Chris Hedges: ‘A política do desespero
cultural’
No final, a eleição
foi sobre o desespero. O desespero em relação a futuros que se evaporaram com a
desindustrialização. O desespero pela perda de 30 milhões de empregos em
demissões em massa. O desespero diante de programas de austeridade e da
canalização da riqueza para as mãos de oligarcas vorazes. O desespero sobre uma
classe liberal que se recusa a reconhecer o sofrimento que orquestrou sob o
neoliberalismo ou a adotar programas do tipo New Deal que possam amenizar esse
sofrimento. O desespero diante de guerras fúteis e intermináveis, assim como do
genocídio em Gaza, onde generais e políticos nunca são responsabilizados. O
desespero sobre um sistema democrático que foi capturado pelo poder corporativo
e oligárquico.
Esse desespero tem
sido manifestado nos corpos dos marginalizados por meio de vícios em opioides e
álcool, jogos de azar, tiroteios em massa, suicídios — especialmente entre
homens brancos de meia-idade — obesidade mórbida e o investimento de nossa vida
emocional e intelectual em espetáculos banais e no fascínio por pensamentos
mágicos, desde as promessas absurdas da direita cristã até a crença ao estilo
Oprah de que a realidade nunca é um impedimento para nossos desejos. Estas são
as patologias de uma cultura profundamente doente, o que Friedrich Nietzsche
chama de niilismo agressivo e despiritualizado.
Donald Trump é um
sintoma da nossa sociedade doente. Ele não é a sua causa. Ele é o que é
vomitado do processo de decadência. Ele expressa um anseio infantil de ser um
deus onipotente. Esse desejo ressoa entre os estadunidenses que se sentem
tratados como lixo humano. Mas a impossibilidade de ser um deus, como Ernest
Becker escreve, leva à sua alternativa sombria — destruir como um deus. Essa
autoimolação é o que vem a seguir.
Kamala Harris e o
Partido Democrata, juntamente com a ala establishment do Partido Republicano,
que se aliou a Harris, vivem em seu próprio sistema de crenças não-baseado na
realidade. Harris, que foi ungida pelas elites do partido e nunca recebeu um
único voto nas primárias, alardeou orgulhosamente o seu endosso por Dick
Cheney, um político que deixou o cargo com uma taxa de aprovação de 13%. A
cruzada “moral” arrogante e autojustificada contra Trump alimenta o
reality-show nacional que substituiu o jornalismo e a política. Reduz uma crise
social, econômica e política à personalidade de Trump. Recusa-se a enfrentar e
nomear as forças corporativas responsáveis por nossa democracia fracassada [nos
EUA]. Permite que os políticos democratas ignorem facilmente sua base – 77% dos
democratas e 62% dos independentes apoiam um embargo de armas contra Israel. A
conivência aberta com a opressão corporativa e a recusa em atender aos desejos
e necessidades do eleitorado neutralizam a imprensa e os críticos de Trump. Esses
fantoches corporativos não defendem nada, exceto o seu próprio avanço. As
mentiras que eles contam aos trabalhadores, especialmente com programas como o
Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), causam muito mais danos
do que qualquer uma das mentiras proferidas por Trump.
Oswald Spengler, em
"A Decadência do Ocidente", previu que, à medida que as democracias
ocidentais se calcificassem e morressem, uma classe de "bandidos
monetários", pessoas como Trump, substituiria as elites políticas
tradicionais. A democracia se tornaria uma farsa. O ódio seria fomentado e
alimentado nas massas para incentivá-las a se destruírem.
O sonho americano se
tornou um pesadelo americano.
Os laços sociais,
incluindo empregos que davam aos trabalhadores estadunidenses um senso de
propósito e estabilidade, que lhes davam significado e esperança, foram
rompidos. A estagnação de dezenas de milhões de vidas, a percepção de que não
será melhor para seus filhos, a natureza predatória das nossas instituições,
incluindo educação, saúde e prisões, geraram, junto com o desespero,
sentimentos de impotência e humilhação. Isso gerou solidão, frustração, raiva e
uma sensação de inutilidade.
“Quando a vida não
vale a pena ser vivida, tudo se torna um pretexto para nos livrarmos dela...”,
escreveu Émile Durkheim. “Há um estado de ânimo coletivo, assim como há um
estado de ânimo individual, que inclina as nações à tristeza... Pois os
indivíduos estão muito envolvidos na vida da sociedade para que ela esteja
doente sem que todos sejam afetados. Seu sofrimento inevitavelmente se torna o
deles.”
Sociedades decadentes,
onde uma população é despojada de poder político, social e econômico,
instintivamente buscam líderes de culto. Eu vi isso durante a desintegração da
antiga Iugoslávia. O líder de culto promete um retorno a uma era de ouro mítica
e jura, como Trump faz, esmagar as forças encarnadas em grupos e indivíduos
demonizados que são culpados por sua miséria. Quanto mais ultrajantes os
líderes de culto se tornam, quanto mais desrespeitam a lei e as convenções
sociais, mais ganham em popularidade. Os líderes de culto são imunes às normas
da sociedade estabelecida. Esta é a sua atração. Líderes de culto buscam poder
total. Aqueles que os seguem lhes concedem esse poder na esperança desesperada
de que eles os salvarão.
Todos os cultos são
cultos de personalidade. Os líderes de culto são narcisistas. Eles exigem
bajulação e obediência total. Eles valorizam a lealdade acima da competência.
Eles exercem controle absoluto. Eles não toleram críticas. Eles são
profundamente inseguros, uma característica que tentam encobrir com uma
grandiosidade bombástica. Eles são amorais e abusivos emocional e fisicamente.
Eles veem aqueles ao seu redor como objetos a serem manipulados para o seu
próprio empoderamento, prazer e, muitas vezes, entretenimento sádico. Todos
aqueles fora do culto são rotulados como forças do mal, levando a uma batalha
épica cuja expressão natural é a violência.
Não convenceremos
aqueles que entregaram a sua ação a um líder de culto e abraçaram o pensamento
mágico através de argumentos racionais. Não os coagiremos à submissão. Não
encontraremos salvação para eles nem para nós apoiando o Partido Democrata.
Segmentos inteiros da sociedade estadunidense estão agora inclinados à
autoimolação. Eles desprezam este mundo e o que este fez com eles. Seu
comportamento pessoal e político é deliberadamente suicida. Eles buscam
destruir, mesmo que a destruição leve à violência e à morte. Eles não são mais
sustentados pela ilusão reconfortante do progresso humano, perdendo o único
antídoto para o niilismo.
O Papa João Paulo II,
em 1981, emitiu uma encíclica intitulada “Laborem exercens” ou “Através do
Trabalho”. Ele atacou a ideia, fundamental para o capitalismo, de que o
trabalho era meramente uma troca de dinheiro por trabalho. O trabalho, escreveu
ele, não deveria ser reduzido à mercantilização dos seres humanos por meio de
salários. Os trabalhadores não eram instrumentos impessoais a serem manipulados
como objetos inanimados para aumentar o lucro. O trabalho era essencial para a
dignidade humana e a autorrealização. Ele nos dava uma sensação de
empoderamento e identidade. Permitía-nos construir uma relação com a sociedade
em que sentíamos que contribuíamos para a harmonia e coesão social, uma relação
em que tínhamos um propósito.
O papa criticava o
desemprego, o subemprego, os salários inadequados, a automação e a falta de
segurança no emprego como violações da dignidade humana. Essas condições,
escreveu ele, eram forças que negavam a autoestima, a satisfação pessoal, a
responsabilidade e a criatividade. A exaltação da máquina, advertiu, reduzia os
seres humanos ao status de escravos. Ele clamava por emprego pleno, um salário
mínimo suficiente para sustentar uma família, o direito de um dos progenitores
ficar em casa com os filhos e empregos e um salário digno para os deficientes.
Ele defendia, a fim de sustentar famílias fortes, seguro de saúde universal,
pensões, seguro contra acidentes e horários de trabalho que permitissem tempo
livre e férias. Ele escreveu que todos os trabalhadores deveriam ter o direito
de formar sindicatos com o poder de fazerem greve.
Devemos investir nossa
energia em organizar movimentos de massa para derrubar o estado corporativo por
meio de atos sustentados de desobediência civil em massa. Isso inclui a arma
mais poderosa que possuímos – a greve. Ao voltarmos a nossa ira contra o estado
corporativo, nomeamos as verdadeiras fontes de poder e abuso. Expomos o absurdo
de culpar a nossa decadência em grupos demonizados, como trabalhadores sem
documentos, muçulmanos ou negros. Oferecemos às pessoas uma alternativa ao
Partido Democrata submisso às corporações, que não pode ser reabilitado.
Tornamos possível a restauração de uma sociedade aberta, uma que sirva ao bem
comum em vez do lucro corporativo. Devemos exigir nada menos do que pleno
emprego, rendas mínimas garantidas, seguro de saúde universal, educação
gratuita em todos os níveis, proteção robusta do mundo natural e o fim do
militarismo e do imperialismo. Devemos criar a possibilidade de uma vida de
dignidade, propósito e autoestima. Se não o fizermos, garantiremos um fascismo
cristianizado e, em última análise, com o ecocídio em aceleração, nossa
obliteração.
¨ Um olhar brasileiro de Trump no poder: surpresa, tristeza e
preocupação. Por Chico Vigilante
A recente eleição de
Donald Trump para mais um mandato à frente dos Estados Unidos traz uma série de
preocupações para o cenário global e para o Brasil, em especial. Trump retorna
ao poder com a intenção clara de expandir os limites de sua administração e
consolidar sua influência, tanto interna quanto externamente. Com o controle do
Senado e da Câmara e o respaldo de um Supremo Tribunal conservador, ele possui,
agora, poderes excepcionais que tendem a impulsionar sua agenda autoritária e a
enfraquecer as estruturas democráticas norte-americanas.
Trump se consolidou
como o principal líder da extrema direita mundial, ao lado de figuras como
Vladimir Putin e Viktor Orbán. Esse retorno ao poder representa um golpe para o
multilateralismo, uma vez que sua política é contrária a alianças internacionais
e compromissos globais. O enfraquecimento do multilateralismo já é uma
realidade há alguns anos, mas agora tende a se aprofundar. É provável que
Trump, com sua politica negacionista, retire os EUA do Acordo de Paris,
abandonando compromissos essenciais para o combate às mudanças climáticas, além
de questionar e até minar organizações internacionais de saúde, trabalho e
comércio.
A possível saída dos
EUA da OTAN e o fim da aliança atlântica entre os Estados Unidos e a Europa
também representam uma grande ameaça para a estabilidade mundial. Essas
mudanças podem criar um ambiente de instabilidade econômica e política, com
consequências negativas para o Brasil.
Nosso país,
especialmente sob a liderança de Lula, busca ser um ator relevante no cenário
internacional, prezando pela democracia, pela igualdade e pela preservação do
meio ambiente. Essas bandeiras, no entanto, encontram pouco eco em uma gestão
norte-americana “trompista”, que se afasta cada vez mais desses valores.
É importante destacar
a postura do presidente Lula, que, mesmo após apoiar publicamente Kamala
Harris, demonstrou maturidade e diplomacia ao parabenizar Trump por sua
vitória. Essa atitude reflete o compromisso de Lula em manter o Brasil como um
país neutro, independente e autônomo, sem se subordinar a qualquer potência
internacional. A experiência de Lula será crucial para lidar com o novo cenário
global, especialmente com a proximidade de Trump com a extrema direita
brasileira, que, de certa forma, atua como uma extensão das forças reacionárias
norte-americanas.
A situação do Brasil
torna-se ainda mais complexa com as patacoadas de Javier Milei na Argentina,
outro líder de extrema direita que, assim como Trump, desafia as instituições
democráticas e promove uma agenda radical. Com Trump em Washington e Milei em Buenos
Aires, o Brasil está em uma posição delicada, exigindo uma política externa
prudente e uma vigilância constante para preservar nossa estabilidade interna.
A recente eleição no
Brasil, contudo, trouxe um certo alívio: o centro político foi o grande
vencedor, evidenciando uma rejeição crescente à extrema direita. O bolsonarismo
golpista, que já demonstrava sinais de desgaste, pode, contudo, tentar se
revigorar à sombra do retorno de Trump. Essa ameaça requer uma postura atenta
das forças democráticas brasileiras, que devem se manter firmes e vigilantes
para proteger o Brasil de influências antidemocráticas.
O retorno de Trump ao
poder é um teste para a democracia mundial, e o Brasil, com sua história de
luta e seu compromisso com a liberdade, precisa estar preparado para enfrentar
os desafios que estão por vir. A experiência e a resiliência de Lula serão fundamentais
para nos guiar nesse cenário turbulento, protegendo a nossa soberania e
garantindo que continuemos avançando em direção a um país mais justo e
democrático.
Fonte: Brasil 247
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