Informações erradas causaram fim do confinamento antes da segunda onda
da Covid-19 na Amazônia
Medidas não farmacológicas, como o confinamento
social, têm desempenhado um papel importante na contenção da pandemia de
COVID-19 em todo o mundo, especialmente antes da disponibilidade de vacinas. O
término antecipado dessas medidas sempre trouxe o risco de um novo
ressurgimento de casos. O Brasil teve um dos piores registros do mundo no
manejo da pandemia de COVID-19, como mostra claramente o relatório de 1.079
páginas da comissão parlamentar de inquérito do Senado Federal, divulgado em
outubro de 2022. Na época do relatório, o Brasil tinha 2,7% da população
mundial, mas era responsável por 12,3% das mortes por COVID-19. Manaus, uma
cidade de 2,2 milhões de habitantes na região amazônica, ganhou notoriedade por
ser a primeira cidade do mundo a enterrar mortos por COVID-19 em valas comuns
durante a primeira onda da pandemia em abril e maio de 2020 e depois pelo
espectro de pessoas morrendo em hospitais por falta de oxigênio durante a
segunda onda em janeiro de 2021. Manaus teve uma das piores respostas à
pandemia de COVID-19, resultando em uma segunda onda catastrófica em janeiro de
2021 que colapsou os sistemas de saúde e funeral. Apesar dos alertas em
revistas científicas, teorias que nunca foram publicadas em nenhuma revista especializada
foram amplamente divulgadas pela mídia e apoiaram decisões políticas para o
aumento da mobilidade urbana e o fim do confinamento social.
Esse resultado trágico foi resultado do
negacionismo da COVID e da resistência associada às medidas de distanciamento
social, tanto por indivíduos quanto por líderes políticos. Uma resistência
semelhante às vacinas depois que elas se tornaram disponíveis em 2021 pioraria
ainda mais o número de vítimas da pandemia no Brasil. O Presidente Jair
Bolsonaro e seu governo (2019-2022) foram responsáveis por políticas
equivocadas e um discurso de resistência a medidas efetivas de contenção da
pandemia. As ações de Bolsonaro são creditadas com pelo menos meio milhão de
mortes por COVID – 75% do total do Brasil até novembro de 2022.
O negacionismo da COVID, a marca principal do
discurso do Presidente Bolsonaro, era (e ainda é) forte em Manaus. Uma
indicação é fornecida pelo segundo turno da eleição em outubro de 2022, quando
61,3% dos votos para presidente foram para Bolsonaro, a 8ª maior entre as 26
capitais do Brasil, e ambos os candidatos a governador do estado do Amazonas
eram apoiadores de Bolsonaro. Esse cenário reflete a causa dominante dos
trágicos eventos em Manaus (e em todo o Brasil) decorrentes da reabertura prematura
de escolas e relaxamento geral do isolamento social. Uma contribuição para esse
resultado veio de argumentos baseados na sugestão errônea de que a pandemia
iria desaparecer por conta própria.
Em maio de 2020, a hipótese de que a pandemia em
Manaus estaria entrando em sua última fase foi argumentado no 10º boletim do
grupo ODS Atlas Amazonas, com o título “De Epicentro a Redenção: Por que Manaus
será a primeira cidade brasileira a vencer a pandemia de COVID-19”. O boletim
publicado pelo grupo ODS Atlas Amazonas foi criado pelo primeiro autor da
publicação e foi amplamente divulgado online através do site da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM), tornando-o acessível a toda a população de Manaus,
incluindo tomadores de decisão e mídia. O boletim informativo no qual as
informações foram publicadas não é um periódico científico e não é revisado por
pares. As redes nacionais de televisão relataram os resultados como sendo de
uma pesquisa indicando que Manaus havia entrado na fase final da pandemia (por
exemplo, Jornal da Record e Rede Globo de Televisão, enquanto alguns meios de
comunicação nacionais relataram as mesmas conclusões além do fato de que esses
resultados foram questionados por pesquisadores da área (por exemplo, Jornal da
Globo e Maisonnave). A televisão local de Manaus noticiou que a redução das
mortes ocorreu devido à incidência de uma versão do vírus que seria menos
agressiva (TV A Crítica, 2020). Segundo o boletim, a redução das internações e
mortes relacionadas ao COVID-19 em Manaus no início de junho de 2020 deveu-se a
mecanismos coevolutivos da relação hospedeiro-patógeno e a certos trade-offs,
como entre virulência e transmissão. Aqui mostramos que essas afirmações são
implausíveis e carecem do apoio necessário da literatura científica e que uma
retórica baseada na má ciência apoiou o fim do isolamento social.
A coevolução é o mecanismo pelo qual duas ou mais
espécies afetam reciprocamente a evolução umas das outras através do processo
de seleção natural. O boletim ODS Atlas
Amazonas argumentou que “as reduções de casos graves (internações) e óbitos
(letalidade) […] devem ser atribuídas a complexos mecanismos coevolutivos da
relação patógeno- hospedeiro”. No entanto, um processo coevolutivo envolvendo a
espécie humana pressuporia a ocorrência de um processo de seleção natural na
espécie humana, o que só seria plausível em uma escala temporal de muitas
décadas e, portanto, irrealista no caso do novo coronavírus SARS-CoV- 2.
O boletim prossegue argumentando que esses supostos
mecanismos coevolutivos “resultam da existência de ‘trade-off‘ entre virulência
e transmissão e outros ‘trade-off’ potenciais, como entre virulência e
recuperação ou entre transmissão e recuperação que foram e continuam ser
criticamente subestimadas nos estudos sobre esta e outras epidemia e
pandemias”. Teorias existem na literatura científica sugerindo um trade-off
entre transmissão e virulência, e outras trade-offs, mas a evidência empírica
até agora é apenas parcial. Em particular, a ocorrência de um trade-off entre a
virulência e a transmissão do SARS-CoV-2 é uma hipótese sem qualquer evidência
na literatura científica. De fato, é provável que tal compensação não tenha
ocorrido até junho de 2020, dada a taxa de letalidade relativamente baixa
associada à infecção pelo vírus SARS-CoV-2 (estimada em cerca de 1%), tornando
altamente questionável que um benefício significativo acumularia para o vírus
se essa letalidade fosse ainda mais reduzida. Ao contrário, pode ter ocorrido
um processo de seleção indireta para maior virulência. Não seria possível
afirmar a existência de tal trade-off virulência-transmissão sem uma análise
genética que demonstrasse a existência de uma nova linhagem do vírus em Manaus
naquela época, e não havia evidências nesse sentido na literatura científica. Uma
revisão na época concluiu que seria muito cedo para que os processos evolutivos
reduzissem a patogenicidade do vírus na epidemia de COVID-19.
Ao contrário da afirmação do boletim informativo de
que Manaus estava entrando na última fase da pandemia no início de junho de
2020, as evidências de dois estudos dos autores do atual artigo apontaram para
uma segunda onda de infecções por SARS-CoV-2. Os dados epidemiológicos da época
sugeriam que nenhum país europeu havia visto taxas de infecção altas o suficiente
para evitar uma segunda onda de transmissão se os controles comportamentais ou
as precauções fossem relaxados sem a implementação de medidas compensatórias.
Em 11 de junho de 2020, o grupo de pesquisa ODS
Atlas Amazonas publicou outro boletim. A primeira figura do boletim ilustra o
resultado da equação logística ajustada à contagem diária oficial de mortes por
COVID-19 em seis capitais da Amazônia brasileira. A equação logística foi
originalmente formulada por Verhulst (1838) e posteriormente formulada independentemente
por Pearl e Reed (1920), em ambos os casos para descrever o crescimento da
população humana. As suposições da equação tornam sua aplicação extremamente
limitada (ver revisão em Fearnside, 1986). No entanto, especialmente na década
após o artigo de Pearl e Reed (1920), a equação logística foi aplicada a uma
ampla variedade de fenômenos biológicos e sociais para os quais suas previsões
são inválidas. O crescimento logístico não é uma lei universal que permite o
ajuste de curvas para prever o futuro.
Os gráficos revelam a fragilidade da conclusão de
que a pandemia em Manaus havia terminado por volta de junho de 2020. Primeiro,
é sabido que houve subnotificação substancial de casos e óbitos. Como o número
de testes no país como um todo foi relativamente pequeno, muitas pessoas
desenvolveram sintomas e morreram sem serem testadas. Aqueles que morreram fora
dos hospitais eram especialmente propensos a não serem oficialmente
diagnosticados e registrados como mortes por COVID-19. Nem o número de casos
nem o número de mortes no Brasil tinham fonte confiável, e qualquer estudo
científico baseado nesses números deveria incluir uma metodologia que
permitisse estimar numericamente essa subnotificação, o que parece não ter sido
feito para os resultados apresentados no boletim.
Um segundo ponto a observar é que várias outras
curvas de modelos epidemiológicos poderiam ser ajustadas aos dados apresentados
nos gráficos, mas a equação logística usada para gerar as curvas cinzas nos
gráficos não é comumente usada para epidemias de contato.
Além disso, a maneira como as curvas cinzas são
apresentadas, com uma linha relativamente larga ocultando o topo das barras,
pode levar os leitores a concluírem que a equação se ajusta melhor aos dados
diários de contagem de mortes. Isso pode levar os leitores a acreditarem que
mortes futuras seguiriam a extrapolação logística, para a qual os autores não
fornecem nenhuma evidência. De fato, os dados de muitos dos municípios tiveram
um padrão crescente. Os autores afirmaram que era possível deduzir desses dados
a ordem em que as cidades do estudo seriam capazes de controlar a epidemia. No
entanto, não é possível chegar a conclusões sobre o controle da epidemia, a
menos que os autores possam excluir o risco de novas ondas de infecção, o que
não foi discutido. Declarações sugerindo que a epidemia estava terminando
poderiam levar a decisões erradas tanto no nível pessoal quanto no nível da
política governamental.
O segundo boletim contém outra figura. No entanto,
como o eixo “y” está em uma escala logarítmica, o significado das formas das
curvas pode ser enganoso para muitos leitores. Uma linha reta indica
crescimento exponencial, e as inclinações das curvas diminuirão mesmo quando as
mortes cumulativas estavam aumentando a uma taxa constante. Em outras palavras,
uma diminuição na inclinação da curva de mortalidade quando plotada em escala
logarítmica não significa necessariamente que o número de mortes diárias esteja
realmente diminuindo.
As mortes diárias em Manaus, de fato, diminuíram como
resultado das medidas de isolamento social nos últimos meses da série histórica
considerada pelo grupo ODS Atlas em sua análise de ajuste de curvas, mas isso
não significa que a pandemia havia terminado e que o isolamento pudesse ser
relaxado sem consequências, especialmente naquela época em que a vacinação não
estava disponível. Os autores do presente artigo previram uma segunda onda da
pandemia em Manaus com base em práticas
de modelagem epidemiológica aceitas, e essa previsão foi confirmada por eventos
trágicos subsequentes. Vários elementos foram relacionados ao aumento da
letalidade da COVID-19 em Manaus, incluindo desigualdades regionais no acesso
aos serviços de saúde, o colapso da rede hospitalar, desinformação, e
negligência dos agentes políticos e da população em geral na adoção de medidas
sanitárias.
Notícias sobre estudos que davam a entender que a
epidemia havia sido “vencida” e estava chegando ao fim foram bem-vindas em
Manaus e deram às autoridades locais e grupos de lobby uma justificativa para
relaxar o isolamento social. O fechamento do hospital de campanha de COVID-19
da cidade e a abertura de lojas de varejo foram apresentados pela mídia
juntamente com os resultados do boletim do ODS Atlas projetando o fim iminente
da pandemia em Manaus. Ironicamente, o grupo ODS Atlas não defendeu o
relaxamento precoce das restrições de distanciamento social e se tornou um alvo
dos grupos que se opuseram às restrições (por exemplo, Santos, 2020. À luz do
desenvolvimento posterior da pandemia em Manaus, hoje é possível afirmar que
esse afrouxamento dos requisitos de isolamento contribuiu para mais de 450 mil
mortes no Brasil (além de mortes em outros lugares) subsequentes ao surgimento
da variante Gama (P.1) pela primeira vez em Manaus, sendo essa variante
responsável por dois terços das mortes por COVID-19 no País.
Em nível nacional, em 23 de junho de 2020, o
Ministro da Saúde do Presidente Bolsonaro (General Eduardo Pazuello) apresentou
os gráficos do boletim ODS Atlas ao Congresso Nacional em uma sessão da
Comissão Mista de Acompanhamento do Coronavírus, afirmando que os dados
mostraram que “a tendência é a normalidade” e “a curva é quase zero”. Essa
crença pode ter contribuído para a natureza desastrosa da gestão da pandemia
pelo governo Bolsonaro em todo o Brasil.
As informações de saúde pública tiveram um papel
importante para influenciar ações coletivas e individuais em busca de proteção
contra a pandemia de COVID-19. É importante notar que informações erradas têm
sido usadas para justificar a falta de implementação de medidas restritivas
para conter o avanço de COVID-19 em diferentes lugares do mundo. Além disso,
fontes de notícias questionáveis têm afetado a população de forma mais intensa
em diferentes partes do mundo do que fontes confiáveis, levando a índices mais
altos de transmissão comunitária.
O monitoramento e a ação precoce para conter o
COVID-19 ou qualquer outra zoonose são essenciais para interromper uma
pandemia. Monitoramento inadequado ou teorias infundadas sobre a remissão de
uma epidemia podem ser catastróficos, como no caso de Manaus. Acreditamos que
práticas científicas questionáveis contribuíram para o alto número de mortes
durante a pandemia em Manaus e, a nosso ver, isso poderia ter sido evitado, ou
pelo menos mitigado, pela adoção de dois princípios orientadores bastante
simples:
1) Hipóteses científicas sensíveis devem ser
publicadas em revistas científicas indexadas, e
2) Ao fazer reportagens sobre literatura
científica, os meios de comunicação devem buscar orientação de cientistas que
possam ajudar a distinguir entre periódicos confiáveis e literatura cinzenta.
Fonte: Amazônia Real
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