A luta de família para desvendar segredos de assassinato racista
cometido há 64 anos
A família de um homem negro assassinado no Reino
Unido em 1959 está reivindicando acesso aos documentos do arquivo da polícia
ligados ao caso - que nunca foi esclarecido.
Kelso Cochrane foi esfaqueado até a morte em uma
rua do oeste de Londres, no que se acredita ter sido um ataque racista. Ninguém
jamais foi acusado do crime.
A Polícia Metropolitana de Londres, a Scotland
Yard, diz que o arquivo não está disponível ao público porque o caso ainda está
aberto.
O advogado da família diz que esse sigilo não se
justifica, e a família se diz disposta a tomar as medidas legais necessárias.
O assassinato é um dos eventos mais significativos
da Black British History, a história dos cidadãos britânicos que se mudaram
para o Reino Unido, no século passado, de ex-colônias do Caribe e da África.
Na época em que foi morto, o homem de 32 anos
morava em Londres, trabalhava como carpinteiro e planejava estudar direito.
Kelso Cochrane nasceu em Antígua e chegou à
Inglaterra cinco anos antes de sua morte, após uma passagem pelos Estados
Unidos. Ele havia se casado lá, mas o relacionamento havia acabado.
Ele também havia deixado duas filhas pequenas nos
Estados Unidos, para quem ainda enviava brinquedos — bonecas, jogos de chá e
cordas de pular. Uma delas, Josephine, diz que essas "pequenas
coisas" lhe davam "a impressão de que ele era um pai amoroso e que se
importava".
Como muitos outros membros da geração Windrush
(como eram chamados os migrantes que vieram, após a Segunda Guerra, do Caribe),
Cochrane morava na área de Notting Hill, no oeste de Londres. Era uma das
poucas partes da cidade onde os novos imigrantes do Caribe podiam encontrar
moradia, embora muitas vezes fosse cara, superlotada e em más condições. A área
também abrigava uma população da classe trabalhadora branca bem estabelecida.
Na noite de 16 de maio de 1959, Cochrane fez uma
visita ao hospital local, Paddington General. Ele tinha sofrido uma lesão no
polegar durante o trabalho.
No caminho de volta para casa, ele foi atacado por
um grupo de cinco ou seis jovens brancos. Testemunhas disseram que viram ele
sendo cercado e espancado. Um agressor chegou a pular nas costas dele.
Dois homens jamaicanos que passavam pelo local
correram para ajudar. Cochrane conseguiu se levantar, foi colocado em um táxi e
levado para o Hospital St Charles, nas proximidades de North Kensington.
Cochrane não parecia estar sangrando muito, mas ele
havia sido esfaqueado no coração com uma lâmina fina. Quando chegaram ao
hospital, ele estava em estado de choque. Ele morreu lá, pouco antes da 1 da
manhã.
Por volta das 4 da manhã, a notícia da morte chegou
aos jornais. Uma edição tardia do Sunday Express daquela manhã trazia uma
manchete chamativa: "Assassinato em Notting Hill".
Notting Hill já era uma região conhecida pela
tensão racial. No verão anterior de 1958, a região registrou tumultos que
duraram dias.
Os confrontos terminaram no início de setembro, mas
para os moradores negros, a corrente de violência persistiu.
Grupos de extrema-direita tornaram-se ativos na
região, incluindo o Movimento Sindical de Oswald Mosley. Na primavera de 1959,
outro grupo, a White Defense League, montou um escritório no coração de Notting
Hill, dizendo que faria "campanha pelos interesses dos brancos".
Mas, apesar de toda a tensão, ninguém havia sido
morto em um ataque racista — até Kelso Cochrane.
O inquérito policial foi conduzido por Ian
Forbes-Leith, com uma equipe de 20 oficiais à disposição.
A investigação rapidamente se concentrou em uma
festa, que ocorria perto de onde Cochrane foi atacado. Vários convidados foram
interrogados.
Dois deles foram detidos por mais de 48 horas —
Patrick Digby, um marinheiro mercante de 20 anos, e John "Shoggy"
Breagan, de 24. Mais tarde, eles foram libertados sem serem indiciados.
A polícia foi rápida em descartar a ideia de que o
crime teria sido motivado por racismo. Forbes-Leith disse à imprensa que o
esfaqueamento "não teve absolutamente nada a ver com conflito
racial". Ele sugeriu que o motivo poderia ter sido roubo.
Mas não era isso o que pensavam muitos na
comunidade negra de Notting Hill. John Prince, amigo de Cochrane, disse à BBC
em 2006 que o clima, na época, era de medo: "De repente, agora você se
depara com a possibilidade de ser assassinado apenas por ser quem você é como
pessoa".
Em 6 de junho de 1959, centenas de pessoas — negras
e brancas — se reuniram para o funeral de Cochrane em uma procuissão pelas ruas
de Notting Hill, seguindo seu caixão até o cemitério de Kensal Green.
Após o assassinato, a ativista Claudia Jones e
outros colegas criaram o Conselho de Coordenação de Amizade Interracial, que
pagou os custos do funeral de Cochrane, organizou protestos silenciosos em
frente à sede do governo em Whitehall e pressionou por leis contra o ódio
racial.
Com o tempo, o inquérito policial foi arquivado.
Décadas depois, em 2006, o irmão mais velho de
Cochrane, Stanley, veio, pela primeira vez, à Inglaterra. Ele queria descobrir
quem matou o irmão dele. Uma equipe que fazia um documentário para a BBC o
acompanhou.
O jornalista investigativo Mark Olden rastreou
Patrick Digby e John Breagan, mas nenhum dos dois estava disposto a se
encontrar com Stanley. Ambos negaram envolvimento no crime. Stanley pediu para
ver o arquivo da polícia, mas só teve permissão para acessar uma versão
resumida.
Entre os que assistiram ao documentário estava a
enteada de Patrick Digby, Susie Read. Ela contatou Olden e disse a ele que se
lembrava dos amigos de Digby o provocando com um nome estranho -
"Oslo" ou "Kelso".
Ela nos disse que, certa vez, durante uma
discussão, ela questionou Digby sobre a acusação: "Ele disse: 'Bem, se eu
tivesse feito isso, você nunca poderia provar.' Eu disse, 'Você o matou? Ele
disse, 'Sim'."
Digby morreu em 2007.
Olden continuou cavando. Ele falou com um convidado
na festa da Southam Street, que lhe disse que Digby havia voltado à festa após
o ataque e confessou (o ctrime) às pessoas presentes.
Ele falou novamente com John Breagan, que disse que
ele e Digby haviam deixado a festa juntos antes do assassinato. Quando
questionados pela polícia sobre o motivo, um deles disse que era para procurar
garotas, o outro disse que era para brigar. Mas, quando foram detidos na delegacia,
eles foram mantidos em celas adjacentes. Breagan disse a Olden que isso
permitiu que eles "alinhassem" suas histórias. Breagan morreu em
2019.
Em 2011, Olden publicou um livro, Murder in Notting
Hill, que levou a filha de Kelso Cochrane, Josephine, a contatá-lo. Crescendo
em Nova York, ela sabia que o pai havia morrido, mas não sabia. até então, que
ele tinha sido assassinado.
Josephine está agora no centro dos esforços da
família para abrir os arquivos da polícia. Ela nos disse que, como não conhecia
o pai dela quando criança, queria saber "tudo" sobre o assassinato e
a investigação "antes de morrer".
O arquivo de investigação sobre o assassinato de
Kelso Cochrane foi transferido para os Arquivos Nacionais em Kew, mas
permanecerá fechado até 2054 — após o 100º aniversário de Josephine.
Não é incomum que casos de assassinato não
resolvidos sejam restritos por até 100 anos — para que eles só se tornem
públicos depois que todos os envolvidos morreram.
Mas alguns arquivos de assassinatos não resolvidos
em Londres no mesmo período foram abertos, como o de Freda Knowles, assassinada
em 1964, ou Ernest Isaacs, morto a tiros na casa dele em 1966.
O historiador de crimes Mark Roodhouse, da
Universidade de York, usa arquivos policiais de meados do século 20 para suas
pesquisas. Ele diz ter ficado surpreso ao saber que o acesso ao arquivo Kelso
Cochrane ainda é restrito.
Na primavera de 2020, fiz meu próprio pedido
baseado na lei de Liberdade de Informação para que o arquivo Cochrane fosse
aberto antecipadamente, por motivos de interesse público.
Consegui abrir outros arquivos com antecedência,
principalmente dezenas de arquivos sobre abuso sexual infantil logo após o
escândalo de Jimmy Savile (conhecido apresentador de rádio e TV que abusou
sexualmente de centenas de pessoas impunemente).
Na ocasião, porém, meu pedido foi recusado.
A Polícia Metropolitana disse então que o caso
Cochrane ainda estava aberto e que "novas técnicas científicas"
significavam que "casos até então considerados insolúveis estão sendo examinados
novamente".
Também me disseram que liberar os arquivos causaria
"sofrimento mental imediato" à família. No entanto, é a família de
Cochrane que agora deseja que o arquivo seja divulgado.
Além do mais, os principais suspeitos estão mortos
e é difícil apontar para qualquer evidência que pudesse, hoje, ser examinada
por "novas técnicas científicas". A equipe de documentários da BBC
foi informada em 2006 que as roupas de Kelso Cochrane haviam sido destruídas no
final dos anos 1960.
Voltamos à Polícia Metropolitana nos últimos meses,
pedindo que eles explicassem por que a família Cochrane não conseguiu acessar o
arquivo. Eles nos disseram que "como acontece com todos os assassinatos
não resolvidos, este caso não está encerrado e qualquer evidência que vier à
tona será avaliada e investigada de acordo".
Eles disseram que membros da equipe responsável
pelo caso tentaram, sem sucesso, se encontrar com a família de Cochrane, para
discutir os detalhes dessa investigação de assassinato.
Daniel Machover, advogado da família Cochrane, diz
que a família seguirá um caminho formal para obter o arquivo — contestando os
motivos anteriormente apresentados para retê-lo.
Machover reuniu várias declarações para apoiar o
pedido, de parentes de Kelso Cochrane e de jornalistas que tentaram obter
acesso ao arquivo durante muitos anos, inclusive eu.
Machover também forneceu os atestados de óbito dos
principais suspeitos e de outras pessoas que provavelmente foram testemunhas
importantes no caso.
Ele diz que é tarde demais para a justiça criminal,
mas a família espera que haja algo no arquivo que "pelo menos dê a eles
uma imagem, um sabor, uma ideia do que foi feito para tentar garantir uma
acusação criminal e um processo criminal".
Machover representou muitas famílias negras em ações
contra a Polícia Metropolitana. Ele acredita que é preciso reconhecer os
acontecimentos do passado para lidar com a desconfiança hoje.
Comparações foram feitas com o assassinato em
Londres do adolescente Stephen Lawrence, em 1993 — em ambos os casos, houve
relutância por parte da Polícia Metropolitana em apontar o racismo como
motivação, e uma falha inicial em indiciar alguém pelos crimes.
A menos de um quilômetro de onde foi atacado, uma
rua recebeu o nome de Kelso Cochrane, assim como um novo bloco de habitação
social.
Os membros da família Cochrane agradecem o
reconhecimento, mas ainda querem algo mais.
Millicent Christian, filha do primo de Cochrane,
diz que a mãe de Stephen Lawrence, Doreen, acabou alcançando "algum
tipo" de justiça. "Estamos procurando o mesmo para o nosso
Kelso."
Fonte: BBC News Mundo
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