As cidades brasileiras reproduzem as desigualdades sociais
A expansão do capital nas cidades brasileiras está
acelerando os processos de
urbanização e segregação e tem como consequência a reprodução
das desigualdades nos territórios, diz Vanessa Marx, uma das organizadoras do
livro “Reforma urbana e direito à cidade. Porto Alegre”, publicação do Observatório
das Metrópoles, na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Em Porto Alegre, por exemplo, as desigualdades sociais persistem e percebemos um outro
fenômeno: as pessoas estão vivendo cada vez mais em condomínios, enquanto
outras comunidades seguem sem moradias adequadas, sem saneamento básico”,
informa.
Segundo ela, os primeiros dados do censo demográfico de 2022, divulgados
pelo IBGE em
28-06-2023, ainda estão sendo analisados, mas indicam “um decréscimo da população e um aumento dos domicílios” em Porto Alegre.
“Esse aspecto ainda está em análise porque estamos aguardando os próximos
dados, mas a configuração das metrópoles
brasileiras é diversa. Algumas populações estão decrescendo e,
portanto, a relação entre população e domicílio deve ser analisada com maior
profundidade. Uma questão que surge é para quem são esses domicílios.
Frequentemente, a expansão do capital nas metrópoles não está atrelada à
moradia adequada, mas à especulação
imobiliária; enquanto uma pessoa tem três casas, outra não tem nenhuma.
Essa mesma disparidade é vista, de um lado, no aumento dos condomínios fechados
e, de outro lado, no crescente número de pessoas em situação de rua”, pondera.
Diante da construção acelerada nas cidades, do
número de pessoas em situação de rua e da falta de moradia adequada, salienta, “a questão é: para quem são
destinados estes imóveis? Quem vai comprar ou alugar estes imóveis? Essas são
perguntas que fazemos porque estamos vendo uma construção acelerada nas
cidades”.
>>>> Confira
a entrevista.
·
Qual é o retrato das
metrópoles brasileiras hoje, pós-pandemia?
Vanessa Marx – As cidades brasileiras seguem reproduzindo
as desigualdades sociais nos
territórios. Sendo um dos países mais desiguais do mundo, o Brasil reflete essa
situação nos territórios e na questão urbana. Por isso, o direito à cidade reivindica o direito à
vida urbana, que significa ter acesso à moradia adequada e às condições básicas
de saneamento. Quando essas necessidades não são atendidas, elas geram grandes
desigualdades sociais nas metrópoles.
As metrópoles têm
uma complexidade diferenciada entre elas. Estamos começando a analisar os dados
do censo e percebemos que cidades como São Paulo têm um grau de complexidade maior do que outras
metrópoles. Em Porto Alegre,
por exemplo, as desigualdades sociais persistem e podemos perceber um outro
fenômeno: as pessoas estão vivendo cada vez mais em condomínios, enquanto outras comunidades seguem sem moradias adequadas, sem saneamento básico.
As cidades médias, por sua vez, não têm a
complexidade de uma metrópole, mas, em geral, estamos assistindo à expansão do capital nas cidades brasileiras,
que vêm acelerando cada vez mais os processos de urbanização e de segregação.
Assistimos à desigualdade social como um dos maiores
problemas do Brasil e como isso é visível nas cidades brasileiras.
·
Entre os dados do censo,
o que tem chamado a atenção em relação às metrópoles?
Vanessa Marx – Ainda estamos analisando os dados do censo, mas observamos,
em Porto Alegre, um decréscimo da população e um
aumento dos domicílios. Esse aspecto ainda está em análise porque estamos
aguardando os próximos dados, mas a configuração das metrópoles brasileiras é diversa.
Algumas populações estão decrescendo e, portanto, a relação entre população e
domicílio deve ser analisada com maior profundidade. Uma questão que surge é
para quem são esses domicílios. Frequentemente, a expansão do capital nas metrópoles não está atrelada à
moradia adequada, mas à especulação imobiliária; enquanto uma pessoa tem três
casas, outra não tem nenhuma. Essa mesma disparidade é vista, de um lado, no
aumento dos condomínios fechados e, de outro lado, no crescente número de pessoas em situação de rua.
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A senhora declarou
recentemente que “Porto Alegre é uma cidade que está sendo completamente
fragmentada em planos especiais”. Em que consiste a fragmentação da cidade,
como ela está ocorrendo e pode ser observada?
Vanessa Marx – Desde a revisão do Plano
Diretor, em 2010, estão sendo desenvolvidos diversos projetos especiais,
com exceção do plano, que vêm sendo implementados de forma acelerada na cidade.
Nos últimos dois anos, assistimos à fragmentação da cidade em projetos nas
diversas regiões. No livro “Reforma
urbana e direito à cidade”, analisamos este tema detalhadamente em
relação aos projetos para o Centro
Histórico e o 4º Distrito [bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes,
Humaitá, Farrapos]. Esses projetos estão sendo desenvolvidos em paralelo ao
processo de gestão do Plano Diretor. Ou seja, está havendo um processo de
revisão do Plano Diretor com alterações importantes no território, com planos
específicos de negócios, de transformação e adensamento para a região.
No Plano Diretor, que é um instrumento de gestão urbana, conseguimos visualizar
a totalidade da cidade, todas as regiões de gestão e planejamento. Para ter uma
revisão democraticamente equilibrada, fazer uma leitura da cidade de forma
total, buscando reduzir as desigualdades sociais, deveríamos ver a cidade de
forma equilibrada. Ou seja, ver a sua totalidade. O que temos percebido é que a
cidade está se fragmentando por planos para regiões específicas e, muitas
vezes, essa fragmentação não conversa com o Plano Diretor, que é o instrumento
por excelência para visualizar a cidade como um todo.
·
Em Porto Alegre, quais
são os grandes projetos em curso e como, a partir deles, a cidade está sendo
reestruturada?
Vanessa Marx – Por exemplo, o Programa
+4D, no 4º Distrito,
é um plano específico para aquela região, assim como há um plano para o Centro Histórico. Também foram feitas
alterações na Orla do Guaíba e
no Cais Mauá. São pontos
específicos com projetos específicos para essas áreas, mas o Plano Diretor não
menciona estes projetos. O 4º
Distrito está na gestão de planejamento dois, assim como as ilhas.
Isso tudo deveria ser conversado a partir do Plano Diretor, através do qual se
consegue visualizar a região. A partir disso poderiam decidir qual é a vocação
de cada região e quais temas poderiam ser priorizados. Mas não conseguimos
visualizar a totalidade porque tudo está fragmentado.
·
IHU – Quais são as
vantagens e as desvantagens da privatização de determinadas áreas da cidade que
preservam espaços públicos e que podem ser utilizados pela população, como no
caso do Pontal do Estaleiro?
Vanessa Marx – No caso do acesso à
Orla e ao Pontal do
Estaleiro, o problema é quando um espaço privado, que tem uma função privada e, ao mesmo tempo, uma
função pública, é fechado para algum evento e se torna privado. O que temos que
garantir na cidade de Porto Alegre são
os acessos a espaços públicos, priorizando as pessoas frente às grandes
construções. Quando as pessoas vão a esses espaços privados, elas vão consumir
nesses lugares, mas é difícil estes espaços serem socialmente inclusivos porque
vão dando outra cara para a cidade. Há pessoas que não se sentem confortáveis
para irem a estes espaços e isso vai gerando uma exclusão social de alguma
forma. Em Porto Alegre, há
uma demanda por bairros privativos,
inclusive nessa região, que está passando por transformações, com a construção
do Pontal Shopping. Ali
já existe o Barra Shopping e
bairros privativos, fechados, que são mais do que condomínios porque as áreas são muito maiores.
·
Como vê a adesão de uma
parcela da população a este modelo de gentrificação ou de projetos nas cidades?
Em quais estratos sociais estes modelos são reproduzidos? Como a população tem
reagido?
Vanessa Marx – É difícil falar, porque teríamos que ter dados sobre locais
específicos. Mas, em geral, o que precisamos verificar é quem está adquirindo
estes imóveis. Uma hipótese é que estes imóveis estão sendo adquiridos por
pessoas que não moram em Porto
Alegre. Se é assim, eles poderiam ser destinados para aluguel ou para
aluguel de temporada. Não sabemos. Algumas cidades do mundo, como Paris e Barcelona, criaram políticas para
frear o aluguel especulativo por
temporada porque as pessoas não tinham onde viver. Claro que Porto Alegre não é uma cidade tão
turística como essas, mas o crescimento de construções de imóveis para aluguel
de temporada freia a capacidade das pessoas de poderem adquirir um imóvel a
longo prazo. Então são políticas locais que as próprias prefeituras criaram
para frear este tipo de iniciativa. A questão é: para quem são destinados estes
imóveis? Quem vai comprar ou alugar estes imóveis? Essas são perguntas que
fazemos porque estamos vendo uma construção acelerada nas cidades.
·
Hoje, quais são as regiões
mais periféricas de Porto Alegre e em que aspectos precisam ser revitalizadas?
Vanessa Marx – Em algumas regiões falta acesso ao transporte público. Nos bairros Restinga, Bom Jesus, Mario Quintana e mesmo no 4º Distrito, região que pesquiso
mais, uma parcela da população vive de forma precária e reivindica melhorias,
como na Vila Santa Terezinha.
Precisamos olhar para essa população porque o território é diverso. Os dados
mostram que a renda é maior na Região 1 de Gestão e Planejamento, na região Centro.
Mas tem regiões com diversidade enorme de renda na mesma região. Ou seja,
bairros com renda alta e média alta, como o Chácara das Pedras e o Três Figueiras. Mas na mesma região tem pessoas com renda menor.
Por isso, é importante o Plano Diretor, para olharmos para a diversidade que
existe em uma mesma região. No momento em que estamos fragmentando a cidade por
projetos, estamos pensando no Centro como Centro, mas há uma diversidade de
pessoas aí. O Centro e
o bairro Floresta são
os lugares que mais têm população de rua hoje. Como tratamos isso? Temos que
olhar para essa diversidade que acontece na cidade e não podemos homogeneizar
as soluções.
·
Na pandemia, aumentou o
número de pessoas e famílias morando nas ruas. Como está essa realidade em
Porto Alegre hoje?
Vanessa Marx – A população em situação de rua tem sido
muito afetada desde o início da pandemia,
que trouxe à tona a questão da pobreza e
da desigualdade, que
aumentaram. A moradia social é um tema muito importante e deveria ser tratado
com mais atenção, principalmente para essa população. No livro, tratamos da
questão sobre desemprego e pobreza, sobre a redução da renda média nos estratos
mais baixos e sobre o aumento da população de rua por causa da vulnerabilidade
econômica. Isso tem relação com outro tema, que é a questão do despejo.
A pandemia destacou o fato de que muitas pessoas
não têm uma casa para morar. Não têm também acesso à higiene, à água, e várias
foram despejadas. Nesse sentido, a campanha Despejo Zero foi fundamental em relação à questão humana,
dos direitos humanos, além da questão da moradia, por ter trabalhado para
tentar frear o despejo. Essa iniciativa conseguiu sensibilizar o poder
judiciário a respeito da importância de as pessoas terem moradia. Ao
terem moradia, reduz-se a população em situação de rua. Com o
despejo, aumenta o número de
pessoas em situação de rua.
·
A que atribui a
morosidade no tratamento da questão habitacional, seja da moradia social, seja
do acesso à moradia no país?
Vanessa Marx – Tivemos quatro anos de retrocesso das políticas públicas em
relação a isso. Para enfrentar esta questão, primeiramente precisa haver
investimentos, ou seja, tem que ter políticas públicas que priorizem essa
pauta. Faltam programas de investimento para moradia e habitação de interesse
social. Também é importante reduzir a violência nas cidades, que é outro
problema das metrópoles. Enfrentar isso depende de políticas públicas. Seria importante ter uma
articulação federativa de enfrentamento dessas questões. Hoje, a política local
vai para um lado, enquanto a política estadual vai para outro, e a política
nacional para um outro ainda.
·
Quais as lutas urbanas
que ocorrem em Porto Alegre hoje, pós-pandemia? Embora existam tais movimentos
locais, essa não é uma pauta que gera pouca sensibilidade na sociedade?
Vanessa Marx – As lutas urbanas são
uma constante em Porto Alegre.
Nos últimos quatro anos, a campanha Despejo Zero articulou, de alguma forma, diversos movimentos
sociais e coletivos que tentavam discutir os projetos que vão sendo aprovados.
Os projetos do 4º Distrito tiveram
resistência no fórum do 4º
Distrito. Isso quer dizer que os próprios moradores locais e os
movimentos sociais tentaram discutir estes projetos. O Cais Mauá também foi discutido
por movimentos sociais, culturais, assim como o destino dos armazéns e a
necessidade daquele espaço ser público.
Em cada lugar desses onde há uma expansão do
capital para a especulação das
áreas, vemos movimentos de resistência que tentam propor projetos alternativos,
como o Cais Mauá e o fórum do 4º Distrito, que sensibilizam sobre a importância de
populações vulneráveis nos territórios. O Coletivo Atua Poa também reúne diversos movimentos que sempre
buscaram reivindicar a participação social na revisão dos planos diretores.
Recentemente, estamos assistindo à concessão dos parques e praças de Porto Alegre, como o Parque da Redenção e o Parque Harmonia. Estamos na contramão da preservação. Ao mesmo
tempo que essas reestruturações estão acontecendo em Porto Alegre, também existem coletivos
que tentam resistir e sensibilizar a comunidade e a população. Não podemos
deixar que a cidade se torne totalmente privatizada. Precisamos ter uma cidade
em que as pessoas possam circular livremente. Porto Alegre não pode ser a cidade do consumo, onde as pessoas só
entram em lugares privados. Essa é uma discussão importante a ser feita.
·
Quais são os desafios de
transformar as metrópoles brasileiras em cidades mais justas e sustentáveis, de
modo que todos tenham acesso à cidade?
Vanessa Marx – São muitos. Um deles é trabalhar a moradia social e olhar para as
áreas de interesse social da cidade. Precisamos verificar que espaços são
estes. Por exemplo, no Uruguai foram
feitas experiências de cooperativas
de moradia e de autoconstrução.
Apoiar esse tipo de iniciativa é importante. Por sermos um país muito desigual,
os movimentos sociais bem muito expressivos e são eles que vêm nos mostrando os
caminhos de superação das
desigualdades pronunciadas no Brasil, como a questão da moradia em
áreas centrais. Existem moradias
vazias em áreas centrais. São os movimentos sociais que chamam a
atenção para a função social da propriedade que está prevista pelo Estatuto da Cidade. Como pode haver
moradias vazias e pessoas sem casa? Essa é uma equação que não fecha. É uma
questão muito complexa, mas precisamos olhar, primeiro, para a moradia e o saneamento básico.
O Direito à Moradia em
direções a cidades sustentáveis: uma agenda para 2020 em São Leopoldo:
Ter um sistema de saúde como o SUS, que garante o acesso à saúde,
também é importante. Foi isso que nos ajudou na pandemia. Assim como também ter acesso à educação. Todas essas questões estão vinculadas ao
direito à vida urbana.
Outra questão que também temos que enfrentar é a ambiental, que está entrando na agenda tardiamente. Tem movimentos
sociais que estão reivindicando essa pauta a partir do desenvolvimento de
hortas urbanas, da alimentação. Mas também é preciso ter segurança nos espaços
de moradia, para as pessoas não viverem em áreas de risco, como assistimos há
pouco nas situações das pessoas que foram atingidas pelo ciclone. As pessoas
estão muito vulneráveis. Além de sofrerem com a vulnerabilidade social, sofrem nos momentos em que há efeitos climáticos.
Para enfrentar essas questões, é preciso
haver política pública e
investimento social. É preciso reivindicar essa porção do orçamento. Por isso,
a questão do orçamento é central para saber o que está sendo investido.
Precisamos de investimento público porque
não é o investimento privado que vai alterar a situação. É o Estado quem tem
uma função importante na redução
das desigualdades. Outra coisa que precisamos considerar são os dados
produzidos a partir de gênero e raça. Na pandemia, assistimos à situação
de mulheres
que trabalham três turnos. Precisamos olhar esses
dados para reduzir as desigualdades dessas populações mais vulneráveis.
Fonte: Entrevista com Vanessa Marx, para IHU OnLine
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