sábado, 9 de novembro de 2024

Policiando as crises sanitárias no Antropoceno

No dia 21 de maio de 2020, quinta-feira, uma distribuição de cestas básicas foi interrompida no Morro da Providência por conta de uma operação da polícia militar fluminense. Rodrigo Cerqueira da Conceição, jovem negro de 19 anos, estava na fila para receber alimentos. Ele foi atingido por disparos feitos por policiais durante a ação, vindo a óbito momentos depois. No dia anterior, João Vitor Gomes Rocha, outro jovem negro de 18 anos, foi também atingido mortalmente durante uma operação policial na Cidade de Deus. Esta outra favela também faz parte da cidade do Rio de Janeiro, e o episódio de vitimização civil também aconteceu durante uma distribuição de cestas básicas.

 Três dias antes da morte de Rodrigo (e dois dias antes da morte de João Vitor), uma outra operação policial vitimou desta vez João Pedro Mattos Pinto, um terceiro jovem negro de 14 anos. João estava na sala de casa quando a residência foi invadida e alvejada pelas polícias civil e federal mais de 70 vezes, em ação conjunta ocorrida no Complexo do Salgueiro – conjunto de favelas pertencente ao município de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. Todas as mortes aconteceram em meio à pandemia da COVID-19, em momento de profunda agudização da crise sanitária e social no Brasil.

Olhando agora para trás, pouco mais de 30 anos antes da ocorrência desses episódios, a polícia civil de São Paulo conflagrou uma ação de policiamento ostensivo denominada “Operação Tarântula”. Em 27 de fevereiro de 1987, uma sexta-feira, policiais passaram a prender particularmente pessoas trans e travestis na região central da capital paulistana. Mais de 300ocorrências foram registradas em apenas duas semanas de operação, legitimadas juridicamente pelo artigo 130 do Código Penal brasileiro: “expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado”.

Outras operações policiais como “Arrastão”, “Cidade”, “Sapatão”, “Limpeza” (todas em São Paulo) e “Asa Branca” (em Recife) tiveram o mesmo propósito de reprimir pessoas trans e travestis ao longo dos anos 1980. Todavia, a “Tarântula” marca uma diferença. O artigo 130 estabelece relação mais direta com o contexto pandêmico da AIDS, ao embasar a justificativa “sanitária” da ação policial. A manchete do jornal “Folha de São Paulo” dois dias após a deflagração da operação é muito clara: “Polícia Civil ‘combate’ AIDS prendendo travestis”.

Se retornarmos ainda mais ao passado, mais precisamente para os primeiros anos do século XX, a polícia entra em cena novamente durante o episódio conhecido como a “Revolta da Vacina”. Entre os dias 10 e 16 de novembro de 1904, a cidade do Rio de Janeiro testemunhou a formação de verdadeiras “praças de guerra” em seu espaço urbano. Forças de segurança e manifestantes se enfrentaram em meio a uma série de tensionamentos sociais e políticos da época, cujo estopim foi o caráter compulsório da vacinação contra a varíola. Polêmicas sobre a invasão de residências para o cumprimento das medidas sanitárias – em especial nos bairros ditos “populares” – trouxeram a polícia para o cerne da crise mesmo antes do início do motim.

Em um dos seus epicentros, gritos de “morte aos policiais, abaixo a vacina!” ecoavam entre as enormes barricadas erguidas por manifestantes no bairro portuário da Saúde. O lugar chegou a ficar conhecido como “Porto Artur” durante a revolta, em alusão à violenta batalha ocorrida na guerra russo-japonesa (1904-1905). Em pouco menos de uma semana, o saldo dos enfrentamentos foi de ao menos 945 prisões, 110 feridos e 30 mortos, com mais de 460 nacionais sendo deportados para outras regiões do país, com destaque para o estado do Acre.

•        Que crise(s)?

Quando tomados em conjunto, esses três cenários sucintamente descritos me parecem bons “casos para pensar” a relação entre policiamento e crises sanitárias. Em caráter introdutório e longe de se pretender conclusivo, pode-se indagar: afinal, qual é o papel das forças policiais durante momentos de epidemias e pandemias? Se considerarmos o breve histórico traçado nos parágrafos anteriores, é evidente que tal relação sempre foi permeada por muitos tensionamentos, sobretudo em um país como o Brasil, onde múltiplas desigualdades de ordem social, econômica, política e jurídica se sobrepõem e orientam a relação do Estado para com a sociedade. Da mesma forma, tal problemática me parece estratégica no debate público contemporâneo, se levarmos em conta um dos efeitos mais devastadores do “Antropoceno”: o agravamento da crise ambiental. Mudanças climáticas, desmatamento, predação de recursos naturais, poluição e o avanço das fronteiras agrícolas monocultoras são alguns dos mais poderosos combustíveis a alimentar cenários futuros em que crises sanitárias tendem a ser cada vez mais comuns.  

O momento atual é de grande confusão. Vivemos em um “estado de crise(s)”, se o leitor preferir. Mas se hoje cada vez mais a palavra “crise” faz parte do nosso vocabulário cotidiano, o que a mobilização desta categoria tem a nos dizer sobre o estado das coisas? Em ensaio intitulado “Crisis”, o antropólogo Didier Fassin argumenta que os significados atribuídos a esta categoria repousam na relação indissociável e instável entre um dado momento crítico e a tomada de consciência sobre ele. Em outras palavras, o autor argumenta que qualquer crise sempre traz consigo duas dimensões complementares. Por um lado, crises se relacionam com uma dada situação crítica do “real”, considerada “problemática” por escapar a certo parâmetro de “normalidade”. Por outro lado, a ideia de crise também passa a existir a partir dos relatos que são criados e que passam a circular sobre ela, e que fazem sua presença ser sentida através de diferentes formas de discurso, ação e representação. Crises, neste diapasão, possuem um caráter fundamentalmente “criativo” do ponto de vista social.

No entanto, uma outra questão emerge daí. Em países como o Brasil, onde situações críticas de variadas ordens estão absolutamente normalizadas na vida das pessoas, como definir o que é uma “crise” em meio a cenários onde crises são a ordem do dia? Longe de fornecer uma definição universal para a categoria, a antropóloga Janet Roitman, em seu livro “Anti-Crisis”, sugere pensar o problema a partir dos tipos de trabalho que as crises fazem ou deixam de fazer na construção de formas narrativas. As definições e adjetivações de “crise” servem para balizar ou designar o que a autora chama de “momentos da verdade”, isto é, momentos críticos na história quando decisões são tomadas ou eventos são decididos.

A definição e adjetivação de um momento enquanto “crítico” sempre traz consigo uma vontade de urgência, vontade esta que, volta e meia, consegue colocar em disputa uma série de princípios, suposições, premissas, critérios e relações lógicas ou causais antes já razoavelmente consolidados. Crises tendem assim a sinalizar mudanças, embora, muitas vezes, elas ajam no sentido contrário de reforçar a máxima proferida pelo príncipe de Falconeri, retratado no romance “O Leopardo” de Giuseppe di Lampedusa: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”.

•        Negociando “crises”

A despeito de todas essas considerações, fato é que diferentes forças policiais vêm sendo empregadas no reforço e manutenção da “ordem pública” em momentos críticos pelos quatro cantos do mundo. A instauração de uma crise sanitária tende a reforçar ainda mais o papel de protagonismo assumido pela polícia nas narrativas que emergem daí. Isto acontece, pois, diante da magnitude que surtos epidêmicos e pandêmicos podem adquirir, a vontade de urgência intrínseca a esses contextos tende a fortalecer instituições cujo mote é justamente oferecer “segurança” – a exemplo das forças policiais.

Entretanto, tão comum como testemunharmos a ação direta dos agentes no cumprimento de medidas sanitárias de exceção, é também percebermos os inúmeros dilemas decorrentes daí. Enquanto forma narrativa, a mobilização de um “estado de crise” sempre permite legitimar uma série de ações por parte daqueles capazes de definir as coisas como tal, a despeito da emergência de outras contranarrativas que nos falam sobre estigmas de raça, gênero, classe, lugar de moradia, entre tantos outros marcadores sociais que reforçam a construção social do “elemento suspeito” aqui e acolá.

 Mas se retornarmos particularmente ao contexto brasileiro, alguns elementos tendem a complexificar ainda mais a situação do ponto de vista da atuação das nossas forças de segurança. Me refiro particularmente a dois pontos. Em primeiro lugar, ao papel central desempenhado pelas polícias na transformação da “segurança” em “mercadoria” nas ruas de todo país. Em um exercício de pura imaginação, suponhamos que entre 2020-2021 o Governo Federal e os governos de estados e municípios tivessem realizado ações mais coordenadas e enérgicas de enfrentamento ao coronavírus.

Tão difícil quanto imaginar as polícias fora deste quadro é imaginar como a aplicação dessas medidas sanitárias seria feita nas mais diferentes situações cotidianas.

Se instaurado, qual seria o impacto, por exemplo, de um lockdown nas negociações para a realização ilegal de festas que testemunhamos tantas vezes durante a pandemia, ou mesmo para manter em funcionamento mercados ilegais como o da exploração do sexo ou do varejo das drogas? Ou ainda, em que medida mecanismos mais sofisticados de controle – como o rastreamento de infectados por celular, aplicado com sucesso pelas agências sul-coreanas – poderiam ser comoditizados visando o salvo-conduto de circulação pela cidade? Em suma: quais os efeitos da instauração de um “estado de crise” sobre o capital policial em nosso país?

Além disso, um outro ponto fundamental diz respeito à crescente politização e autonomização das nossas forças policiais. Me refiro não apenas à transformação de agentes em políticos profissionais nos parlamentos municipais, estaduais e no Congresso Nacional, mas também na autonomização do trabalho policial perante mecanismos de controle civil. Para ficarmos novamente com apenas um exemplo da última crise pandêmica, vale destacar dois desdobramentos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 – a chamada “ADPF das favelas”. Embora desde junho de 2020 tal medida restrinja legalmente a realização de “operações policiais” no Rio de Janeiro, as polícias vêm descumprindo sistematicamente a decisão do STF, com a ocorrência, inclusive, da maior chacina policial já praticada no território fluminense.

Mais recentemente, líderes de entidades empresariais em articulação com a “bancada da bala” se reuniram com o ministro Gilmar Mendes em Brasília para pedir a anulação definitiva da arguição. Mesmo com evidências que apontam o contrário, a força tarefa policial-empresarial justifica o pedido diante do cenário de “crescente violência e desordem, intensificado pelas limitações impostas às operações policiais” no Rio de Janeiro. O relator da ADPF 635, o ministro Édson Fachin, afirmou que o mérito da decisão será analisado ainda neste ano de 2024.

•        Espadas independentes

Diante desses elementos, alguns dilemas emergem como pontos para reflexão. Sabemos primeiramente que a relação entre crises sanitárias e forças policiais sempre foi marcada por inúmeros tensionamentos ao longo da história. E sabemos também que esses tensionamentos tendem a aparecer pelo papel de maior protagonismo assumido pelas polícias nesses contextos, quando ela assume a responsabilidade de garantir a aplicação de medidas sanitárias voltadas para a “segurança” e a “ordem” – a despeito das disputas semânticas que sempre envolvem a definição desses termos. Todavia, o que dizer sobre o caso brasileiro, onde esses tensionamentos muitas vezes surgem não em decorrência do papel das polícias em “aplicar a lei”, mas sim em decorrência do seu papel enquanto “espadas independentes” em relação à sociedade e ao próprio Estado? Se o pouco controle exercido sobre as polícias já é parte do nosso imanente “estado de crise”, como proceder caso medidas mais sérias de enfrentamento às pandemias/epidemias ocorram no futuro? Como evitar que a discricionariedade policial vire ainda mais arbitrariedade em “estados de crise”?    

É preciso compreender que as polícias – particularmente e crescentemente no Brasil – são instituições dotadas de interesses próprios, e que nem sempre atuam em concordância com a lei ou com outras instituições formais dentro do que se entende por “Estado”. Como argumentam Roberto Kant de Lima e Lenin Pires, as forças de segurança operam em seu cotidiano muito mais através de “malhas” de relações pessoalizadas, capazes de incorporar agentes que estão em diferentes momentos de suas carreiras e também em diferentes agências policiais e corporações da magistratura, do ministério público e do campo jurídico de modo geral.

A polícia pode, por vezes, disputar a maneira como o Estado se constrói como ação e representação, reivindicando e auferindo rendimentos através de discursos que afirmam ela ser Estado. Outras vezes, a polícia pode igualmente reivindicar um conjunto de práticas que vão contra o Estado em termos da sua racionalidade pretensamente moderna e normativa, orientada pelos parâmetros de defesa de direitos e segurança pública. Por mais aparentemente contraditório que isto possa parecer, é possível perceber ambos os movimentos de muitas maneiras, inclusive através das narrativas que surgem da relação entre crises sanitárias e policiamento.

Compreender essas nuances é fundamental para refletir criticamente os papéis a serem ou não exercidos pelas polícias em momentos de epidemias e pandemias futuras no Brasil. Queiram ou não, nenhum sinal no horizonte nos indica qualquer arrefecimento da crise ambiental e seus potenciais desdobramentos sanitários. Da mesma forma, nenhum sinal no horizonte nos indica quaisquer mudanças no modus operandi das nossas polícias. 

 

Fonte: Por Eduardo de Oliveira Rodrigues, no GGN

 

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