, para que eles se ampliem com mais celeridade. Afinal,
frente às crescentes tragédias socioambientais ou aos ataques especulativos do
mercado, é preciso ter reservas para que a comida chegue a quem passe por
dificuldades de acessá-la. E a notícia de que o governo federal diminuiu a porcentagem máxima de
ultraprocessados permitida na merenda das escolas (que passou de 20% para 15% e
vai chegar a 10% no ano que vem) também traz um pouco de luz ao cenário, já que
significa que agricultores e agricultoras familiares vão fornecer mais comida nutritiva
para o PNAE, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que atende 40 milhões
de estudantes e serve, anualmente, cerca de 10 bilhões de refeições. Menos
ultraprocessados nessas refeições significa menos uso de soja, milho e
cana-de-açúcar na indústria alimentícia para produzir esses produtos e menos
plantio dessas commodities no campo. Mas, apesar de importantes, ações
como essas não são suficientes para reverter a situação crítica na Segurança
Alimentar e Nutricional brasileira. E o motivo é simples: a nutrição começa na
terra, como nos ensinou nossa mestra Ana Primavesi, que nos deixou há 5 anos,
no começo de 2020. Somente um solo sadio permite a existência de plantas sadias
e de alimentos saudáveis para as pessoas. E, no modelo Agro-Ogro atual, é impossível
ter solos com saúde. Eles dependem da existência da biodiversidade, o que está
intimamente relacionado com a presença dos povos dos campos, das águas e das
florestas nos territórios produtivos. Nada a ver com os desertos verdes
despovoados sobrevoados por drones e aviões que se espalham pelos nossos
biomas.
Em uma de suas declarações relacionadas ao combate à alta
dos alimentos, o presidente Lula disse que “muito dinheiro na mão de poucos
significa empobrecimento e que pouco dinheiro na mão de muitos significa mais
qualidade de vida para todas as pessoas”. O raciocínio parece coerente (e é o
que se espera de um líder que se coloca como defensor do povo trabalhador), mas
tropeça em um fato inegável: ninguém come dinheiro. Como mencionado aqui, a
comida saudável só é viável quando a terra está saudável. Por sua vez, é
impossível a terra ter saúde nas propriedades do latifúndio monocultor. É
necessário acabar com tamanha concentração fundiária. Refazendo a fala do
presidente, o que precisa ser dito é que muita terra na mão de poucos significa
fome e destruição ambiental, significa alimento caro e envenenado. E que pouca
terra na mão de muitos (e de muitas) significa a possibilidade de ter solos
férteis, cultivos biodiversos, circuitos locais e solidários de
comercialização; significa comida de verdade com valores acessíveis na mesa do
povo. Somente com a realização de uma ampla Reforma Agrária Popular de base
agroecológica é que poderemos escapar dos cartéis de fazendeiros, das
corporações de venenos, de transporte rodoviário movido a petróleo ou
biodiesel, das redes varejistas e indústrias de ultraprocessados – responsáveis
pelos preços nas alturas e pelos desequilíbrios sociais e ambientais que nos
assolam.
Recentemente,
em reunião de sua Coordenação Nacional em Belém (PA),o MST, Movimento dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, divulgou uma carta em que afirma:
“nos reunimos em território amazônico para traçar os rumos de nossa organização
para o próximo período na luta pela Reforma Agrária Popular, com acesso à
terra, justiça social e ambiental. Aqui, viemos beber da história e da memória da
resistência indígena, negra, camponesa e popular.” A referência aos povos
tradicionais demonstra que, sem o respeito aos seus modos de vida e seus
saberes ligados umbilicalmente aos territórios que habitam, é impossível termos
um futuro que não seja o abismo. Ao invés de torrar 400 bilhões (ou 500
bilhões, como se espera para o período de 2024/2025) para financiar o OGRO e
suas redes tóxicas, no que eu chamo de “Plano Sofra”, pois só leva ao
sofrimento da população, e de dar isenções fiscais bilionárias para as empresas
transnacionais de agrovenenos, envolvidas até o último fio de cabelo nas tramas
contra a democracia no mundo todo, como mostram as investigações sobre os atos
golpistas de 2023 (e até de 2016, ano em que as curvas de liberação de
agrotóxicos passaram a subir intensamente), o governo federal deveria usar os
recursos financeiros do país para estruturar e ampliar a rede de assentamentos
campesinos, a demarcação de terras indígenas e o reconhecimento de comunidades
de povos tradicionais. Sem essas medidas essenciais, não será possível
conquistar nossa Soberania Alimentar, base para a garantia da Segurança
Alimentar e Nutricional e condição irrefutável para que a comida boa, livre de
substâncias tóxicas, mas cheia de sabores e de significados culturais, possa
voltar a nutrir corpos, almas e territórios, independentemente do preço do
dólar ou do petróleo, elementos que não podem e nunca poderão ser digeridos
pelas barrigas humanas.
- Confluência de
lutas
Voltando
à questão inicial do texto, hoje ainda é possível ter acesso à comida sem
veneno de duas formas: há uma elite que paga altos preços por alimentos
orgânicos vendidos nos supermercados granfinos, e existem alguns circuitos de
comercialização solidária a partir do que é cultivado de forma agroecológica
por famílias agricultoras. Enquanto a gritaria contra a carestia na mídia
comercial ecoava, o Armazém do Campo, rede de lojas do MST, vendia milho orgânico a um real, em sua loja no
centro de São Paulo, no último final de semana. E ainda era possível comer a
espiga cozida na hora, pagando apenas dois reais! O contraste com o OGRO
é gritante: enquanto a agricultura campesina oferece um alimento nutritivo,
orgânico e não transgênico a um valor que pode caber nos bolsos mais apertados,
os tais que se dizem POP esvaziam caminhões de seus produtos – subsidiados com
o dinheiro da população – em estradas desertas em que ninguém poderá
acessá-los.
É
nítido que, se não lutarmos por uma inflexão no modelo produtivo nos próximos
tempos, as chances de termos que comprar comida cara e envenenada, como eu
alertei, vão aumentar muito. Como sabemos, nada na natureza pode ser isolado e
os aviões que despejam agrotóxicos seguem sobrevoando uma área cada vez maior
do nosso território. Solo, água, plantas, animais e nossos corpos vêm sendo
contaminados crescentemente. Como cultivar uma roça orgânica ou agroecológica,
se não houver água livre de venenos para regá-la? Se os ventos que passam sobre
os latifúndios de soja trazem chuvas tóxicas? Se as abelhas e outros
polinizadores estão sendo dizimados por substâncias já banidas nos países das
empresas que as fabricam? É por isso que só há um caminho: transição
agroecológica já. Para que ela se concretize, é necessário que o PRONARA, o Programa Nacional
de Redução de Agrotóxicos, saia velozmente do papel. Ele foi incluído no
lançamento do PLANAPO, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica,
após muita mobilização social, no final do ano passado. Mas, como o recorde de
venenos liberados e o ataque à Lei Zé Maria do Tomé – que proíbe a
pulverização aérea no Ceará – revelam, o lobby das empresas do setor vem se
sobrepondo aos direitos da população. Então, é necessário enfrentá-los. Urge
chacoalhar as ruas e as redes!
Só que,
diferentemente dos hipócritas de plantão, que agora usam bonés pedindo a volta
do fascista inelegível (em cujo governo houve a formação da famosa fila do osso, tamanho o nível de
desespero das pessoas famintas), nossos movimentos agroecológicos estão
comprometidos com a luta pela Vida. Temos plena consciência de que é uma
batalha hercúlea e constante (como o próprio nome Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida já diz), pois o
poder do 0,01% do globo é da casa dos trilhões e essa elite da
elite parece mais disposta a implodir de vez a existência humana do que abrir
mão de sua sangrenta concentração de riquezas. O terror tocado pelos
representantes do mercado para desestabilizar o governo Lula, como se eles estivessem
sofrendo altos prejuízos com a conduta feita pelo ministro Fernando Haddad –
enquanto na realidade muitos deles batiam recordes históricos bilionários de
lucro, como é o caso dos bancos Itaú e Pactual -, revela bem
que são capazes não apenas de nos fazer voltar para a fila do osso, mas de
tirar até os ossos (e o tutano que há neles e ainda pode nos dar alguns
nutrientes) de nossos pratos. A choradeira da citricultura paulista para manter
benesses, em um momento em que já está nadando de braçada com o preço da
laranja nas alturas, traduz perfeitamente a falta de limite de quem vê a
agricultura apenas como negócio.
E a
mídia corporativa também não nega fogo para atacar qualquer ação que se oponha
a lógica excludente que o capetalismo impõe. Não apenas anuncia as falácias do
OGRO, como se fossem verdades, em seus canais, como distorce acontecimentos,
dados, falas… para acentuar o desgaste do governo Lula em relação ao preço da
comida e desestabilizar até os programas sociais em curso. Recentemente, tem
atacado as cozinhas solidárias com acusações enviesadas, que desconsideram o
esforço que uma dedicada rede de pessoas faz para seguir alimentando a
população vulnerabilizada, apesar da carestia. São 2.370 cozinhas mapeadas,
atuando no país inteiro, algumas com anos e anos de existência. O ataque
desleal motivou o CONSEA, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, a se manifestar, conclamando a
sociedade a exercer o controle social no monitoramento do Programa Federal – criado no atual governo para apoiar
uma tecnologia social que nasceu nas comunidades -, para fortalecê-lo, dada a
sua importância para o exercício da cidadania e o combate à fome. Vale, também,
ler o artigo e assistir
o vídeo, que o portal GGN
produziu, para entender o tamanho da sacanagem midiática. Se você quiser
contribuir para que a injustiça não destrua uma política pública tão arduamente
conquistada, pode assinar a petição que o MTST,
Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto, está circulando. E,
em relação às expectativas de pôr um freio na alta dos preços, com a possível
safra recorde neste ano, cuja previsão é de 322,6 milhões de toneladas (um aumento de
10% em relação a 2024), vale lembrar dos anos de pandemônio, quando tivemos um
duplo recorde no país: da colheita agrícola e da fome, já que exportar é o
caminho mais fácil para encher os bolsos de grana. Além disso, colher cada vez mais
soja transgênica envenenada pode ser lucrativo para essa máfia agrofascista,
mas é péssimo sob todos os pontos de vista para a sociedade e o planeta.
Temos
que ter em mente que, mesmo se os preços dos alimentos convencionais realmente
baixarem nas gôndolas dos mercados e se tornarem financeiramente acessíveis
para o povão, eles ainda serão muito, muito caros para o país, já que seu modo
de produção, abarrotado de agrotóxicos, traz custos incalculáveis para a saúde
pública e o meio ambiente… custos que são pagos com o dinheiro da população,
através do poder público. E pior: faz com que paguemos com nossas próprias
vidas, já que as doenças geradas por esse modelo agrícola podem ser fatais e as
tragédias climáticas que ele desencadeia vêm adquirindo um nível de intensidade
gravíssimo. Resumindo, os prejuízos são públicos, mas os lucros são sempre
privados e, para quem os obtém, eles precisam ser cada vez maiores, não
importando as consequências sociais e ambientais. Frente à tamanha
voracidade por dinheiro e poder, o que nos cabe é pressionar os poderes
executivo, legislativo e judiciário para que pautem nossas propostas; é fazer,
em todos os espaços que pudermos abrir, a denúncia do sistema que nos
vampiriza; é espalhar e regar as sementes de um outro modo de viver. Por isso,
seguiremos mobilizando as gentes das cidades (que é a maioria de nossa
população) para que dêem as mãos às gentes dos campos, das águas e das
florestas nessa jornada contra a fome, o veneno e a destruição de nossa Mãe
Terra, a fonte real e única de tudo o que nos alimenta.
Fonte: Jornal GGN
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