Um terço do milho crioulo do Semiárido está contaminado por
transgênicos
No ano em que se completam 18 anos da aprovação dos
transgênicos no Brasil, uma pesquisa inédita alerta para o avanço da
contaminação do milho crioulo do Semiárido nordestino com genes transgênicos.
O levantamento aponta que, de um total de 1.097 amostras analisadas,
provenientes de 138 municípios nordestinos, mais de um terço continha genes
transgênicos. Em alguns casos, revela o estudo, foram encontrados até sete
tipos de genes transgênicos diferentes em uma mesma semente.
Trocando em miúdos, o avanço na contaminação das
espécies crioulas com transgênicos reduz a agrobiodiversidade. Isso torna o
país mais vulnerável às mudanças climáticas, às pragas e às demais adversidades
que possam atingir as colheitas.
Se as espécies forem perdendo suas características
individuais, a tendência é que haja redução ou extinção das variedades
adaptadas naturalmente, com resiliência a determinados tipos de pragas ou
condições climáticas.
O resultado reflete um impacto relevante,
considerando que um dos potenciais brasileiros é a diversidade deste tipo de
grão. O Brasil possui 23 raças de milho e centenas de outras variedades do
alimento — “raça” é um conjunto de variedades de milho que possui parentesco
entre si. No entanto, segundo dados da Embrapa, 90% de
toda a cultura de milho no Brasil é transgênica.
Além disso, a região onde a pesquisa foi
desenvolvida, o Semiárido, possui espécies de milho endêmicas, ou seja,
exclusivas da região. Isso faz diferença porque aqui as chuvas se concentram em
apenas quatro ou cinco meses do ano — um padrão que tem sido alterado pelas
mudanças climáticas. Portanto, contar com espécies adaptadas à região aumenta
as chances de garantir a colheita.
De cara, os dados sinalizam um cenário de
insegurança alimentar decorrente da perda da biodiversidade combinada com o
avanço das mudanças climáticas.
De acordo com o coordenador Executivo do Centro de
Tecnologia Alternativa da Zona da Mata (CTA) e um dos autores do estudo,
Gabriel Fernandes, a contaminação cruzada entre genes, que acontece no campo, é
uma das questões mais graves.
“Esses lotes em que foram encontrados até sete
genes transgênicos não quer dizer que foram testados na mesma planta. À medida
que as sementes são liberadas para vendas ou distribuição, mas não há
monitoramento e fiscalização, dá margem para que novos cruzamentos possam
acontecer de forma aleatória. Existe um descontrole muito grande”, explica.
Ainda segundo o pesquisador, os dados evidenciam
uma injustiça em relação às pequenas famílias agricultoras, que fazem seleção,
armazenamento e troca de sementes crioulas. “As famílias agricultoras assumem
100% do ônus para evitar essa contaminação. Elas têm que lidar com os riscos e
prejuízos dessa contaminação descontrolada. Há grande incentivo ao agronegócio,
que se utiliza das sementes transgênicas, mas não há uma política que impeça a
contaminação”, reforça Gabriel.
De acordo com Gabriel, o ineditismo da pesquisa
está na amplitude e na metodologia, quando comparada às demais na literatura
acadêmica. “A pesquisa envolveu uma amostra grande de 1.097 variedades, em 10%
dos municípios de todo o Semiárido. Além disso, ela não foi realizada em
laboratório, mas em campo, no contexto real onde vivem as famílias, que
participaram diretamente do levantamento”, explica. Além do CTA, as
Articulações Semiárido Brasileiro (ASA) e Nacional de Agroecologia (ANA) e
Embrapa assinam a pesquisa.
Procurada pela reportagem da Mongabay, a Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) afirmou, por e-mail, que desconhece
pesquisa de contaminação do milho crioulo do Semiárido com genes transgênicos e
que, por isso, não iria se manifestar.
O órgão afirmou que “o monitoramento adotado
atualmente segue base científica e que é adotado quando um gene diferente é
inserido na planta”. Por fim, o mesmo e-mail informa que “os relatórios de
monitoramento ambiental apresentados até o momento não evidenciam danos
ambientais causados pelo milho.”
·
Como acontece a contaminação
Até 2020, a agricultora Suzana Silva, moradora do
Sítio Furnas, município de Montadas, também na Paraíba, recebia o resultado
negativo dos testes de transgenia. Os resultados eram uma conquista, levando em
conta que a agricultora vive cercada por um latifúndio, com áreas de cultivo
muito próximas das suas e onde não há fiscalização. Em 2022, ela descobriu que
o seu milho estava contaminado. Para a agricultora, a contaminação se deu por
meio de grãos de pólen do milho de um latifúndio localizado muito próximo do
seu cultivo.
“Tem um empresário aqui, um latifundiário que
planta muito [milho]. Não sei se o milho dele está contaminado, mas é possível,
ele planta muito. Assim fica difícil. O agricultor planta semente crioula, mas
os outros não plantam e aí fica contaminado. A gente pensa também nas consequências
depois para a saúde”, reclama.
Segundo Suzana, desde que ela recebeu resultado
positivo para transgenia, nunca mais colheu milho como antes. “O milho não tem
mais aquela produtividade. No ano que deu resultado transgênico, [a colheita]
só deu para ração animal. Antes eram grandes, agora as espigas são irregulares.
Eu não sei se é por causa das chuvas irregulares ou dos transgênicos”, explica.
Quando os transgênicos foram regulamentados no
Brasil, em 2005, já havia evidências do risco de contaminação cruzada. De
acordo com o geneticista, pesquisador e professor do Departamento de Fitotecnia
do Programa de Pós-graduação em Recursos Genéticos Vegetais da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), Rubens Nodari, já havia comprovações de que o
pólen da espécie transgênica poderia contaminar lavouras a alguns quilômetros
de distância.
“Os estudos comprovam que 0,2% de pólen de
transgênico pode viajar por quilômetros. De fato, isso é pouco. No entanto, se
levarmos em conta que o milho pode produzir cerca de 20 milhões de grãos de
pólen, aí sim, temos uma quantidade suficiente para contaminar outras plantas
até 3 km de distância”, explica o cientista.
·
O trabalho para evitar a
contaminação
Todos os anos, o agricultor Paulo Alexandre da
Silva, morador da comunidade Lagoa do Jogo, no Assentamento Oziel Pereira,
município de Remígio, na Paraíba, submete seu milho ao teste e se orgulha de,
até hoje, estar livre de contaminação. Segundo ele, o caminho para alcançar
esse resultado não é simples.
Para concentrar as espécies crioulas livres de
contaminação, ele criou um Banco Comunitário de Sementes, que reúne espécies
resgatadas, catalogadas e armazenadas. A ideia é que os agricultores locais
usem apenas as sementes do banco, garantindo que o cultivo seja feito apenas
com espécies locais e crioulas.
O agricultor Paulo Alexandre da Silva, de Remígio
(PB), exibe garrafa PET onde é armazenado o milho crioulo em seu banco de
sementes. Foto: José Edson Silva/AS-PTA
O assentamento possui 50 famílias, mas apenas 32
fazem parte do banco de sementes. A necessidade imediata de plantar, além da
falta de recursos, muitas vezes leva as famílias a usarem sementes distribuídas
pelo poder público ou adquirir sementes em armazéns, sem saber a procedência.
Paulo garante que essas são as principais portas de entrada dos transgênicos na
comunidade.
“Eu faço reunião com os agricultores para
sensibilizar sobre a contaminação com transgênicos. Faço troca, venda e até doo
as sementes do nosso banco para evitar que eles usem sementes contaminadas. Eu
faço cerca viva [para reter os grãos de pólen transgênicos] plantando
gliricídia, mandacaru, sabiá. Eu vim pra cá em 2002 já com a minha semente e
nunca deu contaminação”, explica.
De acordo com o agricultor, quanto maior a
variedade, mais chances de garantir a colheita, mesmo em ano de chuvas mais
escassas ou tardias. “Tem semente que é mais custosa [demora a brotar], tem
semente que é mais ligeira [brota mais rápido]. Essas sementes são adaptadas a
nossa região, então, mesmo em ano de seca, a gente tem boa colheita”, explica.
·
Cuidado coletivo com as
sementes crioulas
Os bancos de sementes dos quais os agricultores
Paulo e Suzana fazem parte integram um trabalho coletivo, que reúne 65 bancos
comunitários e um banco regional, em 13 municípios da região do Polo da
Borborema, no interior paraibano. O que mantém esse trabalho é a prática de
troca de sementes desenvolvida pelos agricultores há séculos.
Esses bancos dão suporte às famílias para disporem
de sementes adequadas às mudanças climáticas, que já atingem o Semiárido, assim
como garantir que elas não precisem buscar sementes de fontes desconhecidas,
elevando o risco de plantar uma espécie contaminada com transgênico.
Essa é parte de uma série de atividades adotadas
com o objetivo de evitar a contaminação com os transgênicos na região. Dentre
as demais ações, há também uma Comissão Territorial de Bancos de Sementes, que
se reúne com frequência para discutir temas de interesses dos guardiões de
sementes, nome dado a quem protege as sementes crioulas.
Outra ação é a campanha Não Planto Transgênicos
Para Não Apagar Minha História, que divulga informações didáticas,
sensibilizando pequenos produtores sobre o que é a transgenia e de que forma
ela compromete as sementes crioulas. A campanha passou a testar as sementes
crioulas e emitir um certificado, comprovando a ausência de contaminação.
Os agricultores do Polo da Borborema também criaram
sua própria marca de derivados de milho, produzidos apenas com sementes
crioulas e comercializados através da Cooperativa Borborema. Eles trabalham em
parceria com a AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, associação de
direito civil que auxilia os agricultores na preservação das sementes crioulas.
De acordo com Emanuel Dias, engenheiro agrônomo e
assessor técnico da AS-PTA, essa foi a alternativa adotada para evitar o
consumo dos transgênicos em produtos processados. “Eles criaram o Flocão da
Paixão, Xerém da Paixão, Fubá da Paixão e farelo para alimentação animal. Tudo
isso porque não adianta combater os transgênicos na roça e consumir o cuscuz
com milho pré-cozido transgênico.”
Fonte: Mongabay
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