domingo, 27 de agosto de 2023

Brics no metro quadrado mais caro da África: 'Dá raiva e machuca'

Em 1941, um jovem sul-africano negro e pobre de 23 anos chegou à cidade de Alexandra, vizinha a Joanesburgo, em busca de uma vida nova e um lugar para morar. Pouco tempo depois, ele alugou um pequeno quarto com telhado de zinco sem aquecimento, água encanada e nem eletricidade.

"Embora a prefeitura tenha construído alguns prédios bonitos, (Alexandra) poderia ser justamente descrita como uma favela, um testemunho vivo da negligência das autoridades. As ruas não eram pavimentadas e sujas e repletas de crianças famintas, subnutridas correndo por aí seminuas", descreveu, décadas mais tarde em um livro.

O jovem se chamava Nelson Mandela.

Oitenta e dois anos depois de o líder antiapartheid e ex-presidente sul-africano morto em 2012 pisar em Alexandra pela primeira vez, a cidade continua sendo uma das áreas mais precárias de Joanesburgo e os telhados de zinco continuam sendo uma das marcas registradas do lugar.

E trinta e três anos após o fim do regime oficial de segregação entre brancos e negros na África do Sul, o país é, segundo relatório do Banco Mundial do ano passado, o país mais desigual do mundo. Enquanto o Laboratório Mundial da Desigualdade, dirigido pelo francês Thomas Piketty, afirma que o país pouco se moveu em termos de concentração de renda em três décadas.

A pobreza na Alexandra de Mandela contrasta de forma brutal com a riqueza do palco escolhido pelo governo sul-africano para sediar a 15ª Cúpula do Brics.

O encontro que reuniu os líderes do Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul nesta semana, aconteceu em Sandton, uma área na região metropolitana de Joanesburgo. O lugar é conhecido popularmente como o "metro quadrado mais caro da África" e fica a seis quilômetros de distância de Alexandra.

Lá, os telhados de zinco dão lugar a arranha-céus envidraçados com design moderno que abrigam multinacionais de faturamento bilionário como mineradoras como a Anglo Ashanti e empresas de tecnologia.

As ruas sem pavimento descritas por Mandela dão lugar a vias largas nas quais carros oficiais desfilaram ao longo dos últimos dias carregando presidentes, ministros e empresários dos países dos Brics.

É nessa área, por exemplo, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e sua comitiva ficaram hospedados.

A poucos metros do centro de convenções onde a cúpula é realizada, fica um complexo comercial conhecido como Mandela Square (ou Praça Mandela).

E é lá que um outro morador de Alexandra assiste à movimentação gerada pelo Brics enquanto serve mesas em um restaurante de comida indiana badalado.

Richard Malekano, 33, é garçom e vive em Alexandra há três anos. Ele vivia em Cosmo City, outra comunidade pobre de Joanesburgo, mas se mudou para ficar mais perto do novo emprego.

O restaurante onde trabalha fica em frente a uma estátua de Mandela em metal medindo aproximadamente quatro metros de altura.

"Você sabia que Mandela morou onde eu moro?", pergunta.

Entre um prato e outro, ele conta que a vida e a paisagem em Alexandra parece ter mudado pouco em relação ao tempo de Mandela.

"As ruas ainda são sujas e a gente precisa enfrentar os blecautes o tempo inteiro", lamenta.

Richard diz que ganha em torno de 7 mil rands (moeda local) por mês, o equivalente a pouco mais de R$ 1,8 mil.

Sem dinheiro para ter sua própria casa, ele alugou um quarto de um locatário que construiu um imóvel e o dividiu em nove pequenos quartos com acesso a apenas um banheiro. Richard diz sentir-se com sorte.

"Eu me sinto sortudo em Alexandra. A minha casa, pelo menos, tem paredes de concreto", afirma.

Ele conta que não teve oportunidade de estudar porque, como mais velho, acabou tendo que ir trabalhar e ajudar a custear os estudos de suas irmãs.

Alexandra tem fama de ser um lugar violento e Richard diz saber disso. Mesmo assim, ele afirma se sentir seguro em sua vizinhança.

"Acho que me sinto seguro lá porque eu sou pobre. Se você for rico e vai a Alexandra, você pode se sentir inseguro. Mas quando você é pobre como eu, você pensa: mesmo se eu morrer, o que eu tenho a perder?", afirma Richard.

Durante a conversa, um jato da aeronáutica sul-africana faz um voo rasante sobre Sandton e ele refletiu sobre a quantidade de políticos, empresários e jornalistas naquela parte afluente da África do Sul.

"Aqui em Sandton, a maioria da força de trabalho vive em Alexandra. Vocês (jornalistas) focam em quem está vindo pra cá, mas não focam em quem vive em Alexandra. Dá raiva e isso machuca. É uma cicatriz. Se você olhar, está cheio de polícia nas ruas hoje em dia, mas não é sempre assim", disse Richard.

Combate à desigualdade não ganhou holofotes

Trinta e três anos depois do fim do apartheid, Richard diz não se sentir incluído em seu próprio país.

"Como africanos, a gente ainda não é livre. A gente não vai nos lugares não porque a gente não pode, mas porque não temos o dinheiro pra ir. Você não come algo não porque você não quer, mas porque você não tem dinheiro para isso", afirmou.

Na África do Sul, o 1% mais rico concentra 55% da riqueza do país, de acordo com relatório de 2022 do Laboratório Mundial da Desigualdade, de Piketty. Um resultado apenas um pouco melhor do que o do Brasil, que também está entre os países mais desiguais do mundo e é o segundo mais concentrador de renda entre no Brics (1% mais rico no Brasil abocanha 48,1% da riqueza total).

"Embora os direitos democráticos tenham sido alargados à totalidade da população após o fim do apartheid em 1991, as desigualdades econômicas extremas persistiram e foram exacerbadas", afirma o estudo do ano passado.

"O grupo dos 10% mais ricos é composto por 60% de sul-africanos brancos, que representam apenas 10% ou menos da população total", informa o texto.

A desigualdade social e a necessidade de reduzir a pobreza nos países do Brics foi um dos temas que apareceram nos discursos de líderes durante a cúpula.

"O sinal mais evidente de que o planeta está se tornando um lugar mais desigual é o crescimento da fome e da pobreza. Isso é inaceitável. Apesar da sua magnitude, esses problemas não são tratados com a urgência que merecem", disse Lula em um pronunciamento ao final da reunião.

Mas a desigualdade ficou longe de atrair os principais holofotes. O que dominou a cúpula ao longo da semana foi o xadrez geopolítico que resultou na expansão do bloco.

O grupo anunciou que convidou Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Argentina, Irã e Argentina a fazer parte do grupo a partir de 2024.

O anúncio foi o momento mais esperado da reunião e foi feito no Centro de Convenções de Sandton. A pouco mais de 500 metros de onde Richard serve seus pratos.

 

Ø  Lula critica Conselho de Segurança da ONU e pede reforma

 

Em visita oficial a Angola, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu neste sábado (26/08) uma reforma no Conselho de Segurança da ONU, destacou a falta de representatividade de países latinos e africanos no órgão e disse que a entidade já não representa mais "aquilo para o qual foi criada".

"A ONU de 2023 está longe de ter a mesma credibilidade da ONU de 1945", afirmou na capital angolana, Luanda. 

Para Lula, o órgão que "deveria ser a segurança da paz e da tranquilidade" é, justamente, "o que faz a guerra sem conversar com ninguém".

"A Rússia vai para a Ucrânia sem discutir no Conselho de Segurança. Os Estados Unidos vão para o Iraque sem discutir no Conselho de Segurança. A França e a Inglaterra vão invadir a Líbia sem passar pelo Conselho de Segurança. Ou seja, quem faz a guerra, quem produz arma, quem vende armas são os países do Conselho de Segurança. Está errado", argumentou. 

O Conselho de Segurança da ONU é composto por 15 países. Cinco deles – China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos – são membros permanentes com direito de veto. Outros 10 países ocupam assentos não permanentes, com mandatos de dois anos. Os atuais membros não permanentes são: Albânia, Brasil, Gabão, Gana, Emirados Árabes Unidos, Equador, Japão, Malta, Moçambique e Suíça.  

Em abril, a Rússia assumiu a presidência rotativa do órgão, sob críticas da Ucrânia, que considerou o fato uma "piada de mau gosto".

·         Falta de representatividade

Lula acredita que mais países deveriam compor o conselho.

"Qual é a representação da África no Conselho de Segurança? Qual é a representação da Ásia, da América Latina? Deixamos claro que defendemos que o Brasil entre no Conselho de Segurança, a Índia, a Alemanha, o Japão. Há divergências, mas não são nossas", disse. 

O presidente defendeu que a ONU passe a ter o que chamou de representação geográfica mais condizente com a realidade.

"Em 1948, a ONU conseguiu criar o Estado de Israel. Em 2023, ela não consegue fazer cumprir a área reservada aos palestinos. Ela ficou enfraquecida. E, na questão climática, é mais grave. Em todas as COP, nós decidimos muitas coisas, mas nenhuma delas é cumprida. Por que não é cumprida? Porque não há um Estado soberano. A ONU não tem força para dizer: ‘Isso aqui nós temos que cumprir, se não haverá determinadas ações'", exemplificou.  

·         Dívida africana

Também neste sábado, em coletiva de imprensa em Luanda, o presidente brasileiro questionou o mecanismo de pagamento da dívida de países africanos ao Fundo Monetário Internacional (FMI).

"É preciso começar uma nova briga", disse, ao citar que o continente acumula um débito de 760 bilhões de dólares a serem pagos ao fundo. 

"Essa dívida vai ficando impagável porque o dinheiro do orçamento nunca dá para pagar e o problema vai sempre aumentando. Qual é a lógica? É tentar sensibilizar as pessoas que são donas dessas dívidas para que elas sejam transformadas em apoio à infraestrutura. O dinheiro da dívida, ao invés de ser pago, seria investido em obras de infraestrutura", disse. 

Ele acredita que é necessário pensar em alternativas para uma solução.

"Você pode ou anular essa dívida, e acho que vai ser impossível anular uma dívida de 760 bilhões de dólares, mas você pode prorrogá-la até que esses países adquiram condições de pagar." 

·         Primeiro consulado em um país africano lusófogo

Durante a visita oficial de dois dias a Angola, Lula inaugurou um espaço no Instituto Guimarães Rosa (Centro de Cultura Angola-Brasil) e anunciou a criação de um consulado geral em Luanda, o primeiro num país africano lusófono. Em Angola vive a maior comunidade brasileira da África, com quase 30.000 brasileiros.

Lula também assinou sete memorandos de entendimento nas áreas do turismo, saúde e agricultura, entre outras, para o "reforço e relançamento" da cooperação bilateral de quase cinco décadas entre os dois países.

Na visita, Lula também aproveitou para alfinetar o ex-presidente Jair Bolsonaro, dizendo que na gestão passada Angola "foi esquecida".

"Um presidente que não gostava de ninguém", disse, referindo-se a Bolsonaro. 

"Estou aqui hoje para dizer que o Brasil vai voltar ao continente africano, quero visitar o máximo de países que eu puder visitar, quero fazer o máximo de acordo que eu puder fazer, quero contribuir de forma solidária onde puder, mas Angola sempre será a nossa porta de entrada neste continente", assegurou. "Estou aqui para dizer ao povo de Angola que o Brasil voltou de verdade".

A comitiva de Lula contou com seis ministros – incluindo os da Saúde, Direitos Humanos, Igualdade Racial e Relações Exteriores – e 170 empresários brasileiros.

Após deixar Angola, Lula segue viagem para São Tomé e Príncipe neste domingo, onde participará da Cúpula dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Esta é a primeira vez que o presidente visita o continente desde o início do terceiro mandato.

 

Fonte: BBC News Mundo/Deutsche Welle

 

Nenhum comentário: