"Ação do Estado não pode ser por vingança", ex-ouvidor da
Polícia Militar de SP
Ouvidor da Polícia Militar de São Paulo em
duas ocasiões (1995-2000 e 2018-2020), Benedito Mariano defende a
apuração rigorosa dos policiais envolvidos na Operação Escudo, realizada
no Guarujá, litoral
paulista, em represália à morte de um policial militar da Rota, força especial
da Polícia Militar paulista, ocorrida na última quinta-feira (27/07).
"A ação do Estado não pode ser por vingança,
mas racional. Assim que houve a operação, o governador de São Paulo falou em
oito mortes. Subiu para 10 e agora são 12 óbitos [número que já
subiu para 14]. A Ouvidoria da Polícia, que está acompanhando, já fala na
investigação de 19 mortes. Em qualquer um dos casos, nenhuma operação com esse
número de mortes foi bem executada", disse em entrevista à DW,
ressaltando que "resposta da corporação não pode estar fora do parâmetro
da legalidade democrática".
Mariano também criticou o fato de o governador de
São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o atual Secretário de Segurança Pública de
São Paulo, Guilherme Derrite, terem celebrado as mortes após a operação.
"Foi um ato precipitado. Considero que
qualquer manifestação antes da investigação que é feita pela própria polícia é
ruim."
O ex-ouvidor defende uma melhor formação dos
policiais, inclusive com a introdução de uma disciplina permanente sobre o
racismo estrutural. "Uma polícia democrática e cidadã precisa ser
antirracista", destaca.
LEIA A ENTREVISTA:
·
Como o senhor avalia a ação
da Polícia Militar de SP no Guarujá? Houve excesso da polícia?
Benedito Mariano: O
assassinato de um policial militar merece recusa da sociedade e as condolências
são fundamentais. A partir daí, a resposta do poder público a partir do
assassinato do policial é fundamentalmente identificar e prender o autor do
crime. Há um suspeito identificado que está preso.
É óbvio que a morte de um companheiro gera comoção
na instituição policial, mas a resposta da corporação não pode estar fora do
parâmetro da legalidade democrática. A ação do Estado não pode ser por
vingança, mas racional. Assim que houve a operação, o governador de São Paulo
falou em oito mortes. Subiu para 10 e agora são 12 óbitos [número que já
subiu para 14]. A Ouvidoria da Polícia, que está acompanhando, já fala na
investigação de 19 mortes. Em qualquer um dos casos, nenhuma operação com esse
número de mortes foi bem executada. É preciso haver uma apuração rigorosa.
·
Qual devef ser o papel da
Ouvidoria neste momento? Ela atua em parceria com outros órgãos para averiguar
o que houve?
A ouvidoria tem o papel de controle social da
atividade policial. A ouvidoria não apura. Quem faz isso são as Corregedorias
da polícia. Mas a ouvidoria acompanha a apuração e deve, especialmente num caso
grave como esse, elaborar relatórios públicos. Esses documentos serão anexados
ao inquérito policial e encaminhados ao Ministério Público.
É importante dizer também que muitas informações
chegam ao conhecimento da polícia por meio da Ouvidoria, como denúncias e
afins, por ter autonomia em relação ao comando das polícias.
·
Como identificar o excesso
de ação policial?
Doze mortes confirmadas já é indício de que não foi
uma boa ocorrência. Para saber se houve excesso é preciso esperar os laudos
técnicos. No meu período como ouvidor, sempre me manifestei sobre os relatórios
feitos pela inteligência da polícia, para saber se deram as mortes, por onde os
projéteis entraram, a que distância, se as vítimas portavam arma de fogo ou se
houve confronto.
São esses dados que podem confirmar objetivamente o
excesso. Conversei com o Cláudio Aparecido [atual ouvidor da Polícia Militar de
São Paulo] e ele disse que estão chegando denúncias lá e também ao Conselho
Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) sobre torturas e
abuso de autoridade. Por isso, a Ouvidoria é fundamental: ela ouve as pessoas e
todas essas informações vão constar no relatório final.
·
Quais são os procedimentos
caso fique comprovado que houve excesso dos policiais?
Há dois caminhos. Caso se confirme o excesso nas
12 mortes, cabe ao Ministério Público formalizar a denúncia.
Concomitantemente, não impede que a Corregedoria faça uma manifestação
administrativa com relação aqueles policiais que cometeram excesso. Por isso que
a decisão do Procurador-Geral de Justiça [Mario Sarrubbo] de indicar uma
equipe do Ministério Publico para acompanhar as investigações é importante,
pois vai esclarecer, entre outras coisas, se a ação estava no parâmetro do
estado democrático.
·
Como as câmeras das fardas
podem ajudar a desvendar a ação dos PMs?
A câmera do fardamento é um equipamento fundamental
para entender o que houve. Já li uma reportagem na Folha de S.Paulo dizendo
que uma ala política pretende retirar o equipamento, mas não acredito que isso
vá acontecer. Ao contrário: vários outros estados do país estão adotando o
equipamento. É um instrumento utilizado nos EUA e na Europa há décadas. É um
recuo que não pode acontecer. E tem uma coisa: a adoção das câmeras foi um
projeto da própria Polícia Militar, do comando da instituição. As câmeras
servem para proteger o bom policial em sua atividade e para mostrar se houve
excesso na ação desse policial.
Há vários estudos recentes que mostram como o uso
do objeto ajudou a reduzir a letalidade policial. Nesse caso do Guarujá, a
expectativa é que todos os envolvidos estejam com os equipamentos em pleno
funcionamento, porque as imagens serão provas importantes nas investigações.
·
Tanto o governador quanto o
Secretário de Segurança Pública de SP elogiaram a atuação dos policiais.
Como o senhor avalia tais manifestações?
Minha resposta será baseada em uma experiência
pessoal. Em 2019, quando eu era ouvidor da Polícia Militar, houve uma
ocorrência em uma cidade do interior com a participação de 45 policiais e cujo
resultado foi a morte de 10 pessoas suspeitas de estarem planejando um assalto
a duas agências bancárias. Na época, demorei cerca de dois meses para me
manifestar, porque estava analisando os relatórios da própria polícia a fim de
saber o que havia ocorrido. A partir da análise dos laudos técnicos, eu e o
delegado envolvido nas investigações constatamos que houve excesso da polícia
na ocorrência.
Já o governador da época, João Doria, não esperou
uma semana para levar os policiais envolvidos na ação ao Palácio dos
Bandeirantes para condecorá-los. Foi um ato precipitado. Considero que qualquer
manifestação antes da investigação que é feita pela própria polícia é ruim.
·
O que o episódio no Guarujá
e outros recentes nos diz sobre a formação do policial no país?
Nós precisamos fazer uma reforma ampla no sistema
de segurança pública brasileiro e o enfoque principal deve ser a luta
antirracista. Os 350 anos de escravidão estabeleceram uma cultura de
preconceito contra pobres e negros que dita a ação das forças de segurança em
boa parte das cidades. Assim, jovens negros são os mais vitimados pela
letalidade policial.
Uma polícia democrática e cidadã precisa ser
antirracista. Defendo há anos a introdução de uma disciplina permanente nas
escolas formadoras de policiais sobre o racismo estrutural, assim como um novo
protocolo que limite a interpretação da "fundada suspeita" [elementos
objetivos e subjetivos utilizados pela autoridade policial para realizar busca
pessoal] presente no Código Penal.
A suspeição acontece em duas formas: se o indivíduo
está com arma de fogo ou objeto de crime. Mas o que nós vemos é que a fundada
suspeita se dá pela cor da pele e condição social.
·
Os eventos ocorridos no
Guarujá têm alguma similaridade com os Crimes de Maio de 2006 e a onda de
violência entre maio e novembro de 2012?
É difícil fazer essa comparação. Em 2006 e 2012
houve uma resposta do Estado, com muito excesso, contra organizações criminosas
que estavam matando os policiais. A única similaridade é que essa operação na
Baixada Santista está se dando a partir de um assassinato de um policial em
serviço, mas não vejo o mesmo contexto. Mas acredito que a resposta do Estado
precisa ser sempre racional, o que não aconteceu nesses dois episódios e parece
não ter ocorrido agora também.
A Comissão Arns, da qual me orgulho muito de ter
participado por 15 anos, declarou em nota que pode haver um fortalecimento do
crime organizado, e eu concordo. A tensão pode aumentar, assim como o conflito,
sobretudo se ficar comprovado ao final das apurações que houve excesso por
parte dos policiais.
Ø Moradores acusam polícia de caçada em favela de Guarujá
A polícia paulista vem promovendo uma caçada a
moradores em favelas de Guarujá, no litoral paulista, nos últimos dois dias, em
represália à morte de um policial militar da Rota, força especial da PM
paulista, ocorrida na última quinta-feira (27/07), segundo relatos de moradores
ouvidos em condição de anonimato.
Eles afirmam que as favelas da Vila Zilda estão
sitiadas e dizem se sentirem ameaçados.
"Há um efetivo gigantesco, circulando sem
identificação, invadindo as casas, batendo nas pessoas, quebrando as coisas.
Eles estão aterrorizando", denunciou um morador cujo primo foi morto no
fim de semana.
O homem de 30 anos e pai de uma menina de
seis anos teria sido morto por ter antecedentes criminais.
Até 16 pessoas já teriam sido mortas nos últimos
dias. A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) afirma que 14 morreram "ao
entrarem em confronto com as forças de segurança" no Guarujá e
Santos. Nas redes sociais, policiais militares celebram o número de 16
mortes.
"Eles dizem que matarão 30 onde meu primo foi
morto e 30 onde o policial foi morto. De dia é perigoso, mas de noite, ainda
mais, já que eles estão contando e comemorando os corpos; qualquer pessoa com
antecedentes ou tatuagem, eles parecem ter ordem de matar", afirma o
parente.
Outra moradora, que trabalha com serviço de entrega
de refeições, diz viver sob tensão pelos filhos e os profissionais que fazem os
transportes.
"Eles não devem nada para as autoridades, mas
sabemos como eles tratam motoqueiros, então fico muito preocupada", diz.
Em nota à DW, a SSP-SP disse que determinou
que todos os casos sejam investigados pela Divisão Especializada de
Investigações Criminais (DEIC) de Santos e pela Polícia Militar por meio de
Inquérito Policial Militar (IPM).
"As imagens das câmeras corporais
serão anexadas aos inquéritos em curso e estão disponíveis
para consulta irrestrita pelo Ministério Público, Poder Judiciário e a
Corregedoria da PM", diz a nota.
·
Governo: "Não houve
excesso"
A Operação Escudo, da Secretaria de Segurança
Pública, foi deflagrada neste final de semana após o assassinato do soldado da
Rota Patrick Bastos Reis, de 30 anos, e conta com um efetivo de mais de 600
policiais, entre militares e civis, segundo o governo do Estado. Reis foi morto
na quinta-feira durante ação rotineira de patrulhamento na
região.
Um grande cortejo foi realizado no centro de São
Paulo em homenagem ao soldado, com dezenas de pessoas e veículos das polícias e
bombeiros e que fechou as avenidas Paulista e da Consolação rumo ao cemitério
do Araçá na tarde de sexta-feira.
O cabo Fabiano Oliveira Marin Alfaya, que o
acompanhava no patrulhamento, foi atingido na mão e internado, mas está fora de
perigo.
Nesta segunda-feira, o governador Tarcísio de
Freitas (Republicanos) falou à imprensa ao lado do secretário de Segurança
Pública, Guilherme Derrite (PL), e elogiou a operação que resultou em dez
pessoas detidas e desencadeou a onda de mortes e tensão na Baixada Santista.
"Não houve hostilidade, não houve excesso;
houve uma atuação profissional e que nós manteremos", afirmou o
governador, dizendo que "apenas pessoas que atacaram policiais foram
mortas". "Nós não vamos deixar passar impune uma agressão contra um
policial. Não é possível que o crime possa agredir um policial e sair sem
punição."
O Instituto Sou da Paz lamentou a morte do soldado
Reis, criticou que a resposta tenha sido dada com mais mortes e relembrou a
ameaça de Freitas em campanha ao governo estadual de encerrar o programa de
câmeras corporais, que resultou na queda da letalidade policial no Estado em
quase 63%, passando de 697 mortes em 2019 para 260 em 2022.
"Essa atitude, aliada aos poucos compromissos
públicos sobre a importância do controle do uso da força, também ajuda a
explicar o crescimento de 28% nas mortes cometidas por policiais em serviço no
estado de São Paulo no primeiro semestre de 2023", afirmou o instituto.
"Os eventos em Guarujá não podem ser lidos
como um caso isolado e remetem a outros ciclos de violência após a morte de um
policial. Ainda mais preocupante, esses eventos se inserem em um contexto de
fragilização do bem-sucedido programa de gestão do uso da força, que culminou
com a expressiva redução da letalidade policial com o uso de câmeras corporais",
reforça, destacando ainda os relatos, por intermédio da Ouvidoria de Polícia,
de ameaças de tortura e de execuções feitas por policiais na região.
·
Mortes festejadas
Fotos dos corpos desfigurados nos necrotérios têm
sido divulgadas em tom de deboche em grupos de WhatsApp de Guarujá, enquanto
parentes relatam serem impedidos de ter acesso aos corpos no necrotério.
"Não nos deixaram ver meu primo, mas pouco
depois as fotos dele cheio de marcas de agressão estavam rodando em grupos de
WhatsApp da cidade com a legenda 'mais um mala alvejado'", diz
um comerciante. Segundo ele, o celular e a chave do carro tampouco foram
devolvidos à família.
Nas redes sociais, um soldado da PM tem feito a
contagem dos mortos em mensagens em tom de deboche. "Saldo do Guarujá:
informações de que 6 anjinhos estão em descanso eterno", dizia numa
postagem. Outros policiais com dezenas de milhares de seguidores também fazem
postagens semelhantes.
Ao som de músicas como Brilha, brilha
estrelinha e Hoje as pessoas vão morrer, o ex-policial e
suplente de deputado estadual Luiz Paulo Madalhano Magalhães festeja as mortes
ocorridas na Baixada Santista, enquanto conta o "saldo extra
oficial" de 16 mortes – 11 delas realizadas por policiais da Rota.
Questionada sobre a conduta dos membros e
ex-membros da corporação festejando as mortes, a Secretaria de Segurança
Pública de SP não se manifestou.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, publicado neste mês pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, mais de 13% das mortes violentas no país em 2022 foram cometidas por
policiais em serviço ou fora dele – 95% delas por PMs. Em São Paulo, membros
das forças de segurança foram responsáveis por 419 mortes das 3.735 ocorridas
em todo o estado, o menor índice de mortalidade violenta no país.
Segundo a publicação, uma taxa acima de 10%
configura uso abusivo da força por parte das polícias. "Nas proporções
observadas no Brasil, o indicador denota que as mortes causadas pelas polícias
ocupam um espaço muito significativo e destacado entre os agentes sociais
causadores de mortes violentas intencionais", relata, destacando ainda a
proporção entre policiais e civis mortos em supostos confrontos.
"Os números observados contrariam a narrativa
padrão de uso proporcional e reativo da força policial, de que as mortes
ocorreriam em decorrência de confrontos", afirma o documento. Em São
Paulo, onde ocorre a ação desde sexta-feira, foram 33 policiais mortos contra
419 mortes cometidas por agentes de segurança, uma proporção de mais de 12 para
1.
·
Suspeito se entrega
Erickson David da Silva, conhecido como Deivinho,
se entregou à polícia na zona sul de São Paulo pedindo o "fim da
matança" na baixada santista. Em vídeo gravado antes de se entregar à
polícia, Silva pede: "Quero falar para o Tarcísio e o Derrite pararem de
fazer a matança aí, matando uma pá de gente inocente, querendo pegar minha
família, sendo que eu não tenho nada a ver. Estão me acusando. É o seguinte,
vou me entregar, não tem nada a ver". Em um segundo vídeo, já detido e na
corregedoria da PM, seu advogado agradece por sua integridade física ter sido
mantida.
Segundo as investigações, Silva teria matado Reis
com um tiro de pistola 9mm de uma posição elevada a 70 metros de distância,
atingindo a axila do soldado. Silva nega ser o autor do disparo.
Fonte: Deutsche Welle
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