Posseiros denunciam “vistas grossas” na fiscalização contra gigante
Agro Serra no Maranhão
Todos os anos, o inverno chega trazendo apreensão
àqueles que vivem e tiram seu sustento do Cerrado maranhense. O sol, mais
quente a cada temporada, seca as plantas e os cursos d’água. Mata os animais de
criação. Os ventos espalham a poeira dos canaviais. E o medo de novas queimadas
cresce entre as mais de 260 famílias que fazem do Parque Estadual do Mirador
seu lar.
Um medo mais do que justificado: em 2019, durante a
fase mais intensa da estiagem, a região sofreu incêndios massivos, que
atingiram um quarto da área total do parque, segundo dados da plataforma Alarmes, do Laboratório
de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(Lasa/UFRJ). Diante da falta de recursos para conter as chamas no local, uma
força-tarefa federal chegou a ser enviada no fim de agosto, como parte da Operação
Verde Brasil.
De acordo com o Boletim de Monitoramento de
Queimadas no Estado do Maranhão, elaborado pela Secretaria de Meio Ambiente (Sema), o Parque Estadual do Mirador vem sendo a unidade de conservação com
maior número de focos de incêndio no estado. Em 2022, foram mais de 490 focos
registrados. O ano passado foi também o período de maior dispersão das chamas,
que atingiram 211 mil hectares do parque – o maior índice da década.
De acordo com os dados de Conflitos no Campo
envolvendo o uso do fogo de 2019 até 2022, sistematizados pela Comissão
Pastoral da Terra (CPT) por meio do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno
(CEDOC – CPT) e analisados a partir das formulações da Articulação Agro é Fogo, quando observamos a distribuição geográfica das queimadas entre
os conflitos por terra, identificamos que nesse período essas violências
predominaram no Cerrado, com 39% das ocorrências, seguido da Amazônia, com 28%.
Todavia, se somarmos as áreas de Cerrado com suas zonas de transição (onde
também se localiza o Maranhão), nelas estão quase 56% de todos os conflitos
desse tipo.
Entre os grandes projetos de desenvolvimento, o
Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, conhecido como Matopiba, se localiza em
áreas de Cerrado e transições. Os municípios que compõem essa região totalizam
24% de todos os conflitos por terra envolvendo fogo entre 2019 e 2022. O
próprio Matopiba corresponde a 39% dessas violências no contexto do Cerrado.
Sobre quem foi afetado pelos conflitos envolvendo fogo, em 2022, há um destaque
importante para os/as posseiros/as como principais alvos de queimadas, em 30%
dos conflitos.
Boa parte desses casos se deve às queimadas que
afetaram pelo menos 36 comunidades do Parque Estadual do Mirador, no Maranhão,
onde as empresas que gerenciam a unidade de conservação fingem não existir
sujeitos que tradicionalmente cuidam, protegem e trabalham naquele território.
Mas, afinal, quem provoca as queimadas no Mirador?
Veículos de imprensa do Maranhão e informes da
própria Sema frequentemente atribuem a responsabilidade aos próprios moradores
do parque, que causariam os incêndios florestais devido ao manejo impróprio do
fogo para limpar pequenas áreas de roça.
Essa versão, no entanto, é contestada pelas
comunidades ouvidas pela reportagem do De Olho nos Ruralistas, que viajou à
região em 2022 e 2023. Segundo líderes locais, as queimadas são fruto da ação
de fazendeiros e empresários do Sul e Sudeste que atuam no entorno do parque.
Um deles, em especial, abordou a equipe durante as
filmagens — o observatório está fazendo um documentário na região — e disse que
o canavial poderia “pegar fogo” enquanto estavam lá. O nome desse fazendeiro é
Pedro Augusto Ticianel, usineiro e dono da Agro Serra.
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EMPRESA É CONHECIDA NA
REGIÃO, NEM TANTO NO RESTO DO PAÍS
A Agro Serra Industrial representa o caso curioso
de uma gigante do agronegócio relativamente desconhecida entre aqueles
que cobrem o setor. Com sede em São Raimundo das Mangabeiras e com mais de 30
anos de existência, a usina responde por 70% de toda a produção de etanol do
Maranhão, abastecendo 52% da demanda por biocombustíveis no estado. Além da
atuação no setor sucroenergético, o grupo planta soja, distribuindo mais
de 600 mil toneladas na região.
Em 2017, a Agro Serra bateu pela primeira vez a
marca de 2 bilhões de litros de etanol produzidos e consolidou sua expansão por
meio de uma sociedade com a gestora agrícola Brasil
Agro S/A., com quem administra a Fazenda Parceria IV, de 15
mil hectares, destinada ao plantio de cana. O negócio foi celebrado na época
pelo ex-governador maranhense Flávio
Dino – então no PCdoB, hoje no PSB. Hoje ministro
da Justiça, ele saudou a promessa de R$ 1,4 bilhão em investimentos na
ampliação da produção de etanol e posou para foto ao lado dos dirigentes das
duas empresas.
Fundada em 1986, a Agro Serra surgiu como um
desdobramento da Destilaria de Álcool Libra. Nos anos 70, o empresário paulista
Serafim Adalberto Ticianeli iniciou o plantio de cana na região de Diamantino
(MT). Os negócios de Serafim deram origem ao grupo, que ainda é tocado por
familiares do patriarca.
Na década seguinte, os negócios da família se
expandiram para o Maranhão, com a fundação da Agro Serra em São Raimundo das
Mangabeiras, ao lado do município de Balsas, no sul do estado. Para administrar
o negócio, Serafim nomeou seu irmão, Pedro Augusto Ticianel, que assumiu as
terras no Nordeste.
As mudanças na grafia do sobrenome, aliás, foram
comuns ao longo dos anos, variando entre Ticianeli, Tizianel e Ticianel, de
acordo com a época em que foram redigidos os registros judiciais e fundiários.
De modo geral, Pedro e sua família adotaram o Ticianel, enquanto os herdeiros
de Serafim mantiveram o Ticianeli.
Em 1994, com apenas 43 anos, Serafim, o fundador do
grupo, se atirou do 13º andar de um prédio do Brooklin, na zona sul de São
Paulo. A partir da tragédia, a família teve de se adequar: Pedro Augusto
continuou com os negócios no Maranhão, enquanto Cintia Cristina Ticianeli,
filha de Serafim, passou a integrar a diretoria da usina do Mato Grosso, com
apenas 20 anos.
Atualmente, é ela quem atua na linha de frente dos
negócios da família, tendo presidido o Sindicato dos Produtores de Cana, Açúcar
e Álcool do Maranhão e do Pará. Em 2003, Cintia deixou o cargo na usina do Mato
Grosso para assumir os negócios em Balsas, no Maranhão, trocando de função com
seu irmão, Celso Eduardo Ticianeli.
No Mato Grosso, Celso administra a usina ao lado de
um tio, Luiz Carlos Ticianeli, irmão de Pedro e Serafim. A terceira filha do
fundador, Claudia Maria Ticianelli Battistella, adotou o último sobrenome após
se casar com Rafael Ramos Battistella, neto do fundador do Conglomerado
Battistella, que envolve revenda de caminhões Scania, plantio, beneficiamento e
venda de móveis de madeira de pinho, e a administração do Porto de Itapoá (SC).
A empresa também vende ações na Bolsa de Valores.
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BASE DA SEMA FOI
INSTALADA EM FAZENDA DA AGRO SERRA
Um dos relatos mais comuns encontrados durante a
viagem ao Parque Estadual do Mirador é a de que os fiscais da Sema atuariam em
conjunto com a Agro Serra para perseguir os camponeses que moram na unidade de
proteção.
Abarcando dois terços da área do município de
Mirador, o parque abriga 260 famílias, divididas em mais de cinquenta povoados.
São, em sua maioria, pequenos agricultores, que chegaram à região na década de
1920 e que, a partir dos anos 70, tiveram de lutar contra a ação de grileiros
que tentavam lotear as terras na bacia do Rio Itapecuru. Na tentativa de
dirimir os conflitos agrários, o governo do Maranhão criou o parque em junho de
1980, sem, no entanto, garantir o acesso das posseiras e dos posseiros à plena
cidadania.
Segundo o relatório “Conflitos e lutas dos
trabalhadores rurais no Maranhão – Ano 2021”, publicado pela Federação dos
Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do
Maranhão (Fetaema), os conflitos reacenderam a partir de 2016, quando fiscais da Sema
passaram a agir de forma intimidatória contra as posseiras e os posseiros,
notificando-os para que removessem o gado – principal fonte de proteína para as
famílias da região – e as cercas das roças de mandioca de dentro do parque. Em
2020, foram realizadas operações contra a caça ilegal que, segundo os
moradores, usou de força desproporcional.
Uma das principais queixas das comunidades do
Parque Estadual do Mirador é a de que as autoridades fazem vistas grossas
quanto às denúncias de contaminação do Rio Itapecuru por agrotóxicos lançados pela Agro Serra, além de não atuarem contra a queima da
cana que ocasionam os incêndios florestais.
A relação entre Agro Serra e Sema é comprovada pela
instalação de uma base de apoio da secretaria dentro de um imóvel da família
Ticianel. Em 2021, o local sediou treinamentos de brigadistas para combater as queimadas, em parceria com o
Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão e a Defesa Civil.
A parceria entre o clã e o governo maranhense
também é vista e é expressa pela relação direta entre Pedro Ticianel e
Flávio Dino. Ocorre que o irmão do atual ministro da Justiça, Salvio Dino
Junior, advogou para a Agro Serra entre 2013 e 2015, em processos trabalhistas,
e anteriormente em 2008, em processo de matéria diversa. Além do encontro em
2018, Dino prestigiou os Ticianel em 2017, durante a inauguração da fábrica de calcário da família em São Raimundo das
Mangabeiras.
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CLÃ TICIANEL AVANÇA SOBRE
TERRA INDÍGENA
Por meio da subsidiária Agro Pecuaria e Industrial
Serra Grande Ltda. e dos CPFs de Pedro Augusto Ticianel e de seus filhos Túlio
Fraxe Ticianel, Anna Kelly Fraxe Ticianel Frota e Pedro Augusto Ticianel
Júnior, o grupo é dono de pelo menos 186,8 mil hectares de terras na região do
Parque Estadual do Mirador, divididos entre 66 fazendas, conforme dados do
Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Sigef/Incra).
Pelo menos sete fazendas estão sobrepostas à Terra
Indígena Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, conforme revelado pelo dossiê “Os
Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais
sobreposições em terras indígenas”, publicado em
abril pelo De Olho nos Ruralistas.
São as Fazendas Estiva e Romaria, em nome da Agro
Serra Industrial, que somam 12.270 hectares incidentes em território Kanela;
além das Fazendas Irajá/Cacimbas e Jacaré, em nome de Pedro Augusto Ticianel;
Tucum e Descanso, de Cintia Cristina Ticianel; e Olho D’Água, de Celso Eduardo
Ticianel. Ao todo, o clã possui 21.036 hectares dentro da TI Porquinhos, o que
equivale a 7% de toda a área delimitada desde 2009 para reestudo.
De Olho nos Ruralistas procurou a Agro Serra para
comentar os dados, porém não obteve retorno até o fechamento da reportagem.
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HISTÓRIA VAI DA LAVA JATO
À PRISÃO DE GOVERNADOR
Apesar desse enorme estoque de terras no Maranhão,
a família enfrenta um longo processo de recuperação judicial, oriundo das
dívidas adquiridas pela Destilaria Libra junto ao Banco Pan. Ao lado da
Odebrecht, a Agro Serra é uma das empresas citadas nas denúncias de conflito de
interesses ligadas à passagem do ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro
pela consultoria Alvarez & Marsal, conforme revelado pelo UOL. O grupo maranhense pagou R$ 120 mil à firma estadunidense para que
conduzisse seu processo de recuperação judicial em 2017, pouco após ter sido
citada na Operação Lava-Jato, em um esquema que envolveu o pagamento de propina
para a liberação da Ferrovias Norte-Sul e da Integração Oeste-Leste.
Origem das dívidas, a Destilaria Libra conecta os
Ticianel a outro grupo político. A usina pertence à Libra Etanol Participações
Societárias, composta pelo irmão de Serafim Ticianeli, Luiz Carlos Ticianel,
pela viúva Izelia Ticianeli, pelo gerente operacional da destilaria Pedro Aires
e por Piero Vincenzo Parini.
Parini já presidiu o Sindicato das Indústrias
Sucroalcooleiras do Estado de Mato Grosso (Sindalcool-MT), e em 2017 foi citado
em termo de ajustamento de conduta da Odebrecht, como responsável pelo
recolhimento de propina junto ao setor sucroalcooleiro, entre 2012 e 2013, em
nome do antigo Secretário da Fazenda do Mato Grosso, Marcel De Cursi – preso em
2015 ao lado do ex-governador Silval Barbosa (MDB) e condenado a treze anos de
prisão.
Da corrupção às queimadas, da política à tomada do
território, histórias como as do grupo Agro Serra e da família Ticianel se
repetem pelo país e passam frequentemente despercebidas pelo grande público. O
fogo que devasta o Cerrado — e a Amazônia, o Pantanal e o Pampa — tem nome e
CNPJ. Para combatê-lo, não basta apagar as chamas a cada ano. É necessário
identificar e responsabilizar seus perpetradores — diretos e indiretos — e
mapear suas conexões com o poder político e econômico.
A Agro Serra não opera sozinha. O conglomerado se
insere em um grande complexo do agronegócio, que inclui outros gigantes como
BrasilAgro, Raízen (joint venture entre a sucroalcooleira brasileira Cosan e
petroleira holandesa Shell), Petrobras e Grupo Ipiranga, além do próprio
governo do Maranhão. E que também inclui entidades de classe, sindicatos rurais
e lobistas. Para entender a real disparidade de poder entre as comunidades
atingidas e os empresários que as assediam, é preciso observar o contexto em
que eles atuam, para além do território.
Por fim, em um momento de retomada das políticas
ambientais de prevenção ao desmatamento e às queimadas, precisamos, mais do que
nunca, fomentar o debate público sobre as causas estruturais da devastação de
nossos biomas. Quando, senão agora, teremos a oportunidade de questionar o
modelo produtivo expansionista do agronegócio? Até quando nos contentaremos em
punir os jagunços e não os mandantes? Quantos mega-incêndios mais iremos
assistir até entendermos que o caminho que trilhamos nos levará
irremediavelmente à destruição — para o lucro de alguns poucos latifundiários e
seus aliados em Brasília e na Faria Lima?
Fonte: De Olho nos Ruralistas
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