Microbioma: especialistas alertam para desinformação
De asma a Alzheimer, passando por obesidade,
diabetes e alguns tipos de câncer, nas duas últimas décadas multiplicaram-se as
pesquisas que buscam, na microbiota intestinal, a origem — e a cura potencial —
de uma infinidade de doenças. Em 2007, uma reportagem de capa da revista Nature
chegou a chamar o conjunto de organismos que habitam o trato gastrointestinal
de "nosso outro genoma". Agora, o mesmo periódico traz um artigo no
qual dois microbiólogos acusam muitas publicações de exagerarem nas promessas e
de perpetuarem mitos sobre esse campo de estudo.
Sem negar a importância da microbiota para a saúde,
Alan Walker, da Universidade de Aberdeen, e Lesley Hoyles, da Universidade
Nottingham Trent, ambas no Reino Unido, destacam que, apesar de a ciência
progredir na compreensão do tema, muitos equívocos têm sido disseminados.
Alguns aparentemente inofensivos, como atribuir ao prêmio Nobel Joshua
Lederberg norte-americano a expressão "microbioma" (segundo os
autores, 10 anos antes de o cientista popularizar o termo, em 2001, ele já
aparecia em publicações).
Outra informação falsa, dizem, é a de que esses
micro-organismos superam as células humanas em 10 por 1. "Análises mais
detalhadas indicam que o número real, embora ainda impressionante, provavelmente
está mais próximo de uma proporção de 1 por 1, o que pode variar muito de
pessoa para pessoa", escreveram Walker e Hoyles, no artigo, publicado na
revista Nature Microbiology. O número superestimado tem origem em um palpite da
década de 1970, que vem sendo repetido não só em reportagens leigas, mas nas
publicações científicas.
"O campo do microbioma intestinal deixou de
ser assunto de um nicho para se transformar em um dos tópicos mais quentes de
toda a ciência", diz Alan Walker. "No entanto, uma pequena
desvantagem disso é que trouxe muito exagero e uma tentação de simplificar
demais as interações e atividades microbianas realmente complexas que ocorrem
em nossos intestinos", acredita. "Acho muito importante ressaltar que
muita ciência do microbioma é excelente. No entanto, a quantidade de pesquisas
em andamento em todo o mundo disparou nas últimas duas décadas, portanto, o
grande volume de artigos provavelmente será um fator de equívocos."
• "Herança"
Um desses equívocos, segundo os autores, é afirmar
que a microbiota é herdada da mãe, no nascimento. De fato, parte dela é
transferida diretamente no parto, mas, proporcionalmente, poucas espécies são
herdadas, afirmam os autores. "De fato, a maior parte da expansão da
diversidade da microbiota intestinal ocorre após o nascimento, durante os
primeiros anos de vida, e aumenta dramaticamente após o desmame", sustenta
o artigo.
Cada adulto tem uma configuração única de
microbiota, até mesmo gêmeos idênticos criados na mesma casa, explicam Walker e
Hoyles. "Portanto, embora a composição da microbiota ainda não seja
totalmente compreendida, as comunidades microbianas adultas parecem ser
predominantemente moldadas por exposições ambientais anteriores, bem como por
vários outros fatores, como dieta, medicamentos e genética do hospedeiro, com
'herança' direta da mãe em nascimento desempenhando um papel igualmente
menor."
Mireia Valles-Colomer, pesquisadora do Laboratório
de Metagenômica Computacional da Universidade de Trento, na Itália, concorda
com os colegas britânicos sobre a proliferação de erros em reportagens e
artigos que tratam do microbioma intestinal. "Como outras áreas de
pesquisa em rápido desenvolvimento e também de grande interesse para o público
em geral, nem sempre os dados mais precisos são usados quando se discute o
microbioma." Ela ressalta que, embora Walker e Hoyle não tenham descoberto
os erros, a compilação dos mitos é importante para que o assunto seja tratado
de forma adequada. "Pode ajudar o campo a avançar com mais precisão e
concentrar esforços em questões prioritárias de pesquisa", acredita.
• Descobertas
inconsistentes com estudos em humanos
Informações exageradas sobre o potencial do
microbioma podem acabar levantando esperança em tratamentos que, por enquanto,
não têm fundamento científico sólido, diz o artigo publicado na revista Nature
Microbiology. Uma delas é a de que a proporção de bactérias dos filos
firmicutes e bacteroidetes é alterada na obesidade. "Essa comumente usada,
mas errônea alegação decorre principalmente de pesquisas baseadas em roedores e
de descobertas em estudos humanos individuais", escreveram os autores,
Alan Walker e Lesley Hoyles. "De fato, já houve pelo menos três
metanálises (conjunto de resultados de pesquisas) relatando que essa descoberta
é inconsistente em estudos em humanos", alegam.
Rog Knight, diretor do Centro de Inovação do
Microbioma e professor da Universidade da Califórnia, em San Diego, destaca que
boa parte das pesquisas que associam disfunções na microbiota a doenças, como
obesidade, são difíceis de serem reproduzidas em outros laboratórios. "A
falta de replicação das associações do microbioma com a doença é um tópico
importante, e tem mais nuances do que o descrito no artigo", afirma.
• Marcador
Para ser útil como teste clínico, um micróbio ou
padrão de microbioma não precisa causar a doença, mas apenas atuar como um
marcador preciso, explica. "Achamos que é realmente verdade que alguns dos
marcadores são diferentes em diferentes populações. É assim que o mesmo
medicamento pode ser mais eficaz para um grupo de pessoas do que para outro —
isso não significa que você não deva usar o medicamento, mas que deve descobrir
para quem ele funciona, em vez de administrá-lo a todos." Por isso, ainda
é precoce pensar que uma fórmula de probiótico, por exemplo, seria um bom
tratamento para obesidade, por exemplo.
Walker e Hoyles acreditam que apontar os mitos
sobre o microbioma ajudará a concentrar esforços de pesquisa no que, de fato,
pode gerar resultados úteis do ponto de vista científico e clínico. "Dados
os muitos impactos potenciais na saúde, a enorme quantidade de financiamento e
o grande interesse público em microbiomas, rejeitar as afirmações infundadas é
crucial se quisermos evitar gastos finitos pesquisando caminhos improdutivos e
prejudicando a confiança do público em nossas conclusões."
<<<<< Palavra de especialista //
Michael Woodworth, pesquisador em terapêutica microbiana da Universidade Emory,
nos Estados Unidos
Muitos desses mitos foram destacados por autores
anteriormente, mas é útil consolidá-los para desencorajar sua perpetuação. Os
pontos levantados pelos autores não descartam a importância da pesquisa do
microbioma, suas abordagens ou seu impacto na saúde humana. Em vez disso, eles
coletaram muitos pontos comumente citados que não são apoiados por fortes
evidências ou são inconsistentes com o entendimento atual. Qualquer campo
rigoroso e dinâmico exige esse tipo de reflexão periódica.
Fonte: Correio Braziliense
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