Racismo travestido de elogio resulta na
condenação de médico na Bahia
Quem faz referência à
cor de alguém de forma depreciativa, ainda que a pretexto de dirigir pretenso
elogio, comete crime de racismo. Essa conclusão é do juiz Eros Cavalcanti
Pereira, da 2ª Vara Criminal de Itabuna (BA), que condenou um médico por
injuriar uma mulher. Além de cumprir pena de quatro anos e dois meses de
reclusão, o réu deverá indenizar a ofendida em R$ 25 mil por dano moral.
Conforme o Ministério
Público narrou na denúncia, no dia 21 de fevereiro deste ano, a vítima e uma
colega de trabalho, ambas servidoras da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia
(Sesab), faziam vistoria no hospital onde o médico trabalha. Ao ver a ofendida,
o réu comentou: “Que negra bonita! Nossa, nunca vi uma negra tão bonita assim!
Para ser tão bonita assim, deve ter sangue branco correndo nas veias.”
“Constata-se que o
réu, num primeiro momento, proferiu ofensas de cunho racista, injuriando a
vítima em razão da sua cor, a despeito de as palavras por ele utilizadas
haverem constituído, impropriamente falando, espécie de ‘elogio racista’, um
inadmissível ‘galanteio’. Isso não retira o caráter odioso do ato, não afasta a
ocorrência do racismo, não descaracteriza a prática criminosa”, destacou o
julgador.
As duas servidoras
eram acompanhadas por uma enfermeira do hospital, que também ouviu a fala do
acusado. Segundo a denúncia, ao ser repreendido em razão da sua declaração, o
réu não só a repetiu, como depois acrescentou: “Para ser bonita assim, ela deve
ter sangue branco correndo nas veias, porque um preto jamais teria um filho
bonito assim”. Em juízo, as três mulheres confirmaram as injúrias raciais.
A defesa do médico
pediu a sua absolvição com o argumento de ausência de provas, pois a acusação
se baseou apenas na versão da vítima e das testemunhas. Também alegou a
inexistência de dolo específico para o crime de injúria racial, porque as
palavras do acusado não tiveram qualquer conotação racista. O réu admitiu que
“elogiou” a ofendida, mas negou ter externado qualquer preconceito.
<><> Crime
formal e continuado
O julgador rejeitou as
alegações defensivas, ressaltando que o caso em análise se trata de crime
formal praticado oralmente, sem registro documental, estando a materialidade e
a autoria demonstradas pelo mesmo acervo probatório. Segundo ele, os relatos da
vítima e das testemunhas são convincentes, coerentes e robustos, comprovando
“sobejamente” os fatos descritos na denúncia.
“Mesmo repreendido
pelos presentes em razão do seu comportamento nitidamente preconceituoso, o ora
acionado prosseguiu nas ofensas dirigidas contra a vítima, reafirmando e até
acentuando o seu gesto racista por duas vezes”, observou Eros Pereira. Em razão
da prática sucessiva de três atos injuriosos racistas, o juiz aplicou a regra
do artigo 71 do Código Penal (crime continuado).
Desse modo, não houve
a soma das penas das três injúrias raciais imputadas ao médico. Para fins de
dosimetria, seguindo os critérios legais, o julgador considerou apenas uma das
sanções, porque fixadas em igual patamar, e a elevou em um quinto, tornando-a
definitiva em quatro anos e dois meses. Caso fossem estabelecidas penas
diferentes, a exasperação recairia sobre a mais severa, conforme a regra do
crime continuado.
Pereira determinou que
o médico inicie o cumprimento da pena em regime fechado, devido às
circunstâncias desfavoráveis. “O réu agiu com culpabilidade acentuada, pois
perseverou na ação delituosa mesmo quando repreendido pelos presentes,
demonstrando maior ousadia, arrogância e destemor. Isso reclama apenamento mais
severo no plano da culpabilidade.”
Quanto ao pedido do MP
para o acusado ser condenado a pagar à vítima valor mínimo a título de
reparação dos danos causados pela infração, o juiz assinalou que a lesão moral
sofrida pela ofendida é presumida, dada a gravidade concreta da conduta (três
ofensas). Pereira anotou ser “natural o abalo psicológico decorrente da ação
criminosa, acentuado pela persistência traumática”.
O médico chegou a ser
preso em flagrante por policiais militares ainda no hospital. Dois dias depois,
ele foi solto mediante o pagamento de fiança e respondeu à ação penal em
liberdade. Após ser condenado, teve o direito de recorrer solto. Porém, ele não
apelou e a sentença transitou em julgado, sendo expedido o seu mandado de
prisão. A ordem de captura foi cumprida na residência do acusado, que já está
na cadeia.
• E se o racista for seu filho ou sua
filha?. Por Ynaê Lopes dos Santos
Há pouco tempo, fui
obrigada a sentar com minha filha de 7 anos e explicar que ela foi vítima de
racismo. Construção de sociedade menos racista cabe também a pais de crianças
brancas, que têm um desafio enorme nas mãos.
Esse é um texto que eu
ensaiei escrever algumas vezes. A vontade ficou latente quando estourou um caso
de racismo em uma escola de classe média alta de São Paulo. O caso ganhou
especial repercussão, pois a vítima era filha de uma atriz brasileira. E, mesmo
assim, a questão central foi menos sobre os cuidados que a menina discriminada
deveria receber e mais sobre o que fazer com as jovens que cometeram o ato
racista.
Não há dúvidas que é
fundamental questionar e balizar como o papel educativo e pedagógico de uma
escola deve funcionar em situações como essa. Mas é também de um racismo atroz
constatar que, no frigir dos ovos, o debate público passou da saúde mental e emocional
da menina negra para ficar totalmente centrado na intensidade da sanção que as
meninas brancas deveriam (ou não) receber.
Poucos meses depois,
um jovem negro estudante de outra escola da elite paulista cometeu suicídio por
não ter conseguido suportar os inúmeros bullyings que sofria por ser quem era:
um menino negro, homossexual e pobre, que havia entrado na escola por conta de
ações afirmativas. Ao invés dessa tragédia ajudar a fomentar um debate mais
aprofundado sobre saúde mental na adolescência, e suas interseções de raça,
classe e sexualidade, o que vimos foi o silêncio costumaz da escola – que, na
época, sequer fez um pronunciamento digno – e a oportunidade espúria para
criticar as políticas de ação afirmativa, mais especificamente as cotas
raciais. O recado dado por importantes representantes da elite paulistana foi:
o apartheid racial, social e econômico da cidade mais rica do Brasil deve ser
mantido.
Mas foi agora, quando
minha filha chegou com queixas da escola, que resolvi escrever. Isso porque há
algumas semanas me vi obrigada a sentar com uma menina de 7 anos – que há
pouquíssimo tempo começou a questionar a existência de Papai Noel – e explicar que,
sim, ela foi vítima de racismo. Em meio à violência da qual o racismo se
alimenta, eu tive que explicar para ela que o cabelo dela não é feio, e que ela
não foi a primeira (e infelizmente, não será a última) criança a ser zombada
por seus colegas por conta do seu cabelo.
Confesso que, apesar
de achar que conheço relativamente bem o modo como o racismo se expressa, não
esperava que ela passasse por essa situação. Como o cabelo dela é muito menos
crespo que o meu, acreditei que ela estaria a salvo dessa discriminação. Inocência
a minha.
<><> Regra
de história longa
Num universo marcado
por crianças brancas de cabelos lisos ou anelados, o cabelo da minha filha é
suficientemente crespo para ser alvo de racismo. Então, para tentar apaziguar o
choro e a indignação dela, falei justamente isso: "você não é a primeira
menina negra a viver isso". Eu mesma passei pela mesma situação,
exatamente na mesma idade e num contexto muito semelhante: ser uma das poucas
alunas negras numa escola branca da classe média alta e progressista. E para
ela entender o que aconteceu e acontece com outras muitas meninas (e meninos)
negras, peguei um pacote de bombril e disse: "era isso que diziam que meu
cabelo parecia".
Obviamente eu fiquei
muito tocada e afetada pela repetição das nossas histórias, a minha e da minha
filha. E cheguei a ensaiar um texto para os pais da escola, porque não
considero justo que a bomba do racismo estoure apenas no meu colo. Afinal de
contas, se a minha filha está sofrendo esse tipo de racismo, é porque crianças
estão sendo racistas com ela. Só que o problema é que esse cenário descrito não
é exceção, mas a regra. E uma regra de história longa.
<><>
Grande desafio
Essa situação me fez
lembrar do início do livro Almas da Gente Negra, no qual um dos mais
proeminentes sociólogos do mundo, o estadunidense W.E.B Du Bois, conta que foi
na infância, interagindo com crianças brancas, que ele foi apresentado ao
racismo. Uma situação que atravessou o século 19, o século 20 e chegou ao 21,
como bem demonstra um vídeo feito pelo Criança Esperança, no qual, em meio a
uma dinâmica, meninas e meninos negros são "convidados" a dizer
frases abertamente racistas. Eles recusam o convite não só por acharem as
frases erradas, mas também porque aquelas frases os faziam lembrar de situações
racistas que passaram junto a seus pares, crianças brancas.
Esse é um ponto sobre
o qual devemos falar: crianças podem sim ser racistas. E isso pode acontecer
independentemente da consciência racial dos pais dessa criança. E, embora o
racismo não esteja inserido no código genético de ninguém, ele é ensinado e
aprendido desde a mais tenra infância. Como sabemos, as crianças são excelentes
observadoras e absorvem conhecimento de uma maneira invejável. Então, se elas
vivem num mundo racista (e sim, todos nós vivemos), o racismo será algo que
elas vão aprender.
Geralmente o primeiro
passo dessa aprendizagem começa com um estranhamento das desigualdades (algo
bonito de ver): "por que só vejo famílias negras pedindo dinheiro nas
ruas? ", ou "por que na minha escola tem poucos negros?",
"como é que deixaram a escravidão existir?". Essas são frases que
alguns dos meus amigos brancos já tiveram que responder para seus filhos e
filhas.
No entanto, mesmo com
as respostas que reforcem que "somos todos iguais e devemos ser tratados
da mesma forma" não é isso que o mundo informa às nossas crianças. E, aos
poucos, a diferença vai sendo naturalizada como desigualdade, e o racismo vai
turvando nosso olhar.
Tudo isso para dizer
aos pais e mães de crianças brancas que vocês têm um desafio enorme nas mãos. E
por mais que esse seja mais um trabalho dentro das inúmeras tarefas da
maternidade/paternidade, não se furtem, porque ele valerá à pena. Também cabe a
vocês a construção de uma sociedade menos racista. E isso pode começar com seus
filhos e filhas.
Fonte: Conjur/DW
Brasil
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