Vítimas de tortura
na ditadura pedem memória e providências
A
campainha tocou no apartamento 31. O estudante paulistano Adriano Diogo, de 23
anos, estava cansado. Estudante de geologia na Universidade de São Paulo (USP),
ele, naquele dia, estava extenuado depois de cruzar a cidade e chegado de mais
uma jornada como professor de ciências em uma escola secundarista. Andou até a
porta. Ao abrir, encontrou o pesadelo. Ele não esperava o que aconteceria a
partir daquele 17 de março de 1973. Histórias como a de Adriano têm mais um
especial momento de reflexão e memória nesta segunda (26 de junho), Dia
Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura.
Tudo
está nítido na memória de Adriano Diogo, hoje aos 74 anos de idade. “Primeiro,
uma coronhada com o cabo da metralhadora no lado direito do olho”, lembrou em
entrevista à Agência Brasil. Ele recorda que foi sendo arrastado aos gritos
pela escada, por militares disfarçados. Haviam chegado em uma caminhonete com
pintura falsa de um jornal da cidade. Saíram em um Opala verde. Adriano
assustou-se com o ódio dos agentes.
“Nós
vamos te matar, terrorista”. “Onde estão as armas?”. “Maldito”
Do
apartamento na Mooca (zona leste de São Paulo), os militares levaram o
universitário por 10 quilômetros, até o Complexo do Centro de Operações de
Defesa Interna (DOI-Codi), na Vila Mariana, onde funcionava a Operação
Bandeirante (Oban), um centro de repressão política que desembocou em um espaço
de tortura e assassinatos durante a ditadura militar no Brasil.
• 90 dias na solitária
As
diferentes violências que se seguiram àquele dia em que a campainha tocou,
incluindo os 90 dias em uma solitária, depois 45 no prédio do Departamento de
Ordem Política e Social (Deops), e mais um ano e meio no Presídio do Hipódromo,
deixaram marcas profundas no homem. Mas não deixaram jamais os ideais e o
ativismo. “Embora eu fosse bem jovem, desde o dia em que saí da cadeia, há 50
anos, eu fazia o que faço hoje. Vou em cadeias, em espaços de internação de
menores, em delegacia. Quando pessoas de movimentos sociais são presas, busco
saber o que aconteceu”.
Daqueles
dias de dores diversas, ele se lembra com detalhes dos momentos. Inclusive que
um dos algozes e dos mais violentos era um tal de major Tibiriçá, codinome do
chefe do DOI-CODI à época, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o primeiro
militar a ser reconhecido como torturador pela Justiça brasileira no ano de
2008.
Foi
Ustra quem recebeu Adriano Diogo no complexo da Operação Bandeirante. Além de
comandar a violência física, o militar, em diferentes ocasiões, mostrava fotos
de amigos e colegas assassinados e autopsiados em demonstrações de violência
psicológica. “Conte o que você viu aos seus amigos na cela”, provocava.
Adriano
Diogo descobriu na cadeia a morte de um grande amigo, nos dias seguintes ao que
chegou ao DOI/Codi o líder estudantil Alexandre Vannucchi Leme, aos 22 anos de
idade, também estudante de geologia na USP. Para o amigo Adriano, Alexandre era
o “Minhoca”, apelido dos tempos da faculdade. “Para tentar apagar as marcas de
tortura contra o Minhoca, eles levaram o corpo para fora da Oban e simularam
atropelamento com um caminhão”.
Ninguém
acreditou na fraude. Tamanha foi a repercussão que o arcebispo de São Paulo,
Dom Paulo Evaristo Arns, organizou uma missa no dia 30 de março em memória do
estudante. A repercussão foi grande. “O Ustra ficou muito nervoso. Levou todos
os presos para o pátio e bateram na gente de todas as formas”, recorda Adriano
Diogo.
Enquanto
Ustra esteve na chefia, durante 40 meses, houve 40 mortes. Além disso, chegou,
em média, uma denúncia de tortura a cada 60 horas, segundo registrou a Comissão
da Verdade. Outro momento marcante, em 1973, foi aquele em que Gilberto Gil
cantou a música Cálice (composta em parceria com Chico Buarque) na USP, em
primeira mão, para dezenas de estudantes. “Ele teve muita coragem realmente”,
considera.
• Retomar a vida
Depois
de quase dois anos, Adriano Diogo saiu da cadeia. “Fui buscar o diploma lá na
geologia e retomar a vida”. Ele fez carreira como geólogo e pesquisador. Foi
deputado e até presidiu a Comissão da Verdade na Assembleia Legislativa de São
Paulo. Um problema, porém, foi que as recomendações do relatório ficaram apenas
no papel. O relatório final foi entregue à sociedade em março de 2015, depois
de três anos de trabalho.
Um
dos capítulos é de “Mortos e Desaparecidos”, com 165 casos investigados,
inclusive a do amigo Alexandre Vannucchi Leme . “Nós fizemos uma série de recomendações
ao Estado brasileiro e não foram atendidas (confira aqui o relatório). Para
você ter uma ideia, o Brasil é signatário do Protocolo de Istambul de combate à
tortura. Sabe quantos comitês de combate à tortura têm no Brasil, além do
nacional? Só um (no Rio de Janeiro)”, lamenta.
Na
sexta (23), o atual governo reativou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate
à Tortura. Uma reunião marcada para o dia 21 de agosto, data que marca os dez
anos da lei que criou esse sistema, vai estabelecer um plano de trabalho e de
atuação.
• Marcas registradas
O
relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) trouxe 29 recomendações e a
maioria ficou também somente no papel, identificou um relatório do Instituto
Wladimir Herzog.
Apenas
duas recomendações foram atendidas pelo poder público, avaliou a entidade. A
revogação da Lei de Segurança Nacional e a introdução da audiência de custódia,
para prevenção da prática da tortura e de prisão ilegal, foram as exceções.
Para
a coordenadora do relatório, a historiadora Gabrielle Abreu, o sentimento das
pessoas torturadas no Brasil é mesmo esse de impunidade. “A violência e a
impunidade, infelizmente, são marcas registradas no Brasil. Vimos ocorrer no
período da escravidão, por exemplo, quando milhões de homens e mulheres negros
foram escravizados”, afirmou.
O
relatório, segundo ela, tem a finalidade de estimular uma reflexão verdadeira e
crítica sobre o que foi a ditadura e outros períodos de grave violação de
direitos humanos. A busca por não deixar esquecidas essas histórias é
fundamental, disse a historiadora. Além disso, há no entender dela,
invisibilidade e apagamentos de torturas e mortes de diferentes grupos
indígenas, quilombolas, ribeirinhos, populações mais pobres submetidas aos
desmandos.
“Há
história desconhecidas da ditadura, como nas favelas. É uma montanha de
violações de direitos humanos que foram apagadas”.
Os
dados do relatório mostram não somente ter havido recomendações da CNV não
realizadas (total de 14), mas também retrocessos (sete). Esse é o caso da recocomendação
da “criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura”.
• Tortura aos 16 anos
Voltar
ao passado, porém, é reconhecer histórias de violências inadmissíveis. No dia
16 de abril de 1971, Ivan Soares, com apenas 16 anos de idade, foi capturado junto
com o pai, o operário Joaquim, e levado para as instalações do DOI-Codi, em São
Paulo. Pai e filho participavam do Movimento Revolucionário Tiradentes.
“Eles
nos torturaram durante dois dias seguidos. Eles mataram meu pai e eu continuei
preso. Prenderam também a minha mãe (uma professora) e minhas irmãs. Elas foram
espancadas. Uma delas foi estuprada”.
Menor
de idade, Ivan ficou nas mãos da ditadura durante quase seis anos sem ser
processado ou condenado. “Os militares anunciaram que ele tinha morrido em um
suposto tiroteio com as forças de repressão”. Ivan era estudante do então
ginásio. “A gente tinha a vida de trabalhadores pobres. Nasci numa favela em
Porto Alegre onde não tinha nada. Não tinha água encanada, luz, ônibus, esgoto,
escolas. Tudo era muito difícil”.
Ele
explica que os moradores dessa comunidade de Vila Jardim lutavam por melhores
condições de vida. “Desde que me entendi por gente eu vi as lutas das pessoas
que são da classe trabalhadora, tentando sair da condição de ser pisado pelo
sistema capitalista”.
Os
últimos três anos de cadeia Ivan cumpriu em um presídio de segurança máxima,
que foi a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Ele era o único preso
político e convivia com os presos e pacientes psiquiátricos.
Ivan
saiu da prisão em agosto de 1976, disposto a recomeçar a vida. Mas as
perseguições não cessaram. Uma vez por semana, ele precisava se apresentar na
auditoria militar. “Eu era seguido todos os dias, 24 horas por dia. Eu ia
estudar, trabalhar. Mas sempre com a presença dela, dessas figuras execráveis
por perto”.
“Eu
descia do ônibus e tinha que caminhar a pé até a escola. Em um carro, eles
passavam me xingando fazendo piadinha. Diziam para eu correr para eles
treinarem tiro”. A tortura era também do lado de fora. “Desde o momento em que
eu estava sendo torturado, tinha absoluta noção de que vivia um processo
histórico, Eu me mantive pelo fator ideológico”. Hoje, ele mora na cidade de
Foz do Iguaçu (PR).
Hoje,
ele considera fundamental a aplicação das recomendações da Comissão Nacional da
Verdade. ”Nós revelamos os crimes da ditadura. E a gente vai continuar
lutando”.
Fonte:
RBA
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