O que Bolsonaro, Moro e a excludente de ilicitude têm a ver com chacina
no Guarujá
Por mais que o governador de São Paulo, Tarcisio de
Freitas (Republicanos), esteja “extremamente satisfeito” com a Operação Escudo,
da Polícia Militar, em resposta ao assassinato de um agente da Rota, no
Guarujá, novas informações conferem a ela não uma resposta das autoridades, mas
ação de vingança e retaliação respaldada pela excludente de ilicitude.
Um homem indicado em boletim de ocorrência como
indigente se tornou a 16a vítima fatal da Operação Escudo ao ser cravejado de
tiros de fuzil e pistola na tarde desta segunda-feira (1) no bairro Sítio da
Conceiçãozinha, confirmando denúncia de moradora da região ouvida pelo GGN.
Conforme apuração do jornal Folha de S. Paulo, moradores
testemunharam a polícia colocando armas no local da ocorrência e ameaçando os
presentes a confirmarem a versão de que o homem estava armado atacando os
policiais primeiro, que foram obrigados a revidar.
“Estávamos com o PSDB e agora estamos com esse
governador que parece ser pior, querendo transformar a polícia em milícia. A
situação no Guarujá está agora se transferindo para os morros de Santos”,
denuncia ativista de direitos humanos na segurança pública que pediu para não
se identificar.
Ainda nesta segunda (1) outro homem chamado Evandro
Silva Belém foi morto no bairro Pae Cara pelo Batalhão de Operações Especiais
da Polícia, o mesmo a qual pertencem os soldados envolvidos na ocorrência da
morte do homem indicado como indigente.
• Excludente
de ilicitude
Nas delegacias, se apresentando para a confecção da
ocorrência, os policiais militares reproduzem um discurso com ares de ensaio: o
homem atirou contra eles. As respostas da Secretaria de Segurança Pública e do
próprio governador parecem também ensaiadas: se houver excesso, vamos punir os
responsáveis.
As ocorrências com morte da Operação Escudo têm
sido enquadradas pelos boletins na chamada excludente de ilicitude, previsto no
artigo 23 do Código Penal, que exclui a culpabilidade de condutas ilegais em
determinadas circunstâncias. Os policiais mataram porque estavam se defendendo.
Conforme o artigo do código penal, “não há crime
quando o agente pratica o fato: em estado de necessidade; em legítima defesa;
em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.
O parágrafo único diz: “O agente, em qualquer das
hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”. Ou seja,
caso ocorram excessos, eles estão, em tese, justificados, sobretudo para as
autoridades que entendem que a polícia apenas deu uma resposta à altura.
• Aliança
Moro e Bolsonaro pela excludente
O pacote anticrime do então ministro da Justiça,
Sérgio Moro, sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro, em 2019,
acrescenta a esse artigo 23 que: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou
deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou
violenta emoção”.
Os críticos do projeto afirmam que essa proposta
representa uma espécie de carta branca para policiais matarem. O ministro Moro,
em artigo publicado na imprensa, negou que essa interpretação seja verdadeira.
Segundo ele, o texto apenas descreve “situações de
legítima defesa” e “reconhecendo que quem reage a uma agressão injusta pode
exceder-se”. A ampliação da excludente de ilicitude foi uma das promessas de campanha
de Bolsonaro.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, em 2022, uma a cada cinco mortes violentas e intencionais no Estado de
São Paulo foi praticada por agentes de segurança pública. Em 2021, mais de 6
mil pessoas foram mortas por forças policiais no país: 12,07% de todas as
mortes violentas intencionais.
‘Vivemos
um momento de revanchismo’, diz advogado sobre chacinas em operações da polícia
Em um intervalo de uma semana, 45 pessoas morreram
durante operações policiais nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia.
Na Baixada Santista, no litoral paulista, até o momento foram registradas 16
mortes.
A ação tem sido classificada por analistas como
“revanche” das forças policiais. A Operação Escudo, como é chamada oficialmente
em São Paulo, começou na sexta-feira (28) em reação à morte do soldado da PM,
Patrick Reis. Após os primeiros registros de morte na operação, o governador do
estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), disse que estava ‘extremamente
satisfeito’ com o resultado das incursões policiais.
O Alto Comissariado da ONU emitiu um comunicado
nesta quinta-feira(03) em que define esta semana como a mais sangrenta dos
últimos anos no Brasil e pede que o país avance numa investigação imparcial
sobre os possíveis excessos cometidos nestas operações.
O diretor-adjunto da Conectas Direitos Humanos,
Marcos Fuchs, analisou a situação ao longo dessa semana e afirmou que o país
vive um momento delicado. Ele acredita que há um descompasso entre os governos
e as tropas nas ruas e que é necessário pensar uma polícia mais aliada da
comunidade.
“Eu acho que nós estamos vivendo um momento muito
delicado. Um momento de revanchismo, de uma violência policial desproporcional
e por isso toda cautela é necessária”, afirmou.
Fuchs participou ao vivo do programa Central do
Brasil desta sexta-feira(04) e analisou pontos que atravessam essa onda
violenta, como o racismo estrutural no país e o perfil das forças policiais.
“O diálogo com as polícias precisa ser repensado.
Existe um descompasso entre o executivo está comandando e o que chega nas
polícias. Precisamos de um reforço de direitos humanos, uma formação mais
intensa na academia de polícias, um reforço de cidadania na preparação de novos
policiais. Acho que seria um bom começo”, analisou, ponderando que a análise
não se trata de um perdão aos criminosos.
“Não estamos defendendo a impunidade. Aquele que
cometeu crime tem que ser preso, tem direito a ampla defesa, tem que ser
denunciado, julgado e ter sua pena cumprida. Mas dentro da lei”, afirmou.
"Lógica
da polícia de atirar para matar é revertida em voto", diz professor
Uma operação policial deflagrada na sexta-feira
passada (28/08) para buscar responsáveis pela morte de um policial militar
deixou pelo menos 16 mortos no Guarujá, no litoral paulista. Também nos últimos
dias, outra incursão policial em uma favela no Rio fez dez vítimas. Na Bahia,
pelo menos 20 pessoas morreram em três operações policiais distintas.
Em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas
pronunciou-se logo após a operação, exaltando a atitude dos policiais e dizendo
não ter havido "excessos", mesmo com a alta letalidade. À frente da
secretaria de segurança do estado e chefiando as polícias está Guilherme
Derrite, um ex-policial da Rota, grupo de elite da Polícia Militar (PM)
paulista com um histórico de mortes em operações.
Para Wallace Corbo, professor de direito
constitucional da FGV Direito Rio e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), a atitude de Tarcísio é uma repetição do que foi visto no Rio nos últimos
anos: substituição de políticas públicas de segurança pública por operações
policiais.
Segundo o especialista, essas ações de alta
letalidade – tanto de civis quanto de agentes – não contribuem para a
diminuição da criminalidade, mas têm um efeito político claro.
"A pauta da segurança pública pela violência
se politizou. Virou uma grande bandeira. Porque o show e o espetáculo da
operação, a lógica que a PM está atirando pra matar, é revertida em votos para
um eleitorado que confunde segurança pública com operação policial", diz
em entrevista à DW.
• O que
o resultado letal dessas operações mostra sobre a forma de agir da segurança
pública brasileira? Estamos combatendo o crime de forma efetiva?
Wallace Corbo: Essa lógica de enfrentamento não é
pautada numa lógica de inteligência. Não existe nesses estados uma prioridade
do planejamento e das ações de inteligência que tenham como objetivo
desestruturar grandes operações criminosas.
A preocupação com a preparação da Polícia Civil,
que é responsável pela investigação, é deixada de lado em função da lógica de
"enxugar gelo": incursão, apreensão de um pequeno número de drogas e
armas e retirada – e repete-se isso.
Falta, na política de segurança pública desses
estados, uma lógica de desestruturação das organizações criminosas. É uma
lógica de política pública que não é voltada à promoção da segurança pública,
mas à manutenção do status quo de territórios ocupados. Isso acaba vitimizando
tanto os policiais, que são submetidos a essa lógica, que estão expostos ao
risco de morte, quanto a população civil que mora nesses territórios onde
acontecem essas operações, que não têm nenhum acesso ao mínimo de condições: as
escolas fecham, os hospitais estão sujeitos a tiroteio, o trânsito é limitado e
a circulação são limitados.
É feita uma operação policial, são mostrados os
policiais atuando e que morreram várias pessoas, para prestar contas da
segurança, mas não se resolve o problema. É um teatro da violência, mas é um
teatro trágico, porque não são atores, são pessoas que têm famílias e acabam
mortos. Isso tem gerado resultado? Não tem. Os números de operações são altos
há décadas, a quantidade de mortos em enfrentamentos com a policial é alta, mas
não é possível dizer que a maior parte deles são criminosos, que não sejam os
chamados efeitos colaterais. Mas, mesmo que fossem [criminosos], a
criminalidade não diminui.
• Mesmo
assim, não é raro encontrar vozes apoiando esse tipo de prática da polícia.
Muitas pessoas acham que uma polícia que mata "bandidos" é algo bom e
eficiente, mesmo em um país que não prevê a pena de morte. É possível mudar
esse tipo de percepção?
Sim, porque é uma percepção construída. Isso foi,
nos últimos cinco anos, muito fortalecido pelo discurso político. As pessoas
não começaram a acreditar que tiroteio é algo que é positivo do nada. Isso veio
e vem com apoio de líderes e o apoio institucional de diferentes governos. E da
cultura também, com glamourização de operações policiais em filmes e novelas.
Se essa percepção foi construída, é possível pensar
em políticas públicas para desmobilizá-las, em começar a expor as perdas que
são geradas com essas operações. A imprensa exerceu um papel, nos últimos anos,
de ir atrás e descobrir quem são as vítimas – e crianças que são mortas são
rapidamente demonizadas em grupos de WhatsApp, e a imprensa descobre que elas
estavam indo estudar, que um menino que morreu era um músico e estava indo
tocar seu instrumento.
Além disso, o governo tem um papel relevante, de
olhar para os policiais, para os agentes de segurança, e atender às
necessidades deles. Não estou falando só de salário, mas de necessidade
psicológicas – eles não têm atendimento psicológico no Rio, por exemplo. Há
polícias com altos índices de suicídio, de depressão, e [os policiais] vão para
uma favela, dar tiro e talvez morrer, porque não estão com preparo psicológico
para essas situações.
É possível combater esse discurso à medida que
existam políticas públicas que organizem isso, à medida em que a comunicação
com a sociedade mude, não só na imprensa, mas no governo, para deixar claro que
não existe democracia e direitos se o tempo todo a metade da população está com
medo de sair de casa porque pode levar uma bala perdida.
• Em
São Paulo, o governador disse não ter visto excesso da polícia no Guarujá e
comemorou a operação. O secretário de segurança, que comanda as PMs do Estado
de São Paulo, é um ex-policial da Rota, conhecida pela violência, que chegou a
ser deputado federal. Qual o significado político dessas ações policiais de
alta letalidade? É uma forma de acenar ao eleitorado mais radical?
A pauta da segurança pública pela violência se
politizou. Virou uma grande bandeira. Porque o show e o espetáculo da operação,
a lógica que a PM está atirando pra matar, é revertida em votos para um
eleitorado que confunde segurança pública com operação policial.
O Tarcísio está só repetindo a história, cortando
para São Paulo o que era comum no Rio. Não só o [ex-governador] Wilson Witzel,
em 2020, quando ele fala do "tiro na cabecinha", o Tarcísio também
está reencenando o teatro que o [atual governador] Cláudio Castro fez, quando
logo depois de uma chacina, os chefes da Polícia Civil e Militar foram a
público dizer que aquilo estava certo e quem criticasse estava do lado dos
traficantes e do crime.
Nessa lógica, se quem critica a polícia é vilão e
inimigo, aí o estado tem mesmo que entrar para matar. É um uso político do
discurso de morte. É preocupante porque o que essas operações têm feito não é
reduzir nem estabilizar os índices de criminalidade, mas muitas vezes
aumentá-los.
Posso ter um grupo de tráfico que perde, mas o que
estamos vendo no Brasil é uma expansão do controle de milícias, que é um modelo
muito próprio do Rio que está se expandido. E essas operações estão servindo
para assegurar o ganho de território de outro grupo criminoso, mesmo que o PM
que entre ali não saiba disso.
• Muito
se diz que as mudanças necessárias na polícia passariam pela mudança na
formação dos oficiais, com maior foco em questões como direitos humanos e
racismo, por exemplo. Ou pela melhor atuação do Ministério Público na
fiscalização. Esse cenário é possível? Existe apoio para que algo assim
aconteça dentro dessas instituições?
O problema das perspectivas de curto ou médio prazo
é que todas a estruturas políticas e institucionais já estão imersas, no geral,
nessa lógica de insegurança pública, de violência. Isso vai significar que
dentro da polícia a resistência é enorme em mudar, porque os policiais se veem
como vítimas porque eles estão se expondo e não vão aceitar críticas.
O Ministério Público também não tem atuado
adequadamente no controle externo das polícias, que é algo que deveriam fazer,
mas que é insuficiente por motivos diversos; os governos locais não têm
interesse em mudar porque isso é convertido politicamente em votos – os
deputados contra essa política são taxados por defensores de bandido e perdem
voto.
Mas um dos caminhos abertos e que pelo menos está
atacando esse problema no Rio e pode servir de parâmetro é a discussão que vem
sendo levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2019 – a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 672, conhecida como ADPF das Favelas.
Essa foi uma ação ajuizada exigindo que o estado
tivesse uma política de segurança estruturada ao redor da redução de letalidade
e promovendo apoio aos policiais e para os direitos humano. Porque o grande
problema não é só que as operações policiais não dão certo, mas que não existem
políticas de segurança pública propriamente.
Primeiro, o Supremo suspendeu as operações
policiais durante a pandemia, depois obrigou estado do Rio a apresentar um
plano – e o estado tem se rejeitado a fazer isso, mas é uma via possível para
se discutir a questão.
Se o STF for bem sucedido em desmobilizar essa
lógica de política de enfrentamento de "enxugar gelo" no Rio, se for
capaz de impor o estado a criar um plano de segurança pública e se isso for bem
sucedido, aí sim há uma chance, no curto e médio prazo, de outros estados serem
compelidos a fazer as mesmas coisas.
Mesmo que politicamente não seja visto de forma
positiva pela população, se houver uma melhora na segurança pública a partir
dessa ação e outras que possam vir, temos um caminho.
Segurança
pública falha é obstáculo a sociedade civilizada. Por Alexander Busch
Nós acabávamos de passar cinco semanas viajando
pela Europa, sobretudo pelo norte da Itália e pela Alemanha. Nesse período, nem
uma única vez ouvimos falar que alguém tivesse levado tiros, sido assaltado ou
vítima de algum tipo de violência.
Mal chegados à Bahia, o quadro mudou radicalmente:
primeiro constatamos que a nossa comunidade é a quarta em que há mais
assassinatos no Brasil. Num ranking mundial, ela estaria definitivamente entre
as dez cidades mais violentas do mundo. Mas isso não é tudo: das dez cidades
brasileiras com taxas de homicídio mais altas, seis ficam na Bahia. Duas se
situam na minha vizinhança imediata, duas outras só um pouco mais distante.
Há muito estamos acostumados com um aumento da
violência no país durante e em torno das eleições. É comum as gangues aproveitarem
o vácuo da transmissão de poder para acertarem as contas entre si. Os clãs,
milícias, narcos – ou seja, todo o crime organizado – precisam se arranjar com
os novos mandatários na política e nas forças de segurança, e vice-versa. Isso
pode levar tempo.
• Segurança
pública não é prioridade
Mas desta vez, nunca vimos uma onda de violência
tão forte assim. No domingo, a polícia alvejou "sem querer" um menino
de dez anos nas proximidades de uma "boca de fumo", a menos de dois
quilômetros da nossa casa. Desde então, residentes revoltados ocupam
diariamente a rua multipista por meio dia, resultando em numerosos assaltos aos
automóveis e estabelecimentos comerciais da área.
Ao mesmo tempo, voltaram a chegar más notícias do
Pelourinho, o bairro antigo de Salvador, uma das principais atrações turísticas
do Brasil: mais uma vez uma família de turistas estrangeiros sofreu um assalto
violento. Nos últimos tempos isso se repete quase toda semana.
O que são telefones celulares e mochilas roubadas
contra os 598 seres humanos assassinados no primeiro semestre na Grande
Salvador? Comparando: em Berlim, com uma população comparável, houve em 2022 59
homicídios – o recorde de uma década.
Mas essa violência tem a mesma raiz: há muitos anos
os governos não têm nenhum plano para combater a criminalidade absurdamente
alta, nenhum político mostra interesse em se destacar com uma iniciativa
assim.. Nem mesmo um presidente de extrema direita como Jair Bolsonaro
perseguiu um projeto de segurança – a menos que se queira interpretar como
"projeto" o seu armamento da sociedade civil.
Mas tampouco o recém-empossado governo Lula
conferiu prioridade máxima à segurança, nem durante a campanha eleitoral, nem
agora. Parece que também ele se conformou com a falta de segurança. Na Bahia, o
governo federal acaba de doar novas viaturas policiais, e ministros discursaram
sobre a má integração dos jovens como raiz da violência.
E no entanto é óbvio, e qualquer brasileira ou
brasileiro assinaria embaixo: a segurança pública deficiente é o maior obstáculo
para o país no sentido de uma sociedade civilizada e bem-sucedida.
Fonte: Jornal GGN/Brasil de Fato/DW
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