sábado, 26 de agosto de 2023

Roberto Esposito: É fácil dizer totalitarismo

As palavras não são todas iguais. Algumas deslizam sobre as coisas, limitando-se a descrevê-las. Outras penetram na realidade, mudando os equilíbrios a favor de uns ou de outros. Criam novos hegemonias, ou sua ilusão. Por isso são disputadas, tornam-se terreno de uma batalha ideal que sempre é também política.

A primeira destas palavras, sobre a qual devemos focar a atenção, é o termo-conceito “totalitarismo”. Não por acaso foi frequentemente evocado pela direita italiana de governo como escudo protetor em relação ao pedido de corte das pontes com o fascismo: não com o fascismo como tal, foi respondido pelos seus expoentes, mas com todos os totalitarismos. Dando assim como certo o significado de uma categoria que é tudo menos neutra, aliás, desde sempre contendida por forças políticas rivais.

Cunhada pelos antifascistas italianos no início da década de 1920 contra o fascismo, foi depois apropriada por este - por Mussolini e por Gentile - é invertida num sentido positivo contra os seus adversários.

Retomada nas décadas de 1930 e 1940 na França, em função antistalinista, e na Alemanha em chave antinazista, encontrou, em 1951, uma acomodação poderosa no livro de Hannah Arendt sobre as Origens do totalitarismo numa análise comparativa de nazismo e stalinismo (Einaudi, com um ensaio de Simona Forte).

Traduzida para o léxico da ciência política por Carl Friedrich, Zbigniew Brzezinski e Raymond Aron, no período da guerra fria desempenhou uma função instrumental de carácter anticomunista, atraindo críticas não injustificadas. Levada por autores como Jacob Talmon e François Furet às origens da Revolução Francesa, ou até mesmo ao platonismo por Karl Popper, acabou por perder todo significado histórico e semântico, tornando-se uma forma, para quem a utiliza, de escapar a uma clara tomada de posição político-cultural.

Os problemas que levantou no debate mais recente são essencialmente dois: a relação com o fascismo e a conexão entre nazismo e comunismo. Quanto ao primeiro ponto, ainda no último livro Totalitarismo 100. Ritorno alla storia (Salerno, 2023), Emilio Gentile esclareceu de maneira definitiva a situação. Se por totalitarismo entende-se um sistema, numa sociedade de massas, que faz uso sistemático da violência e do terror, monopolizando os meios de comunicação, o fascismo constituiu o seu protótipo na Europa. Contra as tentativas de reduzi-lo a uma forma de cordial autoritarismo, deve-se dizer que penetrou profundamente na sociedade, na cultura e nas instituições italianas, corrompendo-as. É verdade que, no plano histórico, apesar das guerras coloniais de extermínio, manchou-se por crimes quantitativamente muito menores do que o genocídio nazista. Mas no plano paradigmático apenas o antecipou. Mesmo que não sejam a mesma coisa, sem fascismo não haveria tido o nazismo.

Mas precisamente no plano paradigmático - isto é, na sua essência "filosófica" - o nazi-fascismo é dificilmente comparável ao comunismo. Não pelo número de vítimas – as do stalinismo foram, aliás, maiores que as do nazismo. Mas pela radical diferença de suas linguagens conceituais. Aqui a categoria de totalitarismo evidencia os seus déficits mais vistosos. Não é à toa que livro de Arendt, ótimo na reconstrução do nazismo, é frágil na análise comparativa com o comunismo. E, por sua vez, os livros sobre o totalitarismo de Aron, Talmon e Furet, focados no comunismo, não falam de nazismo. Difícil homologar fenômenos históricos tão diferentes. Certo, não faltam ligações transversais – violência disseminada, terror generalizado, primazia do partido sobre o Estado (ao contrário do fascismo). Mas num quadro ideológico claramente diferente.

Enquanto o comunismo surge do seio da modernidade – da filosofia da história hegeliano-marxista – para o nazismo é diferente. Não nasce da extremização, mas da decomposição da cultura moderna. Não porque não contenha lascas, fragmentos, como demonstrou George L. Mosse, mas porque os traduz para uma linguagem completamente heterogênea ao léxico anterior. O comunismo “realiza” em formas paroxísticas uma tradição filosófica moderna – aquelas da igualdade absoluta. O nazismo rompe com ela em nome da absoluta diferença. E mais ainda: o comunismo tem a história como transcendental, a classe como sujeito, a economia como léxico. O nazismo tem como transcendental a vida invertida em morte, a raça como sujeito, a biologia como léxico.

Ambos perseguem uma visão científica doida, mas os comunistas identificavam-na com uma filosofia pré-determinada da história, os nazistas numa sobreposição entre raças humanas e animais.

O hierarca Rudolf Hess explicava que “o nazismo nada mais é do que biologia aplicada”. Hitler era chamado de "o grande médico alemão", porque afundava o bisturi no corpo daquele povo para expulsar o tumor que o devastava, identificado com o judaísmo. Como escreveu Emmanuel Levinas em 1934 em Algumas reflexões sobre a filosofia do hitlerismo, a essência do nazismo, diferente de qualquer outra ideologia, reside no encadeamento do espírito ao corpo: “O biológico, mais do que o objeto da vida espiritual, torna-se o seu coração”.

 

Ø  “Na Nicarágua, um regime de terror, prisão e ameaças foi estabelecido, muito mais severo do que o que existiu em El Salvador”, diz Jesús Bastante

 

O jesuíta espanhol José María Tojeira foi nomeado porta-voz oficial da Companhia relativamente à dissolução da congregação na Nicarágua. O ex-reitor da UCA de El Salvador nos recebe prontamente, preocupado com o destino de seus colegas e de suas obras. “A preocupação fundamental é a da expulsão ou mesmo da detenção. Dada a ausência praticamente total do Estado de direito na Nicarágua, tudo pode ser esperado”, diz-nos, nesta entrevista exclusiva ao Religión Digital.

Sem querer comparar a situação atual com o massacre dos jesuítas em El Salvador em 1989, Tojeira é enfático: “Na Nicarágua foi instalado um regime de terror, com prisões, confisco de bens, ameaças de vários tipos, expulsões do país muito mais severo do que em outros países. Certamente menos pessoas foram mortas, mas o controle do pensamento livre e da crítica, com seus mecanismos de banimento e confinamento, tem sido muito mais opressivo para a consciência do povo".

>>>> Eis a entrevista.

·         Você esperava que Ortega e Murillo dissolvessem a Companhia de Jesus na Nicarágua? O que significa esta decisão?

Primeiro um esclarecimento. A Companhia de Jesus tinha várias pessoas jurídicas na Nicarágua. Neste momento o governo anulou duas, uma relacionada com a Universidade e outra denominada Asociación Compañía de Jesús, proprietária do imóvel onde viviam os jesuítas que trabalhavam na Universidade e outro imóvel mais utilizado como residência de estudantes bolsistas. Esse estatuto jurídico também serviu para enviar fundos para a manutenção da enfermaria para idosos jesuítas que temos na Nicarágua. Como resultado disso, tivemos que transferir os jesuítas idosos (99, 91 e 85 anos) para El Salvador. Permanecem ativas e com os jesuítas trabalhando em suas respectivas obras outras três entidades jurídicas. Dois colégios e a organização Fe y Alegría continuam ativas, com os jesuítas atuando nelas.

·         Como estão os jesuítas que vivem na Nicarágua? Preocupado com sua segurança?

A preocupação fundamental dos Jesuítas é a da expulsão ou mesmo da detenção. Dada a ausência praticamente total do Estado de direito na Nicarágua, tudo pode ser esperado. Mas os jesuítas continuam no seu trabalho no meio das dificuldades. Neste momento, além dos idosos, há um jesuíta nicaraguense que foi impedido de regressar à Nicarágua (ex-reitor da UCA), o atual reitor da UCA, também nicaraguense, deixou o país, e um pároco jesuíta, assediado e ameaçado, também se saiu do país. Os restantes, cerca de 11, continuam trabalhando nas referidas mencionadas.

·         Quais passos serão dados a partir de agora?

Além de denunciar os acontecimentos ocorridos, estamos estudando possíveis denúncias em organismos internacionais, na ONU e na OEA, que zelam pelos direitos humanos, dada a impossibilidade de fazer reivindicações ou demandas judiciais dentro da Nicarágua. O problema não é apenas dos Jesuítas, mas da Igreja em geral. Dom Rolando Álvarez preso, as irmãs de Madre Teresa expulsas, padres e outro bispo, todos eles nicaraguenses privados da sua nacionalidade, ameaças contra congregações religiosas e apropriação dos seus bens, são parte da perseguição à Igreja. Tudo isto num contexto de perseguição também contra opositores políticos, defensores dos direitos humanos e jornalistas independentes.

·         Qual é a razão da escalada de violência e perseguição contra a Igreja na Nicarágua?

A escalada contra a Igreja é motivada pela defesa dos direitos das pessoas, pelos apelos da Igreja à paz e ao diálogo social e pela denúncia profética da repressão brutal às manifestações de protesto ocorridas em 2018.

·         Quando soubemos do confisco da UCA, muitos de nós pensamos no drama da UCA em El Salvador em 1989. Aconteceu-lhe o mesmo?

A situação da UCA de El Salvador em 1989 era diferente. Lá ocorreu mais um dos muitos massacres perpetrados pelo exército. Na Nicarágua, várias manifestações foram dissolvidas a tiros em 2018, mas depois se instalou um regime de terror, prisão, confisco de bens, ameaças de vários tipos, expulsões do país muito mais duro do que existia em outros países. Certamente menos pessoas foram mortas, mas o controle do pensamento livre e da crítica, com os seus mecanismos de banimento e confinamento, tem sido muito mais opressivo para a consciência do povo.

·         Você está esperando uma palavra do Papa Francisco?

Em relação ao Papa Francisco, sabemos da sua solidariedade conosco. No que diz respeito às palavras públicas, o Papa procura sempre que as suas palavras não tenham repercussões negativas nos países que mantêm dura repressão. Defendeu muito claramente Dom Álvarez, mas entendemos que para ele é difícil intervir publicamente nos conflitos, pelas consequências que podem ter para os outros. Para nós é suficiente saber que ele nos apoia, mesmo que não o diga em público.

 

Ø  Jesuítas reagem à sua dissolução na Nicarágua e acusam Ortega e Murillo de conduzirem o país a “um regime totalitário”

 

“Tudo visa o pleno estabelecimento de um regime totalitário no país”. Numa dura declaração, a Província Centro-Americana da Companhia de Jesus reagiu após o anúncio da dissolução da congregação na Nicarágua, numa manobra do casal Daniel Ortega e Rosario Murillo.

Segundo informou a província centro-americana, que nomeou o ex-reitor da UCA em El Salvador, José María Tojeira, como delegado junto à imprensa, a extinção da personalidade jurídica da Companhia de Jesus na Nicarágua implica a transferência de todos os seus bens ao Estado. Uma decisão que “foi tomada sem registro de que foram executados os procedimentos administrativos previstos na lei. Tal como aconteceu na maior parte dos mais de três mil casos semelhantes de cancelamento de personalidade jurídica levados a cabo pelo regime desde 2018”, lamentaram os jesuítas.

“A agressão injustificada continua” em um “contexto de total indefesa”, sem direito de defesa para os religiosos e “sem dar prazo razoável para recolher e retirar os seus pertences pessoais”, e “sem que exista um órgão judicial imparcial que julga e acaba com estes abusos de autoridade totalmente injustificados e arbitrários”.

Desta vez se dirigiram ao casal presidencial: Daniel Ortega e Rosario Murillo. Apelaram ao fim da repressão e à aceitação “da procura de uma solução racional em que prevaleçam a verdade, a justiça, o diálogo, o respeito pelos direitos humanos e o Estado de direito”.

Pediram também que “a liberdade e a integridade total dos jesuítas e das pessoas que com eles colaboram ou com quem colaboram” sejam respeitadas. É uma agressão que a Província Centro-Americana deplora e que constitui uma violação dos direitos fundamentais.

Condenam “esta nova agressão contra os jesuítas da Nicarágua. Considera-o enquadrado num contexto nacional de repressão sistemática qualificada como 'crimes contra a humanidade' pelo grupo de especialistas em Direitos Humanos na Nicarágua formado pelas Nações Unidas”.

Por fim, juntam-se “aos milhares de vítimas nicaraguenses que esperam que a justiça seja feita e que os danos que o atual governo nicaraguense está causando sejam reparados” e “agradecem as inúmeras expressões de reconhecimento, apoio e solidariedade que receberam diante desses ultrajes crescentes”.

 

Fonte: La Repubblica - tradução é de Luisa Rabolini, para IHU/ Religión Digital

 

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