sábado, 26 de agosto de 2023

Informações erradas causaram fim do confinamento antes da segunda onda da Covid-19 na Amazônia

Medidas não farmacológicas, como o confinamento social, têm desempenhado um papel importante na contenção da pandemia de COVID-19 em todo o mundo, especialmente antes da disponibilidade de vacinas. O término antecipado dessas medidas sempre trouxe o risco de um novo ressurgimento de casos. O Brasil teve um dos piores registros do mundo no manejo da pandemia de COVID-19, como mostra claramente o relatório de 1.079 páginas da comissão parlamentar de inquérito do Senado Federal, divulgado em outubro de 2022. Na época do relatório, o Brasil tinha 2,7% da população mundial, mas era responsável por 12,3% das mortes por COVID-19. Manaus, uma cidade de 2,2 milhões de habitantes na região amazônica, ganhou notoriedade por ser a primeira cidade do mundo a enterrar mortos por COVID-19 em valas comuns durante a primeira onda da pandemia em abril e maio de 2020 e depois pelo espectro de pessoas morrendo em hospitais por falta de oxigênio durante a segunda onda em janeiro de 2021. Manaus teve uma das piores respostas à pandemia de COVID-19, resultando em uma segunda onda catastrófica em janeiro de 2021 que colapsou os sistemas de saúde e funeral. Apesar dos alertas em revistas científicas, teorias que nunca foram publicadas em nenhuma revista especializada foram amplamente divulgadas pela mídia e apoiaram decisões políticas para o aumento da mobilidade urbana e o fim do confinamento social.

Esse resultado trágico foi resultado do negacionismo da COVID e da resistência associada às medidas de distanciamento social, tanto por indivíduos quanto por líderes políticos. Uma resistência semelhante às vacinas depois que elas se tornaram disponíveis em 2021 pioraria ainda mais o número de vítimas da pandemia no Brasil. O Presidente Jair Bolsonaro e seu governo (2019-2022) foram responsáveis por políticas equivocadas e um discurso de resistência a medidas efetivas de contenção da pandemia. As ações de Bolsonaro são creditadas com pelo menos meio milhão de mortes por COVID – 75% do total do Brasil até novembro de 2022.

O negacionismo da COVID, a marca principal do discurso do Presidente Bolsonaro, era (e ainda é) forte em Manaus. Uma indicação é fornecida pelo segundo turno da eleição em outubro de 2022, quando 61,3% dos votos para presidente foram para Bolsonaro, a 8ª maior entre as 26 capitais do Brasil, e ambos os candidatos a governador do estado do Amazonas eram apoiadores de Bolsonaro. Esse cenário reflete a causa dominante dos trágicos eventos em Manaus (e em todo o Brasil) decorrentes da reabertura prematura de escolas e relaxamento geral do isolamento social. Uma contribuição para esse resultado veio de argumentos baseados na sugestão errônea de que a pandemia iria desaparecer por conta própria.

Em maio de 2020, a hipótese de que a pandemia em Manaus estaria entrando em sua última fase foi argumentado no 10º boletim do grupo ODS Atlas Amazonas, com o título “De Epicentro a Redenção: Por que Manaus será a primeira cidade brasileira a vencer a pandemia de COVID-19”. O boletim publicado pelo grupo ODS Atlas Amazonas foi criado pelo primeiro autor da publicação e foi amplamente divulgado online através do site da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), tornando-o acessível a toda a população de Manaus, incluindo tomadores de decisão e mídia. O boletim informativo no qual as informações foram publicadas não é um periódico científico e não é revisado por pares. As redes nacionais de televisão relataram os resultados como sendo de uma pesquisa indicando que Manaus havia entrado na fase final da pandemia (por exemplo, Jornal da Record e Rede Globo de Televisão, enquanto alguns meios de comunicação nacionais relataram as mesmas conclusões além do fato de que esses resultados foram questionados por pesquisadores da área (por exemplo, Jornal da Globo e Maisonnave). A televisão local de Manaus noticiou que a redução das mortes ocorreu devido à incidência de uma versão do vírus que seria menos agressiva (TV A Crítica, 2020). Segundo o boletim, a redução das internações e mortes relacionadas ao COVID-19 em Manaus no início de junho de 2020 deveu-se a mecanismos coevolutivos da relação hospedeiro-patógeno e a certos trade-offs, como entre virulência e transmissão. Aqui mostramos que essas afirmações são implausíveis e carecem do apoio necessário da literatura científica e que uma retórica baseada na má ciência apoiou o fim do isolamento social.

A coevolução é o mecanismo pelo qual duas ou mais espécies afetam reciprocamente a evolução umas das outras através do processo de seleção natural.  O boletim ODS Atlas Amazonas argumentou que “as reduções de casos graves (internações) e óbitos (letalidade) […] devem ser atribuídas a complexos mecanismos coevolutivos da relação patógeno- hospedeiro”. No entanto, um processo coevolutivo envolvendo a espécie humana pressuporia a ocorrência de um processo de seleção natural na espécie humana, o que só seria plausível em uma escala temporal de muitas décadas e, portanto, irrealista no caso do novo coronavírus SARS-CoV- 2.

O boletim prossegue argumentando que esses supostos mecanismos coevolutivos “resultam da existência de ‘trade-off‘ entre virulência e transmissão e outros ‘trade-off’ potenciais, como entre virulência e recuperação ou entre transmissão e recuperação que foram e continuam ser criticamente subestimadas nos estudos sobre esta e outras epidemia e pandemias”. Teorias existem na literatura científica sugerindo um trade-off entre transmissão e virulência, e outras trade-offs, mas a evidência empírica até agora é apenas parcial. Em particular, a ocorrência de um trade-off entre a virulência e a transmissão do SARS-CoV-2 é uma hipótese sem qualquer evidência na literatura científica. De fato, é provável que tal compensação não tenha ocorrido até junho de 2020, dada a taxa de letalidade relativamente baixa associada à infecção pelo vírus SARS-CoV-2 (estimada em cerca de 1%), tornando altamente questionável que um benefício significativo acumularia para o vírus se essa letalidade fosse ainda mais reduzida. Ao contrário, pode ter ocorrido um processo de seleção indireta para maior virulência. Não seria possível afirmar a existência de tal trade-off virulência-transmissão sem uma análise genética que demonstrasse a existência de uma nova linhagem do vírus em Manaus naquela época, e não havia evidências nesse sentido na literatura científica. Uma revisão na época concluiu que seria muito cedo para que os processos evolutivos reduzissem a patogenicidade do vírus na epidemia de COVID-19.

Ao contrário da afirmação do boletim informativo de que Manaus estava entrando na última fase da pandemia no início de junho de 2020, as evidências de dois estudos dos autores do atual artigo apontaram para uma segunda onda de infecções por SARS-CoV-2. Os dados epidemiológicos da época sugeriam que nenhum país europeu havia visto taxas de infecção altas o suficiente para evitar uma segunda onda de transmissão se os controles comportamentais ou as precauções fossem relaxados sem a implementação de medidas compensatórias.

Em 11 de junho de 2020, o grupo de pesquisa ODS Atlas Amazonas publicou outro boletim. A primeira figura do boletim ilustra o resultado da equação logística ajustada à contagem diária oficial de mortes por COVID-19 em seis capitais da Amazônia brasileira. A equação logística foi originalmente formulada por Verhulst (1838) e posteriormente formulada independentemente por Pearl e Reed (1920), em ambos os casos para descrever o crescimento da população humana. As suposições da equação tornam sua aplicação extremamente limitada (ver revisão em Fearnside, 1986). No entanto, especialmente na década após o artigo de Pearl e Reed (1920), a equação logística foi aplicada a uma ampla variedade de fenômenos biológicos e sociais para os quais suas previsões são inválidas. O crescimento logístico não é uma lei universal que permite o ajuste de curvas para prever o futuro.

Os gráficos revelam a fragilidade da conclusão de que a pandemia em Manaus havia terminado por volta de junho de 2020. Primeiro, é sabido que houve subnotificação substancial de casos e óbitos. Como o número de testes no país como um todo foi relativamente pequeno, muitas pessoas desenvolveram sintomas e morreram sem serem testadas. Aqueles que morreram fora dos hospitais eram especialmente propensos a não serem oficialmente diagnosticados e registrados como mortes por COVID-19. Nem o número de casos nem o número de mortes no Brasil tinham fonte confiável, e qualquer estudo científico baseado nesses números deveria incluir uma metodologia que permitisse estimar numericamente essa subnotificação, o que parece não ter sido feito para os resultados apresentados no boletim.

Um segundo ponto a observar é que várias outras curvas de modelos epidemiológicos poderiam ser ajustadas aos dados apresentados nos gráficos, mas a equação logística usada para gerar as curvas cinzas nos gráficos não é comumente usada para epidemias de contato.

Além disso, a maneira como as curvas cinzas são apresentadas, com uma linha relativamente larga ocultando o topo das barras, pode levar os leitores a concluírem que a equação se ajusta melhor aos dados diários de contagem de mortes. Isso pode levar os leitores a acreditarem que mortes futuras seguiriam a extrapolação logística, para a qual os autores não fornecem nenhuma evidência. De fato, os dados de muitos dos municípios tiveram um padrão crescente. Os autores afirmaram que era possível deduzir desses dados a ordem em que as cidades do estudo seriam capazes de controlar a epidemia. No entanto, não é possível chegar a conclusões sobre o controle da epidemia, a menos que os autores possam excluir o risco de novas ondas de infecção, o que não foi discutido. Declarações sugerindo que a epidemia estava terminando poderiam levar a decisões erradas tanto no nível pessoal quanto no nível da política governamental.

O segundo boletim contém outra figura. No entanto, como o eixo “y” está em uma escala logarítmica, o significado das formas das curvas pode ser enganoso para muitos leitores. Uma linha reta indica crescimento exponencial, e as inclinações das curvas diminuirão mesmo quando as mortes cumulativas estavam aumentando a uma taxa constante. Em outras palavras, uma diminuição na inclinação da curva de mortalidade quando plotada em escala logarítmica não significa necessariamente que o número de mortes diárias esteja realmente diminuindo.

As mortes diárias em Manaus, de fato, diminuíram como resultado das medidas de isolamento social nos últimos meses da série histórica considerada pelo grupo ODS Atlas em sua análise de ajuste de curvas, mas isso não significa que a pandemia havia terminado e que o isolamento pudesse ser relaxado sem consequências, especialmente naquela época em que a vacinação não estava disponível. Os autores do presente artigo previram uma segunda onda da pandemia em Manaus  com base em práticas de modelagem epidemiológica aceitas, e essa previsão foi confirmada por eventos trágicos subsequentes. Vários elementos foram relacionados ao aumento da letalidade da COVID-19 em Manaus, incluindo desigualdades regionais no acesso aos serviços de saúde, o colapso da rede hospitalar, desinformação, e negligência dos agentes políticos e da população em geral na adoção de medidas sanitárias.

Notícias sobre estudos que davam a entender que a epidemia havia sido “vencida” e estava chegando ao fim foram bem-vindas em Manaus e deram às autoridades locais e grupos de lobby uma justificativa para relaxar o isolamento social. O fechamento do hospital de campanha de COVID-19 da cidade e a abertura de lojas de varejo foram apresentados pela mídia juntamente com os resultados do boletim do ODS Atlas projetando o fim iminente da pandemia em Manaus. Ironicamente, o grupo ODS Atlas não defendeu o relaxamento precoce das restrições de distanciamento social e se tornou um alvo dos grupos que se opuseram às restrições (por exemplo, Santos, 2020. À luz do desenvolvimento posterior da pandemia em Manaus, hoje é possível afirmar que esse afrouxamento dos requisitos de isolamento contribuiu para mais de 450 mil mortes no Brasil (além de mortes em outros lugares) subsequentes ao surgimento da variante Gama (P.1) pela primeira vez em Manaus, sendo essa variante responsável por dois terços das mortes por COVID-19 no País.

Em nível nacional, em 23 de junho de 2020, o Ministro da Saúde do Presidente Bolsonaro (General Eduardo Pazuello) apresentou os gráficos do boletim ODS Atlas ao Congresso Nacional em uma sessão da Comissão Mista de Acompanhamento do Coronavírus, afirmando que os dados mostraram que “a tendência é a normalidade” e “a curva é quase zero”. Essa crença pode ter contribuído para a natureza desastrosa da gestão da pandemia pelo governo Bolsonaro em todo o Brasil.

As informações de saúde pública tiveram um papel importante para influenciar ações coletivas e individuais em busca de proteção contra a pandemia de COVID-19. É importante notar que informações erradas têm sido usadas para justificar a falta de implementação de medidas restritivas para conter o avanço de COVID-19 em diferentes lugares do mundo. Além disso, fontes de notícias questionáveis têm afetado a população de forma mais intensa em diferentes partes do mundo do que fontes confiáveis, levando a índices mais altos de transmissão comunitária.

O monitoramento e a ação precoce para conter o COVID-19 ou qualquer outra zoonose são essenciais para interromper uma pandemia. Monitoramento inadequado ou teorias infundadas sobre a remissão de uma epidemia podem ser catastróficos, como no caso de Manaus. Acreditamos que práticas científicas questionáveis contribuíram para o alto número de mortes durante a pandemia em Manaus e, a nosso ver, isso poderia ter sido evitado, ou pelo menos mitigado, pela adoção de dois princípios orientadores bastante simples:

1) Hipóteses científicas sensíveis devem ser publicadas em revistas científicas indexadas, e

2) Ao fazer reportagens sobre literatura científica, os meios de comunicação devem buscar orientação de cientistas que possam ajudar a distinguir entre periódicos confiáveis e literatura cinzenta.

 

Fonte: Amazônia Real

 

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