Tortura é prática
disseminada pelo Estado, dizem especialistas
Um
homem morto asfixiado com gás no porta malas de uma viatura policial, dedos de
pessoas presas fraturados por agentes penitenciários, policiais carregando um
rapaz com mãos e pés amarrados com cordas e um ajudante de pedreiro
desaparecido há dez anos após abordagem policial. Os casos parecem saídos do
período da ditadura militar no país, mas estão no passado recente da democracia
brasileira.
Neste
Dia de Apoio às Vítimas da Tortura – 26 de junho – especialistas ouvidos pela
Agência Brasil afirmam que a tortura é uma prática estrutural no país e que não
aparece apenas em casos isolados.
“Eu
entendo essas práticas como tortura e maus tratos. Sem dúvida nenhuma, o que a
gente testemunha no Brasil, enquanto tortura e maus tratos, tem relação direta
com o nosso passado ditatorial. E eu iria até mais longe, tem relação direta
com o nosso passado escravista”, disse Gabrielle Abreu, coordenadora executiva
de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog.
Para
ela, há uma linha de continuidade no que diz respeito à tortura e maus tratos
que remonta à escravidão, aos séculos passados, e perpassa pelo século 20,
tendo a ditadura como uma oportunidade que a tortura teve no Brasil de se
aprimorar, se alastrar e se tornar praticamente um código de conduta não
explícito dos agentes das forças de segurança pública no Brasil.
“Esse
episódio em que o homem foi amarrado, suspenso, pelas mãos e pelos pés, me
remeteu ao pau de arara, que era um instrumento de tortura muito utilizado pela
ditadura e foi muito usado também na escravidão contra homens e mulheres,
negros e negras, que foram escravizados”, acrescentou. Segundo a historiadora,
tem um fio de continuidade que é preciso romper o quanto antes. “Senão, a
história do Brasil vai se tornar uma história de tortura, de maus tratos, de
violência e, acima de tudo, uma história de impunidade”, enfatizou.
Divulgado
em abril deste ano pelo Instituto Vladimir Herzog, o monitoramento das
recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) revelou que o item que
recomenda ao estado brasileiro a criação de mecanismos de prevenção e combate à
tortura apresentou retrocesso. A CNV investigou violações de direitos humanos
cometidas na ditadura militar.
“Em
relação à tortura e maus tratos, o retrocesso é completo. O estado atual é de
muita negligência desses instrumentos [de combate e prevenção à tortura], a gente
encontrou quase um terreno de terra arrasada mesmo e está num estado da coisa
pior do que quando a CNV concluiu seus trabalhos”, revelou Gabrielle.
Do
total de 29 recomendações da CNV, apenas duas foram realizadas (7%) e seis
parcialmente realizadas (21%), totalizando aproximadamente 28%. As não
efetivadas e retrocedidas conformam a maioria de cerca de 72%, sendo 14 não
realizadas (48%) e sete retrocedidas (24%), o que revela uma situação
preocupante, segundo o Instituto Vladimir Herzog.
·
Prevenção
Um
dos itens considerado realizado é o que diz respeito à introdução da audiência
de custódia para prevenção da prática da tortura e de prisão ilegal. Apesar da
implantação dessas audiências, entidades de direitos humanos ouvidas pela
Agência Brasil apontaram ineficiência do mecanismo no combate a violações do
estado.
De
acordo com o relatório, a ausência de responsabilização dos agentes públicos
que cometeram graves violações de direitos humanos na ditadura é um dos pilares
da contínua impunidade que impera no país em relação aos que atentam contra os
direitos humanos e a democracia.
“A
gente passa pela ditadura, não responsabiliza, sequer identifica os
torturadores, os agentes públicos da ditadura, não se faz qualquer investigação
e a gente chega nesse presente onde a tortura é totalmente naturalizada no
Brasil. É difícil chocar as pessoas, independente das práticas cometidas serem
bárbaras e cruéis, não há grande sensibilização pública porque a gente já
entrou no modo de naturalização muito nocivo dessas práticas”, disse Gabrielle.
Caso
recente em que um suspeito foi amarrado pelos pés e mãos com corda por
policiais militares durante sua prisão por furto já teve desdobramento na
justiça paulista que o tornou réu. Já os policiais, que estão afastados das
atividades operacionais, seguem ainda em investigação para apurar “eventuais
excessos”, segundo informou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo
(SSP).
Vídeos
da abordagem mostram Robson Rodrigo Francisco com as mãos amarradas aos pés, de
forma que não permitia que ele ficasse em pé, nem sentado. As imagens mostram
que ele é arrastado pelo chão dentro de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA)
e depois carregado por dois policiais militares, segurando-o pela corda e pela
camiseta. Ainda amarrado, ele é colocado no porta-malas de uma viatura.
“O
caso do Robson é um exemplo de muitos outros que acontecem no estado de São
Paulo e em outros lugares do país, em que a ausência de uma política
institucional que objetive a mudança de cultura dentro das corporações policiais
e, ao mesmo tempo, mecanismos que permitam a fiscalização dos estabelecimentos,
a detecção e a apuração dessas práticas [faz com] que [situações assim]
continuem se repetindo na nossa história, nos momentos atuais, como ocorreram
durante a ditadura”, disse a coordenadora auxiliar do Núcleo de Cidadania e
Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, Surraily Youssef.
·
Problema estrutural
O
Brasil tem ainda uma justiça de transição inacabada. Muitos dos relatos de
tortura e violência que aconteceram na ditadura militar ainda não foram
apurados, apesar da existência da Comissão da Verdade, avaliou Youssef. “O
cenário hoje é que a tortura ainda é uma realidade no país. E por que ela é
ainda uma realidade? Porque a gente precisa fortalecer os mecanismos
institucionais de apuração e de detecção da tortura”, disse. Para ela, a
prática de tortura no país ainda é estrutural e é preciso uma mudança de
cultura dos agentes estatais de segurança e de sua maneira de atuação.
Para
Youssef, dados das audiências de custódia, nas quais a Defensoria Pública atua
na defesa de pessoas presas em flagrante, demonstram que em muitos casos há
relatos de violência policial, prática de tortura e outros maus tratos.
Informação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra ainda que o órgão
recebeu, desde 2005, mais de 85 mil denúncias de tortura ou tratamento cruel,
desumano e degradante nas audiências de custódia.
“Muitas
vezes há uma desconsideração da prática da tortura que não é física, que é
psicológica também, que é marcada por uma série de mobilização de estereótipos,
de ameaças, de xingamentos e que isso também pode provocar o sofrimento intenso
e que pode ser qualificado como tortura”, acrescentou.
O
relatório Pontos Cegos da Tortura – elaborado pela Defensoria durante a
pandemia de covid-19, quando as audiências de custódia foram suspensas no
estado de São Paulo – concluiu que a grande maioria dos autos de prisão em
flagrante não tinha juntado o exame de corpo de delito, o que contrariava
recomendação do CNJ.
Após
análise de 602 autos de prisão em flagrante de março de 2021 – realizados na
Baixada Santista e na capital – a Defensoria concluiu que em menos de 2% dos
casos foi realizado o exame de corpo de delito, juntado o laudo ou feito
registro fotográfico, que são documentos essenciais para averiguação da prática
de violência e tortura.
“Apesar
da resolução do CNJ determinar que, mesmo que a audiência de custódia tivesse
suspensa, deveria existir uma análise do laudo pericial de todas as pessoas
presas em flagrante, acompanhada da fotografia dessas pessoas, para que
houvesse uma mínima identificação de prática de violência ou tortura, a gente
percebeu que isso não foi feito pelo judiciário paulista”, disse a defensora.
Segundo ela, esse resultado aponta que não houve uma preocupação clara em
entender esse mecanismo institucional como essencial para averiguar as práticas
de violência.
A
compreensão da tortura como estrutural também abrange as condições a que os
presos são submetidos nas unidades penitenciárias, como ausência de acesso à
alimentação, a bens materiais e superlotação, o que é realidade no país.
·
Vítimas
O
combate à tortura deve ser feito por uma série de mecanismos que possam
funcionar de forma articulada, mas que tenham como centralidade a ampliação da
narrativa daquela pessoa que é vítima de tortura, de acordo com Youssef.
“Não
é à toa que o dia 26 é chamado de Dia de Apoio às Vítimas de Tortura, porque é
só a partir do momento que a gente dá centralidade para narrativa dessas
vítimas que é possível se pensar [em] mecanismos de apuração, de reparação e
apoio psicológico a essas vítimas. Esse é um fator muito importante de ser
pensado quando a gente pensa nos mecanismos institucionais”, disse.
Entre
os mecanismos citados pela defensora estão as audiências de custódia, sua
institucionalização e ampliação dos espaços de escuta das vítimas; o
fortalecimento das perícias e dos fluxos de investigação das denúncias,
principalmente tendo em vista que hoje essa investigação é feita pelo próprio
batalhão, no caso das polícias militares; e o fortalecimento de mecanismos
tanto de controle social, quanto o mecanismos institucionais de inspeções e
supervisão dos estabelecimentos de privação de liberdade.
“Além
disso, obviamente, pensar em outra cultura dentro das corporações policiais, e
isso passa por organização de cursos de formação para esses policiais, e que
exista a participação, inclusive, de pessoas que já foram vítimas de violência
e que possam trazer essa perspectiva, curso de direitos humanos, cursos
práticos para esses profissionais”, apontou.
Ela
acrescentou que o combate a violações passa ainda por corregedorias
fortalecidas e institucionalização do uso das câmeras corporais, não só na
Polícia Militar, mas na Polícia Civil. Segundo ela, o uso das câmeras por policiais,
que ainda não é disseminado pelo país, ajuda a compreender que muitas das
abordagens policiais são acompanhadas de práticas de tortura e de violência.
·
Reparação e memória
Pensar
na apuração de tortura também é pensar em mecanismos de memória, segundo a
defensora pública, como desculpas públicas e indenizações. “Não é só quando há
uma responsabilização criminal do agente que se pensa em mecanismo de reparação
de prática de tortura. É preciso repensar também a própria maneira como o
Estado repara, de reconhecer a prática, de realizar pedidos de desculpas
públicas, de construir espaços onde essas pessoas possam ter apoio psicológico,
porque a violência de tortura é para sempre, ela vai deixar marcas”.
“O
Estado reconhecer a violência é o primeiro passo para a gente começar a
transformar essa realidade estrutural que, desde antes da ditadura militar, a
gente vive e que afeta determinadas pessoas que são mais vulneráveis: pessoas
negras, pobres, periféricas, mulheres”, acrescentou.
A
coordenadora do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, a advogada
Carolina Barreto Lemos, avalia que a não responsabilização por violações de
direitos humanos é algo que marca a história do país.
“É
uma história de muitas anistias. A não responsabilização passa o recado é de
que está tudo bem, de que não é algo pelo que as instâncias e as autoridades
precisam responder e que as pessoas não precisam ser responsabilizadas por
isso”, disse.
Para
ela, esse contexto contribui de maneira enorme para naturalização de atos de
tortura e maus tratos, no entanto, não houve nenhuma reparação simbólica no
país em relação ao período da ditadura militar. “Seria uma forma de romper com
essa prática que ficou tão visibilizada na ditadura. A responsabilização teria
sido uma forma de simbolicamente dizer ‘nós não aceitamos a prática de tortura
no Brasil’ e, no entanto, mesmo nesse caso, houve uma anistia que novamente vem
naturalizar isso como algo que não tem problema torturar pessoas presas”,
acrescentou.
A
advogada avalia que não houve ruptura pós ditadura militar em relação à
violência nas situações de privação de liberdade. “A tortura continua tão
disseminada quanto [antes], mas menos visibilizada porque agora ela volta a
atingir aquele sujeito que historicamente foi atingido e que sofre com uma
forma de desumanização e naturalização da periclitação de suas vidas”, disse,
referindo-se à população negra e pobre.
“Tem
algo bem anterior, inclusive à própria ditadura, que é aquilo que marca essa
política criminal de encarceramento em massa: o racismo estrutural. A
desumanização de pessoas pobres e negras é algo que naturalizou historicamente
as práticas de tortura no Brasil desde a escravidão”, disse a advogada.
·
Controle externo
Em
relação aos mecanismos de prevenção e tortura no país, ela avalia que o
controle externo é fundamental para alcançar tal objetivo. “Sem controle
externo, não tem como combater ou prevenir. Porque, se existe a ideia de que
aquele local está longe do olhar do público, que ele não está sujeito a um
controle externo nem à fiscalização, você cria todas as condições para que a
tortura aconteça e para que não haja responsabilização, porque inclusive não
será sequer denunciada, nem conhecida”, finaliza.
Ela
ressalta a importância da atuação dos órgãos que estão previstos por lei para a
fiscalização da execução da pena, que são a Defensoria Pública, o Ministério
Público e poder judiciário. “É fundamental um trabalho sistemático e
qualificado de prevenção dessas práticas por meio da ação fiscalizatória, que é
você fazer as visitas não anunciadas, chegar de surpresa das unidades para ver
o que está acontecendo de fato”, citou.
Lembrando
do Robson, que foi amarrado por cordas, do Genivaldo, que foi morto após
asfixiamento no porta malas de uma viatura policial, das pessoas presas que
tiveram seus dedos quebrados, Lemos ressalta que é fundamental que os poderes
deem uma resposta à sociedade. “No caso do rapaz que foi acorrentado pelas mãos
e pés e carregado, já teve uma resposta muito ruim por parte das autoridades,
inclusive dizer que aquilo não é tortura, então isso já traz uma preocupação.”
“A
gente tem que pensar em ações de não repetição. As polícias precisam ter
protocolos, e também responsabilizarem seus agentes administrativamente a
partir desses protocolos. Porque, se existe um protocolo em uma polícia de que
é permitido acorrentar e carregar o sujeito daquela forma, esse protocolo
precisa ser revisto. E, se não existe, então precisa apurar e responsabilizar
[os agentes]”, disse.
Além
disso, a advogada avalia a necessidade de rever a forma que esses agentes estão
sendo formados “porque eles não estão fazendo isso a partir do nada, tem alguma
coisa institucionalmente que está sendo colocada para eles para atuarem dessa
maneira”.
Fonte:
Agencia Brasil
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