Sem direito ao luto: um mergulho no
universo da dor, busca e frustração sobre desaparecimentos forçados no RJ
Há pouco mais de dez
anos, o filho mais velho de Luzia, Rafael, saiu de casa para trabalhar e nunca
mais voltou. Desesperada, ela iniciou uma busca incansável em hospitais, no
Instituto Médico Legal (IML) e até em lixeiras. Mobilizou a comunidade,
organizou passeatas e distribuiu camisetas com a foto do filho.
Conheci Luzia durante
a pesquisa para o documentário Paradeiros, dirigido por Rita Piffer, que
estreou no início de outubro no Festival do Rio, onde recebeu o Prêmio Especial
do Júri da Mostra Novos Rumos. O filme apresenta a jornada de uma mãe para dar um
enterro digno ao filho e faz uma espécie de etnografia das instituições
públicas percorridas pelos familiares de pessoas desaparecidas: Delegacia, IML,
Instituto de Pesquisa e Perícias em Genética Forense (IPPGF), Programa de
Localização e Identificação de Pessoas (PLID), do Ministério Público do Rio de
Janeiro, e Defensoria Pública.
A Zona Oeste do Rio de
Janeiro, onde Luzia mora, é totalmente dominada pela milícia que costumava
executar pessoas por questões financeiras, territoriais e até mesmo por viver
fora do padrão moral imposto por eles. Mas a mãe de Rafael nunca imaginou que o
filho pudesse se enquadrar em qualquer uma dessas situações.
Até que um dia, muito
cedo pela manhã, a campainha tocou. Poderia ser o filho regressando para casa.
Mas ao abrir a porta, Luzia não viu ninguém, apenas um saco preto com um
bilhete: “Taí o Rafael”. Ela gritou de dor e ficou em choque até conseguir
chamar a polícia. Porém, aquele que parecia ser o fim de sua jornada, era
apenas o começo. Luzia precisaria agora identificar a ossada, conseguir um
atestado de óbito e tentar dar um enterro digno ao filho.
A espera para fazer o
exame do DNA foi longa, assim como os meses até ter em mãos o envelope com a
resposta: positivo, era mesmo Rafael. Contudo, seu corpo já havia sido
enterrado. Como o IML e o IPPGF não têm espaço para armazenar todos os corpos
de pessoas não identificadas que recebem diariamente, a legislação determina o
prazo de 15 dias para identificar e localizar os familiares das vítimas. Caso
contrário, os corpos são enterrados como “não identificados” ou “não
reclamados” em covas rasas. Um fragmento ósseo é guardado para possível
identificação futura.
Quando Luzia foi
buscar o atestado de óbito do filho, recebeu o número da cova onde Rafael
estaria sepultado, no Cemitério Santa Cruz, na seção de “não reclamados”. Nessa
área, que ocupa uma parte significativa do cemitério, sucessivas cruzes brancas
com números escritos em tinta preta despontam em meio a um gramado maltratado.
Ao encontrar o local, Luzia arrancou o mato em volta da cruz marcada com o
número, colocou uma placa com o nome de Rafael, uma foto dele e flores
amarelas.
Meses depois, após
conseguir dinheiro para realizar um novo sepultamento, ela voltou ao cemitério,
mas não havia mais nada ali, nem cruz, nem placa, nem foto. Segundo Luzia, o
prazo legal de no mínimo três anos para que os corpos não identificados fiquem
enterrados – depois disso são cremados, cedendo espaço para outros corpos – não
foi cumprido. “É uma história que não tem fim. O fim seria a sepultura”,
lamenta ela.
Outra mãe que não pôde
enterrar o filho é Sandra, cuja história é retratada no documentário. Sandra
chegou a se arriscar para procurar o corpo do seu filho, Leandro. Mesmo sob
ameaças e depois de ouvir dos supostos assassinos que “É proibido procurar”, ela
partiu para uma longa jornada pelos IMLs da cidade. E, finalmente, meses
depois, reconheceu uma foto de crânio como sendo do seu filho.
Contudo, mesmo fazendo
parte do grupo raro de mães que conseguiram localizar os corpos de seus filhos,
Sandra teve seu luto interrompido pela burocracia estatal. O exame de DNA
confirmou a identificação, mas o atestado de óbito nunca veio. Documentos foram
supostamente perdidos pela Santa Casa de Misericórdia, que na época
administrava os enterros de não identificados. Quando ela finalmente descobriu
o local do sepultamento, já havia se passado três anos. O corpo de Leandro não
estava mais lá.
Luzia e Sandra
encontraram o corpo de seus filhos, mas não puderam enterrá-los como desejavam:
foram vítimas do chamado “desaparecimento administrativo”, ou seja, da falha do
Estado em fornecer informações e documentação para encerrar o ciclo de luto. Paradeiros
é um documentário que mergulha nesse universo de dor, busca e frustração.
Segundo dados do PLID,
7.017 corpos ou despojos humanos foram encontrados no Estado do Rio de Janeiro
desde 2010, quando se iniciou o programa, que cruza dados de corpos não
identificados com o de pessoas desaparecidas. Desses, 3.438 permanecem com a
identidade ignorada. Isto significa que para além da dor de perder um ente
querido, famílias são obrigadas a passar o resto da vida sem corpo, sem
respostas, sem atestado de óbito ou sepultamento. Vivem em meio a um ciclo que
nunca se encerra.
Durante a pesquisa
para o filme, ficou parecendo que, para o Estado, os desaparecimentos delitivos
de jovens negros e moradores de comunidades têm menos atenção do que os de
crianças, adultos e idosos com problemas mentais, por exemplo. Além disso,
apesar de servidores esforçados para realizar seu trabalho, a estrutura do
Estado não ajuda. Tanto o IML quanto o IPPGF, que realiza os exames de DNA, têm
número insuficiente de peritos. São apenas seis peritos para analisar cerca de
2.500 laudos de DNA por ano, a metade do contingente de funcionários
recomendado pelo Ministério da Justiça.
A realidade documental
que encontramos nas instituições públicas revela, portanto, a aquiescência do
Estado em relação aos desaparecimentos de pessoas que foram vítimas fatais de
grupos armados. Segundo o antropólogo Fábio Araújo, consultor de Paradeiros e
autor de Das ‘Técnicas’ de Fazer Desaparecer Corpos, isso aponta para uma
participação estatal indireta, podendo caracterizar “desaparecimentos
forçados”, de acordo com a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento
Forçado de Pessoas. Existem casos ainda em que há o envolvimento direto de
agentes estatais, especialmente policiais.
Fábio ressalta a
importância de discutir as relações entre o poder militar estatal e
paraestatal, as conexões entre grupos armados e instâncias políticas, e
entender como os recursos e práticas de terror circulam entre diferentes atores
envolvidos. Além disso, ele aponta que, ao contrário do horror causado pelas
operações policiais nas favelas, a exposição pública dos crimes cometidos pelas
milícias é ainda mais limitada. A subnotificação é considerável, sobretudo em
razão de que muitos moradores de áreas controladas pela milícia não fazem
registro de ocorrência por medo de retaliação. Sandra, por exemplo, só foi a
uma delegacia e revelou o que ocorreu com seu filho quando precisou do registro
para realizar o exame de DNA.
Nossa esperança é que
Paradeiros traga visibilidade para essa grave violação dos direitos humanos.
Sem dados precisos e sem uma legislação que tipifique desaparecimentos
forçados, essa realidade permanece invisível. Dois projetos de lei que tratam
dessa tipificação estão parados há anos na Comissão de Constituição e Justiça.
É fundamental que sejam aprovados para que a sociedade possa exigir políticas
de memória, verdade e justiça.
Fonte: Por Sara
Stopazzolli, no Le Monde Diplomatique
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