Proposta do governo pode finalmente tirar do papel mercado regulado de
carbono
Após meses de discussão interna, a proposta
negociada pelo governo federal para regular o mercado de carbono no país foi
apresentada ao Congresso Nacional. Na avaliação de especialistas
ouvidos pela Agência Pública, ela traz avanços em relação a
projetos anteriores e pode finalmente tirar do papel um sistema de comércio de
emissões supervisionado pelo governo – algo que até hoje não havia sido
possível.
Atualmente o que funciona no país é apenas um
mercado voluntário, sem metas nem regras estabelecidas, o que o deixa sujeito a
irregularidades, especialmente junto a comunidades tradicionais, e a pouco impacto
real em termos de controle de emissões de carbono.
De acordo com especialistas em negociações
climáticas, o mercado regulado é um dos instrumentos pelos quais o país pode
distribuir de modo mais eficiente os esforços nacionais em reduzir suas emissões
de gases de efeito estufa e, assim, alcançar seus compromissos de redução de
junto ao Acordo de Paris. Também pode ajudar o Brasil a fazer a transição para
uma economia de baixo carbono.
A proposta do governo foi encampada pela senadora
Leila Barros (PDT-DF), presidente da Comissão de Meio Ambiente (CMA) da Casa,
que apresentou na terça-feira (21) um substitutivo ao projeto de lei (PL) 412/2022. O texto original, de autoria do ex-senador
Chiquinho Feitosa, e do qual Barros é relatora, é uma das matérias sobre o
assunto que tramitam no Legislativo. Há pelo menos dois projetos em discussão
na Câmara dos Deputados e outros dois no Senado, acompanhados de propostas
apensadas.
O substitutivo proposto por Barros determina a
criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa
(SBCE), que funciona com base no sistema de cap and trade,
inspirado no mercado europeu.
Neste modelo, o governo estabelece um teto (cap)
de gases de efeito estufa que determinados setores econômicos podem emitir.
Esse limite é dividido nas chamadas “Cotas Brasileiras de Emissões” (CBEs). O
sistema estabelecerá a quantidade de CBEs com a qual cada empresa contará por
um determinado período de tempo – por exemplo, um ano. As empresas, então,
podem comercializar (trade) essas CBEs entre si com a intenção de se
manter abaixo do teto.
O projeto definiu que setores que emitem mais de 25
mil toneladas de CO2 equivalente por ano serão regulados pelo SBCE, o que
abrange sobretudo setores industriais como os da siderurgia, química, alumínio
e fertilizantes.
Pelo sistema, as empresas desses setores que
emitirem demais e ultrapassarem suas cotas precisarão compensar esse excesso.
Uma possibilidade é comprar títulos de outras que tenham emitido menos que seus
limites, e, portanto, possuam excedentes de CBEs.
Em resumo, o mercado de carbono é uma política
pública para regular as emissões do setor privado e que age, em termos
econômicos, como se fosse um imposto. O limite de emissões – o cap –,
seria esse imposto. Para pagá-lo, os atores regulados precisam comprar unidades
de outros atores que conseguiram ficar abaixo do seu teto – a Cota Brasileira
de Emissões.
Mas eles também podem optar por comprar
Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões” (RVEs), que são
títulos do SBCE que são emitidos por outros atores que fazem alguma atividade
que é reconhecida como redução de emissões. Esses projetos têm de atender a
critérios e metodologias credenciadas pelo governo.
Esses certificados são, na prática, uma espécie de
título de isenção de imposto. Da mesma forma que uma pessoa pode abater do
imposto de renda uma doação prevista em lei.
Os certificados podem ser gerados a partir de
créditos de carbono derivados de projetos externos ao SBCE, do mercado
voluntário.
O secretário de Economia Verde, Descarbonização e
Bioindústria do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços
(MDIC), Rodrigo Rollemberg, que participou da construção da proposta do
governo, avalia que o substitutivo traz os principais pontos defendidos pelo
Executivo.
É o caso, por exemplo, do estabelecimento de um
sistema de cap and trade e da definição de quem deve ser
submetido à regulação no mercado.
A pasta de Rollemberg foi uma das dez que,
capitaneadas pelo Ministério da Fazenda, participaram da elaboração da minuta
considerada por Barros na apresentação do substitutivo. O processo ocorre desde
o começo do ano.
Nas últimas semanas, havia uma indefinição sobre
como a proposta do governo seria levada ao Congresso: se por meio de um novo
projeto de lei ou da incorporação a alguma das matérias em análise no
parlamento. Com a iniciativa da senadora, Rollemberg está otimista em relação à
rápida tramitação e aprovação da matéria até a 28ª Conferência do Clima da ONU,
a COP28, que acontecerá em dezembro nos Emirados Árabes Unidos.
Para ele, a regulação do mercado de carbono “inicia
uma janela” para aprovação de uma agenda verde no Congresso Nacional, que
inclui a criação de um marco legal para os setores de eólicas offshore e
hidrogênio verde, entre outros itens. “Não tem oposição a essa agenda”,
argumenta. “[Teremos um] semestre verde, em que o Brasil vai descortinar o
futuro verde que temos pela frente”, diz
Especialistas entrevistados pela Pública também
avaliaram positivamente o projeto, visto como mais maduro que os demais já
apresentados. Segundo Shigueo Watanabe, pesquisador do Instituto Talanoa, think
thank de política climática, o maior mérito do governo é ter
finalmente articulado esforços para a elaboração de uma proposta que, embora
não seja a ideal, “está muito melhor do que tudo que apareceu até agora”.
“Finalmente temos a possibilidade de criar um
mercado de carbono [regulado], que é um sinal extremamente positivo para a
sociedade brasileira e para o mundo. Tem muitos países que já fizeram essa
lição de casa, estamos super atrasados”, pontua. “Agora, o primeiro passo sério
foi dado”.
O pesquisador lembra que as discussões sobre a
regulação do mercado de carbono se arrastam há anos: “A medida já era prevista
na Política Nacional sobre Mudança do Clima, instituída em 2009. Em 2021,
entraram alguns projetos de lei no Congresso que ficaram tramitando. Com o
início do governo Lula, foi produzida a versão do Executivo, que passou também
por vários grupos e ministérios.”
Caroline Prolo, advogada especialista em direito
das mudanças climáticas e diretora executiva da LACLIMA, associação de
advogados de mudanças climáticas da América Latina, explica que o substitutivo
deixa definições importantes sujeitas à regulamentação posterior, como a
decisão sobre o órgão gestor do sistema.
“Mas entendo que isso é necessário, porque algumas
decisões dependem de mais insumos técnicos. De qualquer forma, este vai ser um
sistema vivo permanentemente revisado e implementado por decretos. Daí a
importância de a lei prever uma boa governança capaz de gerir esse sistema com
competência e agilidade”, afirma.
Se aprovado conforme apresentado pela senadora
Leila Barros, o texto prevê que a regulamentação seja editada até um ano após a
lei entrar em vigor. Depois disso, as empresas terão dois anos para se adaptar
às regras.
A
senadora Leila Barros (PDT-DF), autora do substitutivo que encampou a proposta
do governo para a regulação do mercado de carbono
Outro aspecto do texto que os especialistas
enxergam como um avanço é a garantia aos povos indígenas e comunidades
tradicionais sobre a comercialização de créditos de carbono gerados em seus
territórios. Nos últimos anos, empresas têm sido denunciadas por estabelecer
contratos abusivos com esses grupos para projetos do mercado voluntário,
sobretudo na Amazônia.
No ano passado, a Pública revelou um desses casos, em que uma
empresa vendia a grandes multinacionais – como Santander, Barilla, Air France e
Deloitte – créditos oriundos de duas reservas extrativistas federais na Ilha do
Marajó, no Pará.
O substitutivo propõe que seja respeitada a
consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas, conforme previsto pela
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Também determina
que seja definida regra para a “repartição justa e equitativa e gestão
participativa” dos recursos provenientes da venda dos créditos.
“O reconhecimento dos direitos dos povos indígenas
e tradicionais à comercialização de crédito de carbono de atividades provindas
dos seus territórios e definição de salvaguardas mínimas é um dos pontos
positivos do projeto”, afirma Prolo. O projeto estabelece que um futuro
regulamento vai determinar as salvaguardas para proteção desses povos em
projetos do mercado voluntário e também de créditos que vão ser aceitos dentro
do SBCE.
Milhões
de créditos de carbono não têm lastro em preservação florestal, mostra estudo
Pesquisa publicada nesta quinta-feira (24/8) pela
revista Science mostrou que milhões de créditos de carbono têm sido gerados
superestimando a preservação florestal à qual supostamente estariam vinculados.
O estudo, conduzido por cientistas da Universidade de Cambridge e da
Universidade Livre de Amsterdã, analisou 18 grandes projetos de compensação
ambiental (o chamado offset de carbono) e comparou a taxa conservação por eles
apresentada com áreas similares.
Os projetos analisados são baseados no mecanismo
REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), um
instrumento de pagamento por serviços ambientais que remunera a preservação em
grandes áreas florestais de países em desenvolvimento. Nesse caso, a extensão preservada
é convertida em créditos de carbono, que deveriam corresponder à quantidade de
gás-estufa não emitido por desmatamento e são negociados com empresas e
empreendimentos que precisam abater suas próprias emissões.
A pesquisa analisou projetos desenvolvidos no Peru,
na Colômbia, no Camboja, na Tanzânia e na República Democrática do Congo, que
anunciam, somados, a geração de 89 milhões de créditos de carbono. Desses, mais
de 60 milhões são provenientes de projetos que praticamente não reduziram o desmatamento,
de acordo com o estudo. Apenas 5,4 milhões desses créditos (6% do total) estão
vinculados a áreas que efetivamente reduziram emissões de carbono através de
preservação florestal em quantidades equivalentes aos créditos anunciados.
Isso significa que muitos dos créditos comprados
por empresas para abater emissões não têm lastro no mundo real, por não estarem
vinculados a áreas preservadas compatíveis com as emissões que dizem evitar.
Uma espécie de especulação, como a que ocorre em mercados financeiros quando
vultuosas quantias de dinheiro são negociadas sem lastro na economia real.
“Consequentemente, muitas toneladas de emissões de
gases de efeito estufa consideradas ‘compensadas’ por árvores que deixariam de
existir sem a preservação foram, na verdade, simplesmente adicionadas ao débito
planetário de emissões de carbono”, dizem os pesquisadores.
A chave está na maneira pela qual se calcula quanto
de desmatamento os projetos foram capazes de evitar, de onde deriva o cálculo
das emissões evitadas e, consequentemente, dos créditos de carbono gerados. O
estudo identificou que os projetos utilizam projeções majoritariamente baseadas
na extrapolação de taxas de desmatamento históricas, algumas delas defasadas em
mais de uma década.
Segundo os cientistas, esse é um cálculo muito
simplista, que deixa de fora um conjunto importante de variáveis. Por isso, na
pesquisa, usaram uma abordagem diferente: identificaram áreas de floresta com
características semelhantes (incluindo níveis de cobertura florestal,
fertilidade do solo e registros de mineração e desmatamento) a cada um dos
projetos e consideraram as taxas de desmatamento dessas áreas como padrão de
comparação para calcular quanto desmatamento foi evitado.
“Utilizamos áreas do mundo real na comparação para
mostrar como cada região dos projetos REDD+ provavelmente estaria agora, em vez
de extrapolar dados históricos que ignoram uma ampla gama de fatores, desde
mudanças de política até forças de mercado”, afirmou Thales West, autor
principal da pesquisa.
Dos 18 projetos analisados, apenas um calculou a
área preservada a partir de uma projeção de desmatamento compatível com a área
comparada. Um outro projeto subestimou as taxas de desmatamento. Os outros 16,
diz o estudo, reivindicaram que uma taxa de desmatamento muito maior teria
ocorrido sem as ações de proteção, na comparação com áreas selecionadas.
Os resultados mostraram que, dos 89 milhões de
créditos de carbono anunciados pelos 18 projetos, mais de 60 milhões (cerca de
68%) são provenientes de áreas que reduziram o desmatamento em muito pouco (ou
em nada). Entre os 32% restantes, a maioria não conservou a florestas nas taxas
alegadas. Apenas 6% dos créditos (5,4 milhões) são compatíveis com a área
florestal realmente preservada.
Ao menos 14,6 milhões dos créditos de carbono
disponibilizados pelos projetos investigados já haviam sido comprados até
novembro de 2021.
• Greenwashing
à venda
O estudo destaca ainda a lógica especulativa que
vem se ampliando entre as iniciativas de mercado de carbono – e beneficiado
grandes poluidores. Algumas empresas, lembram os cientistas, usam a compensação
para criar a imagem de que estariam caminhando em direção às metas de emissões
líquidas zero, enquanto fazem nada ou muito pouco para reduzir o despejo de
gases de efeito estufa na atmosfera.
“Os créditos de carbono fornecem aos principais
poluidores uma aparente ‘credencial climática’. No entanto, podemos ver que as
alegações de salvar vastas extensões de floresta da motosserra para equilibrar
as emissões estão exageradas”, afirmou Andreas Kontoleon, do Departamento de
Economia da Terra de Cambridge, autor sênior do estudo.
Os pesquisadores também alertam que a falta de
transparência e mecanismos de avaliação dos créditos vendidos faz com que o
mercado seja inundado com “maus produtos” (ou falsos créditos), o que leva a
uma quebra de confiança e, em última instância, ao colapso do mercado. “Esses
créditos de carbono basicamente preveem se alguém vai derrubar uma árvore, e
vendem essa previsão. Se você exagerar ou projetar errado, intencionalmente ou
não, estará vendendo algo vazio”, complementa Kontoleon.
Ao mesmo tempo, frisam os autores, a grande oferta
de créditos de carbono que resulta dessa superestimação faz com que seus preços
caiam – permitindo que grandes poluidores comprem a baixos preços suas
aparências de agentes climáticos responsáveis.
O estudo defende que métodos mais transparentes e
sofisticados sejam utilizados nos cálculos de áreas preservadas, para que o
mercado de carbono possa ser confiável e efetivo na mitigação das mudanças
climáticas.
Fonte: Por Anna Beatriz Anjos e Giovana Girardi, da
Agencia Pública/((o))eco
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