quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Leonardo Sacramento: ‘O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostas’

O objetivo desse artigo não é escolher lado e discorrer sobre culpados e inocentes no caso Silvio Almeida e Anielle Franco. Quem deveria estabelecer alguma verdade é uma investigação, a qual não ocorreu. O objetivo desse artigo é analisar o processo político, suas contradições e o impacto para o campo da esquerda.

Silvio Almeida foi acusado por uma organização estrangeira de assédios sexuais e morais. O correto seria pressupor, antes de qualquer coisa, alguma investigação rigorosa, pois se a acusação exige resolução rápida, também exige absoluto rigor. A formalização das denúncias ocorreu apenas sexta-feira, quando o diretor-geral da Polícia Federal anunciou a abertura do inquérito. A frase “há mais perguntas do que respostas” é insuficiente para representar o contexto caótico que o governo se meteu.

Anielle Franco, como ministra de Estado, denunciou o assédio a uma Ong? Se havia denunciação desde o ano de 2023, por que os ministros não interferiram? Há documentos exigindo investigação para além dos ofícios feitos pelo ex-ministro do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) a CGU, Ministério da Justiça, Comissão de Ética da Presidência e demais instituições estatais de controle? Algum ministro iniciou algum processo administrativo?

Quando os ministros souberam, o presidente foi avisado? Por que a ministra trocou o canal institucional da presidência por uma Ong? Se não trocou, por que não houve qualquer andamento? Se a denúncia era anônima, por que a Ong vazou o nome da ministra? Se a ministra não fez denúncia à Ong, outra pessoa fez em seu nome?

Essas perguntas não invalidam o objeto. A questão é que o caso deveria seguir algum escrutínio. Mas não seguirá, pois Silvio Almeida não é Fufuca, um homem de apenas 35 anos que tem dezenas de denúncias e inquéritos nas costas. Para o apadrinhado de Arthur Lira, Lula deu presunção de inocência. No Ministério dos Esportes, está “regulando” as bets para bicheiros e para o Centrão.

Para Sílvio Almeida, mesmo com nota do MDHC denunciando uma ação grave de lobby da Ong Me Too em uma licitação em 2023-2024, barrado pelo ministro, Lula não deu mais do que 12 horas entre a reportagem e a sua entrevista a uma rádio afirmando que não se pode tolerar assédio, sentença da qual não se tem discordância.

Mas é preciso analisar as entrelinhas e aquilo que não foi respondido ou não tem resposta objetivamente razoável até o momento. É preciso meditar sobre o processo político para o campo da esquerda.

Segundo o MDHC, a Ong Me Too entrou em negociação com as gestoras de Coordenação-Geral do Disque 100 “solicitando indevidas no formato da licitação vigente no MDHC”. Posicionava-se contra a divisão dos serviços “Ligue 180” e “Disque 100”, que seguia a separação das pastas do MDHC com o Ministério das Mulheres. O lobby da Ong se cristalizou em uma reunião entre Marina Ganzarolli, dirigente máxima, como se evidencia no Instagram da entidade, com as gestoras do Disque 100.

A dirigente da Ong enviou um e-mail às gestoras “parabenizando pelo trabalho desempenhado e apresentando, inapropriadamente, pedidos de adequação ao catálogo de serviços”. Aqui se tem uma prova muito objetiva de lobby, um e-mail registrado com remetente e destinatário. O MDHC mudou o formato da licitação de acordo com a Assessoria Especial de Controle Interno.

Com as mudanças, o trâmite passou a ser feito pela Secretaria-Executiva e pela Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração do Ministério, que constatou “superfaturamento” de R$ 24 milhões. Em fevereiro de 2024 ocorreu outra ação de lobby da Ong, momento que surgiu denúncias de assédio contra Vinicius de Lara Ribas, que acompanhava os tramites da licitação em disputa e identificara irregularidades. Descobriu-se que a denúncia havia sido feita por Kelly Garcez, à época coordenadora-geral do Disque 100 e responsável pelas irregularidades, sendo exonerada em 15 de março.

A Ong Me Too respondeu. Disse que “a nota publicada pelo Ministério desvia o foco da grave denúncia veiculada pela mídia: que o Me Too Brasil recebeu relatos de vítimas de assédio sexual praticado por autoridade de alto escalão do governo federal”. Não respondeu, apelou para o moralismo. A denúncia do MDHC tem materialidade e deveria ser respondida.

Continuou com platitude e fraseologia, que não deixa de ser verdadeira, mas inaplicável ante uma denúncia com materialidade (e-mail): “Esse tipo de reação é comumente adotada por acusados de assédio, que recorrem a campanhas de desmoralização das vítimas, buscando desqualificá-las, na tentativa de desviar o foco e atacar o mensageiro”. Lula resolveu assumir o argumento moralista da Ong no dia 07 de setembro, mostrando uma estranha e desconcertante sintonia. Afinal, houve lobby ou não? Haverá investigação ou não?

Não é segredo para ninguém em Brasília que call center, empresas de publicidade e de tecnologia da informação dão muito dinheiro e são disputados a tapa, puxada de tapete e muito lobby.

Em outras palavras, há uma denúncia com materialidade de lobby, superfaturamento e indício de instrumentalização de denúncias com vistas à redefinição de processos licitatórios. Há um e-mail. Em tese, a dúvida é pertinente, ao menos sobre a origem da empresa denunciante. O argumento moralista de que o ex-ministro não deveria ter usado o perfil e a página do ministério é até correta, mas sem significância diante das diatribes processuais de uma denúncia que ministros supostamente sabiam desde o fim de 2023. Usar esse argumento agora para o exercício (do que restou) do direito público e político de defesa é hipocrisia.

Mas a dúvida inexistiu entre os ministros palacianos e a primeira-dama. E, por hora, essa questão é retumbantemente ignorada. Na noite do mesmo dia havia um veredito dado pela foto constrangedora de Janja, para não falar com alguma dose de messianismo da “branca salvadora”. Há uma Janja no meio do caminho.

Anielle Franco comunicou no fim do dia 06 de setembro que foi vítima de “importunação sexual”, o que nos levanta uma questão. Não já havia sido feita em 2023 a ministros e a Janja, a eminência parda do governo? Fez novamente? Confirmou novamente? Ou não fez? Se fez novamente, o que ocorreu com a primeira denúncia?

Anielle Franco teria sido assediada/importunada em reunião com a presença do delegado-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues. Não falou nada. Sem problemas. Como vítima, pode não ter sabido como reagir. Começou a falar para outros meses depois e o fato chegou no ouvido do delegado-geral, que não abriu inquérito. Por que o delegado-geral não abriu inquérito de ofício? Ele prevaricou ao lado dos ministros? Ele comunicou o Presidente da República?

Silvio Almeida foi rifado logo na manhã da sexta-feira. Não agrega na coalizão com o Centrão.  Também não é segredo que havia uma guerra civil entre Rui Costa, aquele que odeia negros, e Janja, a primeira-ministra. Rui Costa tentou demiti-lo ano passado em reforma ministerial (informação pública) e Janja queria dar a linha no ministério, assim como dá nos Ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial e da Cultura. A filiação de Aniele Franco ao PT estaria nesse jogo — não apenas, é verdade.

A foto que Janja postou tem algumas mensagens, uma semiótica perversa. Além de desgastar o ex-ministro, a foto de um beijo na testa de Aniele Franco proporciona relação de superioridade, como se Aniele Franco fosse afilhada, apadrinhada. Mesmo sendo mais alta, a ministra, com o corpo e a cabeça abaixados, é a tutelada. Anielle Franco se abaixa (ou se curva) para que possa ser beijada na testa. Janja é branca.

Uma conhecida disse, ao ver a foto, que tinha saudades da Dona Mariza. A foto é constrangedora. Janja, primeira-dama, se coloca como instância decisória em um grave caso entre dois Ministros de Estado negros, em ministérios não disputados pelo Centrão. Ela se colocaria em uma disputa entre Fufuca e Simone Tebet?

Alguém que costuma ficar emocionado com o empoderamento da Janja poderia explicar didaticamente o significado da publicação desta foto, sem fraseologias semelhantes às respostas do Me Too quando indagada sobre o lobby no Disque 100? Politicamente, Janja posicionou o governo sobre o caso antes das ordens de seu marido, que apenas no dia seguinte pediu a presença dos dois ministros. Lula seguiu as ordens de quem manda na área “social” do governo?

A investigação deve avançar não poupando esforços para que se chegue à verdade, incluindo-se a acusação, processo e eventual condenação a Silvio Almeida em caso de alguma materialidade. Inclusive sobre as outras mulheres que denunciaram para a Ong e as demais que realizam denúncias desde sexta-feira.

Mas analisando-se o contexto político, não se pode deixar de constatar que retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas de uma Ong estrangeira que iniciou a sua vida política no Brasil apenas em 2020, da forma como foi, envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo, representado semioticamente pela foto de Janja publicada poucas horas depois da primeira reportagem. Lula está cheio de ministro com denúncia formal e condenações.

Waldez Góes, Luiz Marinho e Luciana Santos possuem condenações e recorrem em segunda instância. Rui Costa e Camilo Santana possuem denúncias de superfaturamento e desvio de recursos públicos. Ao todo, são 12 ministros. O garantismo serve para afortunados. Nem ao menos a solução Genoíno foi oferecida: afaste-se para provar a sua inocência e depois volte. E não poderia. Aproveitou-se para abrir espaço para uma reforma ministerial que deveria ter sido feita em 2023, segundo Rui Costa.

Silvio Almeida está saindo porque é preto, sem filiação (guarda-chuva) e não contabiliza na coalizão que o PT acredita que existe com o Centrão. A acusação foi secundarizada pela própria dinâmica política da guerra civil entre Rui Costa, Janja e Silvio Almeida.

Arthur Lira está sendo cogitado por Lula para ser ministro em 2025, ao lado de Rodrigo Pacheco. Pesa contra ele denúncia de estupro contra Jullyene Lins, ex-esposa. Há testemunhas e laudo médico atestando o estupro. Não deixa de ser curiosa a posição dúbia do governo dependendo da pessoa. Em nenhum momento Lula cogitou não o nomear pela denúncia laudada de estupro. Pelo contrário, é algo que vem sendo completamente ignorado pelo bem da “governabilidade” que o governo acredita que possui. A esquerda estruturada em torno do governo e de suas premissas ignora por osmose.

Alexandre de Morais censurou a Agência Pública, ordenando que reportagens e vídeos sobre o caso fossem retirados do ar. Segundo o ministro ovacionado pela atual “esquerda-democrática”, a retirada da reportagem se justifica porque a sua permanência significaria “a utilização da liberdade de expressão como escudo protetivo para a prática de discursos de ódio, antidemocráticos, ameaças, agressões, infrações penais e toda a sorte de atividades ilícitas”. A eleição para a presidência da Câmara dos Deputados será cheia de recados para a esquerda. Inclusive se deve continuar a ser classificada como esquerda.

Fica em parte dos movimentos sociais, sobretudo no movimento negro, até onde acompanhei, perplexidade misturada com um enorme sentimento de frustração com Lula. Há a concordância de que assédios não são toleráveis e devem seguir estrutura processual distinta, confiando no relato da mulher. Mas o processo foi um rolo compressor que envolveu claramente a ação de entidades, ministros, primeira-dama que se porta como primeira-ministra e uma mídia mais à direita.

Será que foi combinado entre os ministros palacianos? Será que Anielle, com uma demanda legítima, foi usada? São perguntas legítimas. Será que o movimento negro continuará no governo? Será que haverá uma debandada, com o governo nomeando alguém mais próximo ao PT sem grande representatividade política e base social? Será que essa desconfiança permanecerá até 2026, já que só se pensa na eleição presidencial para que “o fascismo não volte mais”?

Por ora, o que se pode constatar é que Janja conquistou politicamente o Ministério que lhe faltava, levando em consideração que ela não possui interesse nos Ministérios entregues ao Centrão (direita), tampouco críticas.

 

•        Silvio Almeida: falta explicar. Por Carlos Tautz

Diante das circunstâncias, foi correta, até eventual prova em contrário, a demissão de Silvio Almeida do cargo de Ministro dos Direitos Humanos. No fim, colocados todos os relatos sob o critério das incoerências inaceitáveis, e ainda que o ex-ministro tenha o irrevogável direito à defesa e à presunção de inocência, não havia outra alternativa para um governo que preconiza o feminicídio zero.

Mas, a tardia dispensa não encerra o caso — considerando que outros ministros já conheciam desde 2023 a denúncia feita pela Ministra da Igualdade Racial Anielle Franco. Desde a semana passada, o processo público de demissão faz brotar desconfianças concêntricas, que uma a mídia de escândalos prefere escantear. É necessário investigar as denúncias feitas pelo próprio ex-ministro, de que grupos nacionais e internacionais teriam interesse em sua saída e se esses interesses se manifestaram na sua demissão.

Essas dúvidas exigem do governo Lula presteza, rapidez e intolerância no esclarecimento.

A Ministra Anielle Franco relatou a vários ministros a importunação sexual de Silvio Almeida — crime cometido por uma pessoa que a sociedade espera que combata, entre outros, exatamente este tipo de ilícito. Nenhuma medida pública foi tomada. Ainda que o primeiro escalão priorizasse o enfrentamento dos difíceis momentos pelos quais passava o governo Lula — chantageado por um criminoso impune que lidera a Câmara e por um entreguista de legado histórico que preside um Banco Central subserviente ao Presidente anterior —o, a incontornável gravidade política e a extensão do tema Silvio Almeida já eram claras e urgentes. Por que canais internos ao governo não trataram de um problema que estrutura a relação entre mulheres e homens no Brasil?;

A dificultar a estória, circunstâncias objetivas e imediatas — embora nem tão explícitas — em que se encontrava o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), visto pelo governo como central para recuperar a imagem internacional do Brasil pós-Jair Bolsonaro. Uma dessas circunstâncias era a oposição aberta de Sílvio Almeida à privatização de presídios e de instituições sócio-educativas.

A medida consta de um decreto que regulamenta o Programa de Parcerias para Investimentos (PPI). Sílvio Almeida colocou todo o simbolismo de homem negro e intelectual referência no campo dos direitos humanos para contrariar a tese privatista que orienta o próprio Lula e dois importantes signatários do decreto (que ainda está sendo analisado): o vice-presidente Geraldo Alckmin e o Ministro da Fazenda Fernando Haddad. Fernando Haddad é ninguém menos do que a principal ponte do governo com o mercado financeiro e vem sendo preparado pelo PT para suceder Lula.

A jornalista Milly Lacombe, do UOL, registrou em sua coluna que Silvio Almeida contrariava todo o governo neste ponto: “O ministério dos direitos humanos é o único ministério a se opor frontalmente à agenda da privatização dos presídios, que interessa ao setor privado e a uma sociedade que não se envergonha de ser racista. Temos 800 mil pessoas encarceradas, a vasta maioria composta por pessoas negras. A quem interessa o derretimento do único ministério que faz frente à privatização em seu momento decisivo?”.

Sílvio Almeida era abertamente contrário à privatização do sistema carcerário brasileiro, reconhecido pela prioridade institucional em manter pessoas negras atrás das grades. O ex-ministro afirmava que o decreto assinado em 2023 “abre espaço para infiltração do crime organizado”. Quanto mais gente ingressa no sistema penitenciário e lá permanece, mais seriam alimentadas as fileiras criminosas locais e a conta bancária dos grupos internacionais que se aproveitam da privatização. Esse quadro pode ter-se acelerado há dois meses.

Em junho, a Câmara dos Deputados debateu o tal decreto em audiência pública — que, a propósito, descortina outra trama brasiliense. Um dos autores do pedido de audiência foi o deputado Glauber Braga (PSOL/RJ), que é alvo de processo de cassação operado por Arthur Lira (Progressistas/AL), o presidente da Casa favorável ao decreto privatista.

No Brasil, existem algumas dezenas de presídios privados, mas no âmbito dos estados. O decreto da PPI visa a regulamentar a privatização em nível federal. Sílvio Almeida argumentava que todas essas experiências no Brasil e em outros países deram errado e prejudicam principalmente as pessoas negras. Nos EUA, país de maior população carcerária do mundo, essas penitenciárias também são consideradas experiências negativas, que servem apenas para carrear todo ano dezenas de milhares de pessoas não brancas.

Na semana passada, uma organização social chamada Me Too denunciou, até onde se sabe, somente por meio do jornal Metrópoles casos de mulheres que teriam sido assediadas por Silvio Almeida. Foi o estopim que resultou na demissão de Sílvio Almeida. Não há notícia sobre a formalização dessas denúncias em canais oficiais. Silvio Almeida rebateu e acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame.

Em sendo verdadeiro, o caso de tentativa de interferência já deveria ter sido registrado por Silvio Almeida em canais internos e, talvez, até na Polícia Federal (PF). Foi? Não foi? Por quê? É verdadeira a denúncia de Sílvio Almeida? Há outros casos?

Em junho a Polícia Federal indiciou o ministro das Comunicações Juscelino Filho por organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Ele é acusado de destinar emendas parlamentares a obras fraudadas, que beneficiaram sua própria família, quando era deputado federal pelo União Brasil-MA. O Ministro permanece no cargo. Justifica-se o duplo critério aplicado por Lula na necessidade de manter o apoio do União Brasil ao governo no Congresso? Houve racismo na manutenção de um ministro de cor branca já indiciado pela PF em contradição com a demissão de outro ministro de cor negra, que foi denunciado e ainda será investigado?

Assustadas com a contradição radical de Silvio Almeida, exposta sem mesuras, a esquerda brasileira e os movimentos de raça e gênero, responsáveis pela indicação dele ao ministério, tentam tirar lições da tragédia. Ainda precisam, como todo mundo minimamente progressista e sensível, digerir a bala de canhão que recebemos no peito.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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