A pesquisa do Butantan sobre veneno de peixe que foi revisada por
crianças
Um grupo de pesquisadores do Instituto Butantan, em
São Paulo, publicou
um artigo na Frontiers for Young Minds, uma revista
científica revisada e editada apenas por crianças.
A equipe brasileira, que investiga venenos de
peixes peçonhentos, descreveu os detalhes de um experimento que avaliou uma
molécula chamada TnP (entenda abaixo).
Essa substância tem o potencial de virar, no
futuro, um tratamento contra doenças inflamatórias, como asma e esclerose
múltipla, de acordo com os pesquisadores.
Segundo os cientistas envolvidos no projeto,
interagir com as crianças ajudou a simplificar conceitos e reforçou a
importância do trabalho que eles fazem na bancada do laboratório.
Mas, para entender essa história, é preciso
conhecer os detalhes sobre dois peixes com características únicas: o niquim e o
zebrafish.
·
O encontro de espécies no
laboratório
Desde sua fundação, o Instituto Butantan é
referência nacional e internacional no estudo de venenos e na produção de soros
para tratar acidentes com cobras e aranhas.
Mas o centro de pesquisas também possui há algumas
décadas um grupo que estuda especificamente os venenos de peixes.
Pouca gente sabe, mas alguns representantes desse
grupo de animais também possuem peçonha, e podem inocular substâncias nas
vítimas.
É o caso, por exemplo, de alguns bagres, das
arraias e do niquim — este último, aliás, é um dos focos de pesquisa no
Butantan.
“Quando acidentes com peixes acontecem, a pessoa
sente muita dor, inchaço e vermelhidão. A pele acometida também pode sofrer um
processo de necrose”, explica a farmacêutica Carla Lima, do Laboratório de
Toxinologia Aplicada (Leta) do Butantan.
Embora acidentes do tipo não matem, eles
representam um grande problema para turistas desavisados e, principalmente, aos
pescadores, que podem sofrer com vários episódios repetidos do tipo durante o
trabalho.
Ao lado das arraias e dos bagres, o niquim está
entre os principais causadores de acidentes entre os peixes brasileiros. Essa
espécie, cujo nome científico é Thalassophryne nattereri, costuma
viver em águas levemente salgadas, na transição entre rios e mares. É mais
encontrado na região Nordeste do Brasil.
A questão é que o niquim gosta de ficar enterrado
na areia — e um transeunte desavisado acaba pisando nos espinhos do peixe,
localizados nas laterais e na parte superior do corpo do animal, por onde o
veneno passa.
Ao fazer análises sobre o veneno que é inoculado
pelo niquim, os especialistas do Butantan identificaram a tal TnP (sigla em
inglês para peptídeo do Thalassophryne nattereri).
Eles sintetizaram quimicamente a molécula e
começaram a fazer os primeiros testes em laboratório. Em roedores, a substância
foi capaz de tratar quadros inflamatórios parecidos com asma e esclerose
múltipla (uma doença que afeta o sistema nervoso central).
E é justamente aqui que entra o segundo peixe na
história: o zebrafish (Danio rerio) é utilizado como modelo experimental
nos testes com a TnP.
O nome em inglês, “peixe zebra”, faz alusão ao fato
de o bicho ter listras pelo corpo. No Brasil, ele também é conhecido como
"paulistinha".
O biólogo Rodrigo Disner, pesquisador de
pós-doutorado no Leta do Butantan, diz que trabalhar com essa espécie traz
inúmeras vantagens.
“Para começar, em termos genéticos, o DNA dele é
70% igual ao nosso. Isso permite entender no zebrafish muitos fenômenos que nos
afetam, como a resposta imunológica e inflamatória”, diz ele.
Em segundo lugar, esse peixe tem um desenvolvimento
muito rápido — em apenas 72 horas após a fecundação, a maioria dos órgãos dele
já está funcionando. Para ter ideia, um zebrafish cresce em um dia o
equivalente ao que um embrião humano demora um mês.
Ainda nessa seara, os embriões desse peixe são
quase transparentes, o que facilita a visualização das estruturas internas dele.
“E o fato de eles serem pequenos também facilita,
pois podemos mantê-los nos biotérios sem a necessidade de uma estrutura física
muito grande”, complementa Disner.
Em termos práticos, todo esse pacote de vantagens
faz o zebrafish ser um modelo muito usado em várias pesquisas Brasil afora
atualmente.
“Ele também virou um símbolo, que ajuda as pessoas
a se conectarem e entenderem a importância do trabalho que realizamos”,
complementa o biólogo.
O TnP sintetizado em laboratório foi testado no
zebrafish — e, nesses experimentos iniciais, mostrou-se seguro ao não causar
efeitos colaterais dignos de nota.
As investigações com a molécula devem seguir
adiante no laboratório. Se os resultados continuarem positivos, é possível que
daqui a alguns anos ela seja testada em seres humanos com o objetivo de virar
um potencial remédio contra as doenças inflamatórias.
Essa não seria a primeira vez que o veneno serviria
de inspiração para tratamentos: o captopril, um dos fármacos mais usados contra
a pressão alta, surgiu a partir de uma substância identificada no veneno da
jararaca (Bothrops jararaca).
E é importante deixar claro: o veneno do niquim não
serve como tratamento para doenças inflamatórias. Uma substância específica
presente ali foi isolada e está sendo pesquisada para quem sabe, no futuro,
virar um remédio. Por enquanto, ainda não se sabe se de fato ela terá eficácia
de verdade contra problemas de saúde que afligem humanos.
·
Da descoberta à publicação
Geralmente, qualquer pesquisa passa por algumas
etapas de avaliação e edição antes de ser publicada num periódico
especializado.
Esse trabalho é realizado por cientistas
independentes, que não têm relação com o estudo, embora sejam grandes
conhecedores daquela área.
Nesse processo tradicional, os autores do artigo e
os revisores não têm contato — justamente para evitar qualquer influência nas
decisões sobre publicar ou não aquele achado.
No caso da revista Frontiers for Young Minds,
porém, essa dinâmica é diferente: o artigo é revisado por crianças de escolas
americanas que, com auxílio de professores, apontam as principais dúvidas e
pontos que precisam ser reformulados.
Os cientistas-autores da pesquisa e os revisores
mirins têm reuniões e conversas, justamente para que o texto final fique o mais
claro e detalhado possível — afinal, a ideia é que todo mundo, especialista ou
não, possa entender aquilo que está escrito.
O grupo do Butantan, por exemplo, relata que
recebeu sugestões das crianças, como incluir algumas ilustrações sobre a
anatomia do niquim e as etapas de desenvolvimento do zebrafish, detalhar melhor
algumas descrições e acrescentar um glossário de palavras mais complicadas ao
final do artigo.
Lima destaca que o instituto já possui várias
iniciativas de divulgação científica — e eles inclusive levam os mais jovens
para conhecer o laboratório —, mas a publicação da pesquisa numa revista
revisada por crianças foi uma experiência diferente.
“Talvez o nosso grande desafio como cientistas é
conseguir demonstrar a grandiosidade de nosso trabalho de modo que todas as pessoas
possam entender”, aponta ela.
“E quando saímos de nossa zona de conforto e
conversamos com o público, podemos até aprimorar nosso próprio trabalho e
encontrar respostas para algumas perguntas”, conclui a farmacêutica.
Fonte: BBC News Brasil
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