terça-feira, 25 de março de 2025

“Não é pelo batom”: Pena de 14 anos a bolsonarista se funda em crimes graves

Críticas ao voto de Alexandre de Moraes ignoram iter criminis que vai além do vandalismo na estátua da Justiça.

Em 1972, um homem comum – sem armas, sem explosivos – escalou o altar da Basílica de São Pedro, em Roma, e desferiu quinze marteladas na escultura Pietà, de Michelangelo. Laszlo Toth gritou: “Eu sou Jesus Cristo!”, enquanto destruía parte do rosto e do braço da Virgem Maria.

O martelo era pequeno, mas o estrago não foi medido em centímetros de mármore: foi simbólico, espiritual, civilizacional. Não importava que a escultura fosse restaurável. Importava o que ela representava. Era o sagrado profanado – e, com ele, toda uma ideia de ordem, beleza e transcendência.

Mais de cinquenta anos depois, em outro continente, uma mulher se aproximou de outra estátua e, com batom vermelho, escreveu a frase “perdeu, mané”, em “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti, que está diante do STF. 

Agora, Débora Rodrigues dos Santos está sendo julgada pelo STF. O relator, ministro Alexandre de Moraes, acompanhado, até o momento, pelo ministro Flávio Dino, votou pela condenação de Débora a 14 anos de prisão.

Desde que o voto do relator foi divulgado, comentários de “tudo isso por pichar uma estátua?” ecoam nas mídias sociais.

Porém, é preciso lembrar que o objeto danificado é um detalhe, perto do envolvimento amplo da mulher com o pacto pelo desmonte do Estado Democrático de Direito. O verdadeiro desvario dos que estiveram no “dia da Infâmia”, levados a crer que estariam acobertados pelo manto da verdade.

<><> Iter criminis

Na linguagem do Direito Penal, existe um conceito-chave: iter criminis – o “caminho do crime”. Ele descreve a progressão entre a ideia criminosa e a concretização, passando por etapas como cogitação, preparação, execução e, se consumado, o resultado final.

No caso de Débora, o gesto com o batom foi apenas o último passo de um trajeto longo, consciente e articulado, como detalhado no voto do ministro Alexandre de Moraes.

Segundo o relator, Débora aderiu, desde o final das eleições de 2022, a movimentos que negavam a legitimidade do processo eleitoral.

Participou de acampamentos diante de quartéis, onde se pregava insistentemente uma intervenção militar, apoiou publicamente a ruptura da ordem constitucional e, no dia 8 de janeiro de 2023, integrou o grupo que invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes, em Brasília.

A frase na estátua foi a assinatura final de uma narrativa golpista escrita ao longo de meses.

“A denunciada […] concorreu para a prática dos crimes, somando sua conduta, em comunhão de esforços com os demais autores, objetivando a prática das figuras típicas imputadas”, escreveu Moraes.

Para o ministro, Débora não apenas participou do ato, mas “revelou desprezo para com as instituições republicanas” ao apagar registros do próprio celular, em tentativa de ocultar provas de sua participação nos atos.

<><> Não foi só pela estátua – e nem poderia ser

Um dos equívocos mais comuns nas críticas ao julgamento é ignorar o conjunto de crimes imputados à ré.

Débora não está sendo processada “por pichar uma estátua”. Se fosse apenas por isso, a pena seria simbólica: o crime de deterioração de patrimônio tombado tem pena máxima de três anos, e permitiria inclusive sanção alternativa à prisão.

Na realidade, ela responde por cinco crimes:

  • Abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP);
  • Tentativa de golpe de Estado (art. 359-M);
  • Dano qualificado com violência (art. 163, parágrafo único, I, III e IV);
  • Associação criminosa armada (art. 288, parágrafo único); e
  • Deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I da lei 9.605/98).

A pena sugerida – 14 anos – decorre do concurso material entre esses delitos, todos descritos como resultantes de uma “obra comum”.

Segundo Moraes, “o desencadeamento violento da empreitada criminosa afasta a possibilidade de que a denunciada tenha ingressado na Praça dos Três Poderes de maneira incauta”.

A conclusão não se baseia apenas no gesto com o batom, mas em laudos, imagens, mensagens apagadas e no depoimento da própria ré, que admitiu o vandalismo.

<><> A força do símbolo e a denúncia contra o arbítrio

O episódio também lembra, em outro contexto histórico, o ambiente de paranoia e distorção que marcou o Caso Dreyfus, no fim do século XIX, na França.

Na época, o capitão Alfred Dreyfus foi falsamente acusado de traição, em processo conduzido sob pressão de setores do Exército e da opinião pública, alimentados por preconceito e por teorias conspiratórias.

Contra as evidências e contra a razão, formou-se uma crença coletiva de que Dreyfus era culpado – porque assim parecia servir melhor a determinados interesses políticos e ideológicos.

O escritor Émile Zola, ao publicar o célebre artigo “J’accuse.!”, desafiou esse pacto de ilusão com uma denúncia frontal: o Estado estava disposto a sacrificar a verdade para manter intacta uma versão conveniente da realidade.

É justamente esse tipo de delírio que ressurge em parte dos discursos que tentam justificar os atos do 8 de janeiro. Na tentativa de reescrever os fatos, multiplicam-se versões alternativas – ora negando o vandalismo, ora alegando que tudo foi uma encenação, ora tratando os réus como vítimas de perseguição.

A frase escrita por Débora na estátua – “perdeu, mané” – foi mais do que deboche. Foi a tentativa de afirmar uma mentira como se fosse verdade: a de que o resultado das eleições seria ilegítimo, e de que uma nova ordem se impunha, pela força, contra a Constituição.

No Caso Dreyfus, o erro estava na condenação injusta. No 8 de janeiro, está na negação coletiva dos próprios crimes. Em ambos os casos, o pano de fundo é o mesmo: quando a verdade se torna incômoda demais, tenta-se apagá-la com versões inventadas.

O STF hoje se debruça sobre um julgamento que, embora envolva pessoas comuns e atos aparentemente pontuais, representa algo muito maior: o enfrentamento direto à legalidade democrática. O batom vermelho em “A Justiça” é só o gesto visível de uma intenção muito mais profunda – e perigosa.

A democracia, como a escultura de Michelangelo, também pode ser restaurada. Mas isso não significa que se deva tratar com leveza aqueles que tentaram destruí-la.

A pena proposta a Débora Rodrigues dos Santos, ainda em julgamento, não responde à cor do batom, mas ao conteúdo político do gesto. Não se pune a frase, mas a tentativa de rasgar com ela o pacto constitucional.

¨      Todos os crimes, mais além do batom na estátua do STF. Por Jeferson Miola

A extrema-direita constrói uma versão simplória e enganadora sobre a sentença de 14 anos de prisão de Débora Rodrigues dos Santos, a golpista multi-criminosa do 8 de janeiro que ficou conhecida por ter pichado com batom a escultura A justiça, do STF.

Os extremistas alegam que foi um ato de pouca relevância para uma condenação tão severa e, por isso, desproporcional. Querem fazer crer que Débora teria praticado uma espécie de intervenção artística, no que seria um ato único e sem vínculo com a ação criminosa principal.

Ocultam, dessa maneira, que na realidade a pichação da Débora significou o clímax dos atentados daquele dia contra o Estado de Direito e os poderes da República.

Foi, portanto, a celebração do que ela presumia ser a conquista do poder, ou seja, o êxito do golpe de Estado.

A inscrição “perdeu, mané”, uma paródia do ministro do STF Luís Roberto Barroso, exaltava o que Débora presumivelmente considerava como o desfecho vitorioso do empreendimento golpista.

Significava, em outras palavras, a vingança dos manés que não aceitaram a derrota nas urnas em 2022 e então decidiram acampar durante meses no Quartel General do Exército, onde eram preparados os atentados antidemocráticos e de onde os integrantes da “organização criminosa armada” –civis e militares– marcharam rumo à Praça dos Três Poderes para virarem a mesa por meios violentos e depois entregarem o poder aos fardados.

Com base na denúncia da Procuradoria-Geral da República, o ministro Alexandre de Moraes votou pela condenação de Débora a 14 anos de prisão não pelo batom na estátua, mas devido à participação dela em cinco crimes: [i] abolição violenta do Estado de Direito; [ii] tentativa de golpe de Estado; [iii] dano qualificado ao patrimônio público; [iv] deterioração do patrimônio tombado; e [v] associação criminosa armada.

Assim como o criminoso Antônio Cláudio Alves Ferreira, o golpista que participou de toda empreitada criminosa mas ficou conhecido por quebrar o relógio do século XVII do Palácio do Planalto, Débora se notabilizou como a autora da pichação na estátua do STF, ainda que tenha participado do conjunto dos atos antidemocráticos.

A extrema-direita instrumentaliza a vitimização e o coitadismo da Débora para impulsionar a mobilização pela anistia que, no fundo, não é para anistiar os presos do 8/1, mas para deixar impunes Bolsonaro, seus comparsas e os altos oficiais das Forças Armadas.

É o mesmo truque diversionista que usam com as fantasiosas “senhorinhas inocentes presas com a bíblia debaixo do braço”.

Neste contexto de duro enfrentamento do fascismo em todas suas dimensões no Brasil, é lamentável e inaceitável que setores da mídia, bem como alguns juristas, reverberem essa versão delirante da extrema-direita e enfraqueçam as decisões corretas da Suprema Corte.

Titubear no combate ao fascismo é um erro que pode trazer consequências fatais para a democracia.

¨      Com pedido de vista, Fux adia julgamento de bolsonarista que pichou estátua do STF

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), fez um pedido de vista nesta segunda (24) e adiou o julgamento de Débora Rodrigues dos Santos, bolsonarista que pichou a frase “Perdeu, mané” na estátua “A Justiça”, que fica em frente ao prédio da Corte. O julgamento começou na última sexta (21) e o placar era de 2 votos a 0 para condená-la.

O magistrado pediu mais prazo para analisar o caso e disse a colegas que vai estudar melhor a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR). Os votos para condenar a bolsonarista foram dados pelos ministros Alexandre de Moraes, relator, e Flávio Dino.

O julgamento terminaria nesta sexta (28), mas a nova data para a conclusão da análise ainda será definida após o pedido de vista de Fux. O relator fixou a pena em 14 anos de prisão, inicialmente em regime fechado, e uma indenização de R$ 30 milhões por danos morais.

“Conforme vasta fundamentação previamente exposta, a ré dolosamente aderiu a propósitos criminosos direcionados a uma tentativa de ruptura institucional, que acarretaria a abolição do Estado Democrático de Direito e a deposição do governo legitimamente eleito”, afirmou Moraes em seu voto.

Débora não foi acusada apenas pela pichação, mas por ter aderido ao ataque golpista. Segundo a PGR, ela reconheceu que estava acampada em frente ao quartel-general do Exército em Brasília junto de um grupo que pedia intervenção militar.

A PGR acusa a bolsonarista de cometer os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Ela está presa desde março de 2023 em Paulínia, no interior de São Paulo. Sua defesa alega que o caso não deve ser analisado pelo STF, considera que a denúncia deve ser rejeitada por falta de justa casa e defende que ela deve ser absolvida, dizendo que a conduta não configuraria crime.

¨      Nunes Marques pede vista e adia julgamento de Zambelli no STF

O ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu vistas e adiou a definição do julgamento da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP). A parlamentar está a dois votos de ser condenada a 5 anos e 3 meses de prisão, além da perda de mandato, por porte ilegal de arma de fogo e constrangimento ilegal.

O pedido de vistas ocorreu na manhã desta segunda-feira (24), suspendendo temporariamente a decisão. O julgamento teve início no Plenário Virtual do STF na sexta-feira (21), às 11h, e está previsto para encerrar na próxima sexta-feira (28), às 23h59.

A Suprema Corte abriu ação penal contra Zambelli em agosto de 2023, após aceitação da denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). A deputada bolsonarista é acusada de perseguir, armada, o jornalista Luan Araújo, identificado como apoiador do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O episódio ocorreu em outubro de 2022, nas ruas do bairro dos Jardins, região nobre de São Paulo.

O advogado da parlamentar, Daniel Bialski, manifestou insatisfação quanto à impossibilidade de defesa oral no julgamento virtual. Em nota, destacou que a apresentação de argumentos em vídeo não garante a atenção de todos os ministros.

“Essa seria a melhor oportunidade de evidenciar que as premissas colocadas no voto proferido estão equivocadas. Esse direito do advogado não pode ser substituído por vídeo enviado — cuja certeza de visualização pelos julgadores inexiste. Mas, apesar desse cerceamento da defesa, foram ainda enviados e despachados memoriais com os ministros para motivá-los a ter vistas e examinar minuciosamente os autos”, afirmou o representante de Carla Zambelli.

 

Fonte: Migalhas/Brasil 247/DCM

 

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