Homens gays e misoginia: chega de ignorarmos esse problema
OS CARAS GAYS
“ENGRAÇADOS”, geralmente brancos que demonstram uma certa
ojeriza ao sexo feminino, são um tipo social muito comum na cultura pop
contemporânea. O personagem Felix “Bicha Má” (interpretado por Mateus Solano),
da novela “Amor à Vida”, é um exemplo fácil em terras brasileiras – são dele
as frases que abrem esse texto. Mas esse rapaz de língua afiada que
endereça boa parte de sua acidez às mulheres, incluindo amigas e parentes,
nunca habitou somente as telas: ele é uma presença comum em nosso
cotidiano.
Ai,
não fala em vagina perto de mim, fico todo empelotado.
Minha
nossa, essa cantora era linda, mas envelheceu e embarangou.
Sai
daqui, que nem de racha eu gosto.
Não posso precisar quantas vezes ouvi frases desse
naipe vindas de colegas homens gays. Durante muito tempo, essas maneiras de
desqualificar mulheres – em que se pese o certo desconforto sentido por toda
pessoa que é reiteradamente alvo de preconceito –, foi endossada e repercutida
por nós mesmas. As ofensas revestidas de “eu estava só brincando” naturalizaram
largamente essas formas de desqualificação, mas a boa notícia é que, em um ambiente no qual o feminismo ganhou
espaço, o que parecia ser apenas uma gongação é hoje nomeado pela palavra
certa: misoginia.
Esse é um assunto delicado, uma vez que estamos
falando de pessoas – majoritariamente homens cisgêneros gays – que foram e
ainda são vítimas de
uma série de violências, seja dentro de casa, no
trabalho, nas ruas. Talvez tenha sido justamente isso o que fez com que nós,
mulheres cisgêneras ou transgêneras, tenhamos deixado o desconforto de sermos
chacota em segundo plano. Afinal, enfrentar a homofobia em um país machista como
o Brasil não é tarefa simples. Mas se esse machismo atinge homens homossexuais,
o que dizer de sua presença no cotidiano das mulheres? E o que dizer também
da homofobia
dirigida às mulheres cis/trans homossexuais e
bissexuais, especialmente invisibilizadas e também alvos de “brincadeiras” dos
homens gays?
“Tive um amigo gay muito íntimo, irmão mesmo.
Saíamos juntos para as festas e várias vezes dormíamos na mesma cama, na minha
casa ou na dele. Várias vezes, como se estivesse brincando, ele dizia que tinha
horror a vagina, que tinha nascido em uma cesariana para não ter que passar por
uma. Se benzia e dizia ‘Deus me livre’, sorrindo”, conta Adriana Conceição, de
47 anos. Uma operadora de telemarketing recifense que, como diversas outras
mulheres, demorou a classificar com a palavra certa as atitudes do rapaz.
Já a desenvolvedora de games Renata Gomes, também
de 47 anos, se viu no centro de um achaque virtual depois de ter questionado
uma postagem de um crítico de cinema brasileiro gay e radicado nos Estados
Unidos. No post, ele falava sobre sentir saudades do Brasil, uma vez que nos
EUA se trabalhava muito mais. Confrontado com a possibilidade de sua fala ser
redutora e estereotipada, ele passou a tratar Renata como “fia”, “militante”,
“frustrada”. Além disso, diversos amigos do crítico entraram nos comentários
para reiterar a deslegitimação da fala de Renata.
Pessoas mais jovens também identificam o problema:
atenta à questão, a universitária curitibana Nicoly Grevetti, de 24 anos, ouviu
várias pessoas que circulam em espaços LGBTQIA+ sobre o assunto e escreveu
um texto a respeito. Nele, ela ainda identifica como as culturas pop e
queer, supostamente mais seguras e “modernas”, também apresentam elementos
misóginos.
Um exemplo é o uso do termo “fishy”, do inglês fish
(peixe), constantemente evocado para definir drag queens que se assemelham
muito a mulheres cisgêneras (ou seja, que têm um alto grau de “passabilidade”).
A expressão remete ao odor que a vagina destas mulheres supostamente teria.
“Mulheres [cisgêneras] crescem acreditando que suas partes íntimas são nojentas
e passam a vida toda utilizando produtos para diminuírem seus odores naturais,
o que pode acarretar em diversas doenças. Ter a genitália feminina como algo
nojento é tão comum para esse grupo, que você encontra inúmeros relatos de
mulheres falando sobre isso na internet”, escreveu. O tema foi alvo de
discussão na famosa
série RuPaul’s Drag Race, gerando
trabalhos acadêmicos como esse aqui. A drag cisgênera Victoria Scone, ex-participante do show,
também tocou no
assunto.
Há alguns meses, vivi um episódio significativo
desse machismo e dessa misoginia que foram durante muito tempo atenuados em
relação aos homens gays. Estava em um consultório médico muito próximo a um
centro de compras na zona sul de Recife. Após o fim da consulta, o
dermatologista – homossexual, branco, trinta e tantos anos e anti-Bolsonaro nas
últimas eleições – deu uma leve batida em minha mão e disparou: “Pronto, agora
você já pode ir passear no shopping”.
Especialmente naquele dia, eu estava apressada para
finalizar a apresentação de uma palestra que daria no dia seguinte, online, na Universidade de Coimbra.
Obviamente, se eu quisesse olhar vitrines ou passar a tarde lendo revistas de
celebridades, não seria um problema (aliás, adoro). O ponto aqui era a óbvia
intenção do médico de me encaixar no clichê da mulher fútil e consumista, uma
forma machista e anacrônica de desqualificar o gênero feminino. Cereja do bolo:
enquanto eu saía, o rapaz gay avisou que eu não esquecesse de levar “o
patrão” na próxima consulta. Ele se referia ao meu
companheiro.
·
Se é feminino, é menor
A misoginia presente nas práticas de parte dessa
população é tão evidente que ultrapassa as bordas do gênero e vai se dar entre
iguais: é comum vê-la operar mesmo entre os próprios homens gays. Uma pesquisa que realizei em parceria com o professor Ricardo Sabóia, da
Universidade Federal de Pernambuco, analisou a relação entre corpo e
celebridade no aplicativo
Grindr. Me causou espanto tanto a ojeriza ao que é visto
socialmente como feminino quanto o altíssimo índice de normatividade,
padronização e mesmo elitismo. “Não curto
afeminados” é uma constante, assim como “não curto
gordos”.
Nesse ambiente de altíssima valorização de bíceps e
abdomens sarados, o ser macho – e parecer muito macho – é a moeda mais forte.
Assim, homens vistos como “mulherzinhas” são desqualificados. É o que o
pesquisador Carlos Alberto de Carvalho chama de “heteronormatividade
misógina”, em que o masculino e as masculinidades são
colocados como positivos – por outro lado, as feminilidades e o feminino são
valorados negativamente. É, portanto, um ambiente de uma masculinidade
hegemônica e de masculinidades subalternas.
A novela global “Terra e Paixão” traz atualmente
uma ilustração que remete a esse cenário, com o personagem Kelvin (o ator Diego
Martins), gay “afeminado” apaixonado por Ramiro (Amaury Lorenzo), o homem másculo,
declaradamente heterossexual, que sente desejo pelo outro, mas ainda não sabe
lidar com a situação. O que diminui o poder do primeiro é justamente sua
aproximação com aquilo considerado “de mulher”. Mas, observando o Grindr, mesmo
o “brucutu” desejável tem seus limites: questões como grau de escolaridade têm
peso no aplicativo usado majoritariamente por homens gays e bissexuais em que é
comum ler “analfabetos, não”.
A cultura LGBTQIA+, na qual homens homossexuais
brancos ricos e de classe média aparecem reiteradamente discriminando outros
pares da mesma comunidade, é uma questão sociológica central para discutirmos
desigualdades sociais não só no Brasil, mas no mundo. “A produção cultural
queer tem ajudado a reproduzir distinções de classe a partir da hegemonia de
representações dos gays de classe média”, escreve Lisa Henderson no artigo “Não sou/ não curto: sentidos circulantes nos discursos de
apresentação do aplicativo Grindr”, de Rafael Grohmann. No mesmo texto, Juan
Marsiaj sintetiza: “Tal estratégia pode levar à aceitação de um tipo de gay
(branco, de classe média), visto como um modelo de cidadão-consumidor e uma
maior marginalização de todos os outros ‘devassos’ que não se encaixam nessa
forma. Em termos mais brasileiros:
corre-se o risco de aceitar o gay rico e marginalizar ainda mais a bicha pobre“.
As discriminações por parte dessa parcela da
comunidade queer foram evidenciadas em um episódio histórico já na década de
1970, na super liberal Nova York. Em junho de 1973, acontecia na cidade a
Christopher Street Liberation Day Rally, manifestação realizada em prol dos
direitos da população queer – que, naquele momento, como veremos, na verdade se
resumia basicamente a mulheres e homens gays brancos de classe média.
Mas, entre o público, estava a ativista Sylvia
Rivera, travesti que em 1971 havia criado a Ação
Revolucionária de Travestis de Rua, a STAR. Rivera
tentava há tempos subir no palco, mas Jean O’Leary, lésbica, branca e feminista
radical, agia para impedir sua participação. Uma amostra de como, diversas
vezes, mulheres cisgêneras homossexuais/bissexuais também operam as mesmas
discriminações dos homens homossexuais/bissexuais.
Quando finalmente conseguiu pegar o microfone,
Rivera mirou nas centenas de homens e mulheres gays, de maioria branca, ali
presentes. Sua fala é uma síntese das violências vividas por queers afeminadas
demais, pobres demais, pretas ou
latinas demais.
“Eu tentei falar aqui o dia todo pelos seus irmãos
e irmãs gays que estão nas cadeias. Eles me escrevem todas as malditas semanas
pedindo por socorro – e vocês não fazem porra nenhuma por eles. Eu perdi meu
emprego e meu apartamento pela liberação gay… e vocês me tratam dessa
maneira?”, gritou.
A raiva tinha ainda outro peso e sentido: ao lado
de outro nome importante, a travesti Marsha P. Johnson, Rivera entrou para a
história como uma das primeiras a enfrentar a repressão
policial no bar nova-iorquino Stonewall Inn, em 28
de junho de 1969. O conflito foi o estopim de um movimento civil fundamental
pelos direitos humanos – tanto que a data acabou se transformando no então
chamado Dia Internacional do Orgulho LGBT.
Ficava a pergunta: como aquela engajada plateia
podia repudiar a pessoa que, com apenas 18 anos, se insurgiu contra uma
violência que não era direcionada apenas a ela? Como podia recriminar alguém
que apertou o gatilho que viria a beneficiar em peso justamente aquela
população homossexual branca?
Rivera e Johnson, que moravam em um abrigo, se
diferenciavam profundamente da maioria do público que voltaria para as suas
casas confortáveis após a manifestação. Ao contrário de Rivera, filha de uma
venezuelana e um porto-riquenho, a maioria não havia passado noites na cadeia
ou sofrido estupro policial. A ativista morreu em situação de rua, sozinha, sem
o cuidado que deveria ter tido. Marsha P.
Johnson, a travesti decorada, maquiada, sorridente, super
queer, foi assassinada e seu corpo lançado ao rio.
Pensar historicamente e humanamente nas duas é uma
questão central no debate do ódio ao
“feminino” e de outras diversas discriminações presentes
entre a população LGBTQIA+. A direita há muito abriu uma guerra contra
mulheres, e o crescimento dos babacas
red pills é só um dos fenômenos dessa realidade. Dela,
ainda fazem parte nomes como o do ex-deputado federal Daniel
Silveira, que quebrou a placa com o nome de Marielle ao lado de Rodrigo Amorim.
Mas, como se vê, a misoginia não é uma
exclusividade de radicais de direita e conservadores. E se Sylvia e Marsha
estiveram na linha de frente para assegurar direitos de milhões de pessoas, sem
distinção de credos, raça, gêneros e graus de “feminilidade”, cabe perguntar:
quando homens gays cisgêneros, majoritariamente brancos e de classe média, irão
se juntar, com ênfase e força, a debates como o direito ao aborto, emprego e
salários, questões de vida e morte para a maioria das mulheres
negras brasileiras? Quando a maioria deste mesmo grupo vai se
posicionar sobre os milhares de estupros
que vitimam principalmente meninas e
adolescentes? De que coletividades, afinal, estamos falando?Como diria Jorge
Ben na música Zumbi: eu quero ver. Estamos aqui.
Fonte: Por Fabiana Moraes, em The Intercept
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