O grupo religioso internacional acusado de abusos sexuais no Peru
Dois investigadores do Vaticano iniciaram nesta
terça-feira (25/7), em Lima, no Peru, uma auditoria sobre o grupo católico
Sodalício de Vida Cristã, organização acusada de abuso sexual e psicológico
contra menores e corrupção.
Neste artigo, publicado originalmente em 2016,
contamos o que é o Sodalício de Vida Cristã, como foi formado e do que é
acusado*.
O grupo religioso peruano Sodalicio de Vida
Cristiana (Sodalício de Vida Cristã, no Brasil) foi fundado em 1971, tem mais
de 20.000 seguidores em 25 países e foi oficialmente reconhecido pelo Papa João
Paulo II em 1997.
Atualmente, seus membros enfrentam acusações de
abuso psicológico, físico e sexual contra menores e o Ministério Público
peruano começou a investigá-los em outubro de 2015.
A investigação começou logo após a publicação do
livro Meio monges, meio soldados, escrito pelo jornalista peruano Pedro Salinas
em colaboração com a jornalista Paola Ugaz.
O texto reúne 30 depoimentos de abusos ocorridos ao
longo de quase 30 anos, nos quais as supostas vítimas - que não foram nomeadas
- apontam para o fundador do movimento, o leigo Luis Fernando Figari Rodrigo, e
outros dirigentes da organização.
Desses depoimentos, cinco narram episódios de abuso
sexual. Destes últimos, três apontam o fundador Figari como autor do crime.
Os três apresentaram seus casos ao Vaticano em
2011, mas por muitos anos não obtiveram resposta, conforme confirmado à BBC
News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, em 2016 por Paola Ugaz e a ex-irmã
sodálita Rocío Figueroa, que os ajudou a apresentar os casos.
Embora o grupo tenha admitido que houve abusos
individuais de tipo físico e psicológico - mas não sexuais -, nega que sejam
práticas estendidas a toda a organização.
• Obediência
absoluta
O Sodalício foi fundado há 45 anos com o nome de
Sodalitium Christianae Vitae, em homenagem à sodalidade ou à ideia de
fraternidade entre os maristas.
Foi criada como uma sociedade de vida apostólica,
isto é, como um grupo formado por leigos e sacerdotes consagrados que vivem em
comunidades ou casas compartilhadas entre si e realizam tarefas de
evangelização.
Um ex-integrante, Martín Scheuch, disse à BBC que
nos primeiros anos os membros do movimento liam livros fascistas.
O livro Meio monges, meio soldados afirma que um
dos autores lidos foi José Antonio Primo de Rivera, fundador da organização
espanhola de inspiração fascista Falange Espanhola.
Scheuch relembrou ainda que uma das principais
ideias com as quais o Sodalício surgiu foi a de que seus membros praticassem a
obediência absoluta, em termos de horários, atividades, leituras, modo de
vestir e até estudos profissionais.
Figari, diz, costumava repetir uma frase que
ilustrava o conceito: "Quem obedece nunca erra".
Rocío Figueroa, uma ex-irmã sodálita, comenta que
esse conceito lhe parecia "super perigoso" porque fazia "perder
a capacidade crítica" e assim "os superiores podiam mandar qualquer
estupidez".
Fernando Vidal, porta-voz do Sodalício, disse à BBC
que no início, quando os Sodalits eram muito jovens, eles tomavam como
referência velhos costumes da época.
Mas garantiu que nunca houve restrição ou proibição
de leituras para os congregados, mas sim "recomendações durante o
treinamento".
Ele acrescentou que Primo de Rivera era apenas um
dos muitos autores que liam. "O Sodalício é uma instituição religiosa, não
política", disse ele.
O Sodalício se estendeu do Peru ao Brasil,
Colômbia, Chile, Argentina, Equador, Costa Rica, Estados Unidos e Itália.
Agora a "Família Sodalita" (que também
agrupa leigos não consagrados) inclui mais de 20.000 pessoas em 25 países.
O grupo desfruta da lei canônica desde 1997, quando
João Paulo II era papa.
• Dormir
em uma escada
Em 2000, a ordem começou a aparecer na imprensa
peruana por motivos não religiosos.
Naquele ano, José Enrique Escardó Steck publicou
uma série de colunas na revista peruana Gente, nas quais relatava os abusos
psicológicos e físicos que diz ter sofrido durante o ano em que viveu nas
comunidades do Sodalício.
Durante esse tempo, diz ele, seus superiores o
obrigaram a dormir por um mês em uma escada e comer pudim de arroz com ketchup.
Além disso, garante que o intimidaram com uma faca
no pescoço e o esconderam no banheiro comunitário quando sua mãe foi visitá-lo.
Fernando Vidal não nega testemunhos como os de José
Enrique Escardó.
"Acho que em situações como esta muitas coisas
se juntam: os defeitos e problemas do senhor Figari, o contexto sócio-cultural
dos anos 60 e 70, a juventude e a inexperiência de quem iniciou este
caminho", disse.
Assegurou que este tipo de prática,
"independente de ser verdadeira ou não", não é realizada "há
muitos anos em nenhuma das comunidades do Sodalício".
O porta-voz do grupo reconheceu que estes casos de
abuso físico e psicológico são "inaceitáveis", mas disse tratar-se de
casos individuais: "Temos a certeza de que foram acontecimentos isolados,
limitados. Lamentáveis e inaceitáveis".
No entanto, ele aceitou que eles devem fazer
mudanças em sua instituição e que estão "tomando consciência" dos
"fracassos": "O Sodalício não se reduz a reclamações. Há muita
gente boa e generosa".
José Enrique também contou suas experiências em um
programa jornalístico da televisão peruana em 2001, mas a imprensa logo
esqueceu o assunto.
• Um
menino nu em um hotel
Até 2007. Em outubro desse ano, a polícia encontrou
o então pupilo Daniel Murguía em um hotel com um menino de 11 anos, de quem ia
tirar fotos nuas.
Murguía Ward era muito próximo de Figari, o
fundador da organização, conforme confirmado à BBC por sua própria irmã,
Patricia Murguía.
Dois dias depois da prisão, o grupo Sodalício
anunciou que estava expulsando Daniel Murguía por "esta situação, até
agora totalmente desconhecida para nós, que consideramos totalmente
inaceitável, e que surpreendeu e atingiu dolorosamente toda a nossa
comunidade".
Após o episódio do hotel, Daniel passou um ano e
meio preso.
Três anos depois, tudo parecia seguir na
normalidade. Até que no final de 2010, Figari surpreendentemente renunciou ao
cargo de superior do movimento após 39 anos e "por motivos de saúde".
Nesse mesmo ano, foi suspenso o processo de
beatificação de Germán Doig Klinge, Vigário Geral do Sodalício, falecido em
2001.
Em fevereiro de 2011, o jornal peruano Diario 16
publicou alguns testemunhos de abuso sexual que apontavam o candidato a beato
como autor do crime.
O Sodalício teve que reconhecer esses testemunhos
como o verdadeiro motivo que os levou a interromper o processo de beatificação
de seu ex-líder.
O livro Meio monges, meio soldados recolhe o
depoimento de quem afirma ser uma das vítimas de Germán Doig.
"Ele era muito carinhoso", diz. Afirma
que "segurava sua mão" e o abraçava nas salas privadas onde
realizavam suas sessões de aconselhamento espiritual.
Nessas sessões, diz, eles ficavam nus para fazer
exercícios de energia e Doig o masturbava.
Outra vítima afirma que, nessas sessões, Doig pediu
que ele o penetrasse, como forma de "experimentar e ajudar outros",
conforme indicado no livro.
Outro dos testemunhos pertence a Rocío Figueroa,
uma ex-integrante, que garante que Doig tocou em seu seio em uma "sessão
de ioga".
• O visitante
do Vaticano
Em abril de 2015, antes da publicação do livro Meio
monges, meio soldados, a Igreja Católica nomeou o padre peruano Fortunato Pablo
Urcey como "visitante" das casas do Sodalício.
Em suas palavras, sua função seria “coletar
informações sobre o modo de vida do Sodalício e a autoridade de Luis Fernando
Figari”.
Embora tenha admitido que perguntou aos membros
sobre os testemunhos de abuso, ele diz que investigá-los não era seu objetivo.
Fortunato Pablo foi a todas as casas do Sodalício
no Peru e conversou com seus membros. Ele garantiu que “almoçou e compartilhou
a Eucaristia com eles”.
Mas o padre disse à BBC em 2016 que não havia lido
o livro completamente porque teve que avaliar a "motivação" dos
autores ao publicá-lo.
Com base no relatório do visitante, o Vaticano
decidiria se enviaria um investigador formal.
• Testemunhos
contra o fundador
Mas o escândalo não parou por aí. Em agosto de
2011, poucos meses depois de publicar a informação sobre Germán Doig, o jornal
peruano Diario 16 publicou depoimentos de abuso sexual envolvendo o próprio
Figari, o fundador.
Segundo o livro Meio Monges, Meio Soldados, um
ex-Sodalit acusa Luis Fernando Figari de lhe mostrar revistas pornográficas e
lhe pedir que se sentasse sobre uma madeira.
Outra das vítimas aponta no livro que, quando tinha
17 anos, Figari lhe disse que era hora de "abrir o terceiro olho para ver
melhor as auras e que despertaria sua 'kundalini' depositando seu sêmen".
Na época, o Sodalício e Figari negaram as
acusações.
Após sua aposentadoria em 2010, Luis Fernando
Figari viveu entre Lima e Roma até se estabelecer na capital italiana em 2015.
Na ocasião, Figari respondeu às acusações com uma
carta aos congregados, que foi divulgada pela mídia peruana.
No texto, ele reconheceu ter "cometido erros
graves, falhas e leviandades", mas negou o abuso sexual.
Segundo o ex-superior do Sodalício, Alessandro
Moroni, que se aposentou da organização no final de 2020, Figari não participa
mais da administração do grupo que fundou em 1971 em Lima.
Antes da investigação do Ministério Público em
2016, o advogado de Figari, Juan Armando Lengua Balbi, questionou o fato dos
depoimentos do livro serem anônimos.
"Não pode haver perpetradores se não houver
vítimas claras", disse ele na época, antes de garantir que seu réu é
inocente de todas as acusações.
* Os responsáveis pela investigação encomendada
pelo Vaticano são o arcebispo de Malta, Charles Scicluna, e o padre espanhol
Jordi Bertomeu. Sua missão inclui encontros com porta-vozes da organização,
assim como com supostas vítimas e jornalistas que cobriram os possíveis casos
de abuso e corrupção financeira.
Após questionamentos, Scicluna e Bertomeu
apresentarão um relatório que será enviado ao papa Francisco.
Fonte: BBC News Mundo
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