quinta-feira, 19 de setembro de 2024

José Luiz Fiori: ‘O caminho da Índia’

A civilização indiana é tão ou mais antiga que a chinesa, embora seu desenvolvimento tenha sido mais descontínuo e menos homogêneo. Sua formação se deu ao longo do Rio Indo, e o processo de “sedentarização” de suas populações começou por volta do ano 5000 a.C. Seu território, entretanto, foi objeto de inúmeras invasões e ocupações por parte de povos “estrangeiros”.

Por volta de 1500 a.C., a região foi ocupada por povos indo-europeus provenientes do Mar Negro e do Mar Cáspio, quando se inicia o Período Védico. No ano de 520 a.C., seu território foi invadido por Dario, o Rei da Pérsia, e permaneceu 200 anos sob o domínio persa, até a invasão por Alexandre, o Grande, que trouxe consigo as marcas da civilização grega.

Todas essas sucessivas invasões, que prosseguiram nos séculos seguintes, só conseguiram se instalar de forma periférica, como entrepostos militares ou mercantis de uma produção local diversificada e sofisticada que fora obra milenar de uma população que era cultural e linguisticamente heterogênea, mas que seguia majoritariamente o hinduísmo, a mais antiga de todas as religiões.

Até o momento em que se iniciaram as invasões e conquistas muçulmanas, no século VII, provenientes do Sistão, atual Irã, e que deram origem ao Império Mogol ou Mogul, fundado por Babur, descendente de Gengis Kan, e que chegou a dominar quase todo o subcontinente indiano entre 1526 e 1857. Essa estrutura imperial durou até 1720, pouco depois da morte do último grande imperador mogol, Aurangzeb.

Pouco depois, em 1763, a Companhia Inglesa das Índias Orientais impôs seu domínio mercantil e tributário sobre a região de Bengala e, a partir daí, progressivamente, sobre todo o território indiano, até que as forças do Império Britânico derrotaram a rebelião indiana de 1857-58, submetendo a Índia ao governo imperial da Coroa Britânica, de 1858 até sua independência, em 15 de agosto de 1948.

Em 1885, foi fundado o Congresso Nacional Indiano, primeira semente revolucionária de um movimento que adquiriu plena maturidade a partir de 1930, quando Mahatma Gandhi lançou seu Movimento da Desobediência Civil, que culminaria com a independência indiana e a divisão dos territórios britânicos entre Paquistão e Índia, e posteriormente, Bangladesh.

Depois de sua independência, a Índia adotou uma política externa anticolonialista e sofreu o efeito imediato da coincidência de sua data de independência com a data do início da Guerra Fria, logo antes da vitória da Revolução Comunista na China. Esses fatos por si só colocaram o território indiano no coração de um espaço geopolítico que teve grande importância durante toda a segunda metade do século XX, durante a Guerra do Vietnã, e após a queda do Xá do Irã e a invasão soviética do Afeganistão, ocorridas em 1979.

Nesse período, a Índia enfrentou várias guerras de fronteira, três com o Paquistão (1948, 1965 e 1971) e uma com a China (1962), manteve uma disputa aberta com Bangladesh (1979), em relação à nacionalidade de uma ilha na Baía de Bengala, e desde então mantém um litígio permanente com o Paquistão em torno a suas fronteiras na região de Jammu e Caxemira.

Constrangida pela forma como se deu a luta por sua independência, a Índia adotou uma posição de liderança inconteste e ativa dentro do Movimento dos Países Não-Alinhados, nascido da Conferência de Bandung, em 1955, apoiando um “neutralismo ativo” e uma defesa intransigente da soberania e igualdade de todas as nações contra todo tipo de pressão ou ingerência das grandes potências nos assuntos internos dos demais Estados. Estabeleceu um relacionamento econômico, político e militar muito estreito com a antiga URSS, que se manteve depois com a Rússia.

A Índia não apresenta, à primeira vista, as características de uma potência expansiva, e se comporta, estrategicamente, como um Estado que foi obrigado a se armar para proteger e garantir sua segurança numa região de alta instabilidade. Assim mesmo, desenvolve e controla tecnologia militar de ponta, como no caso de seu sofisticado sistema balístico e arsenal atômico; possui, ainda, um dos exércitos mais bem treinados de toda a Ásia.

Mas foi só depois da sua derrota militar para a China, em 1962, e da primeira explosão nuclear chinesa, em 1964, logo antes da guerra com o Paquistão, em 1965, que a Índia abandonou o “idealismo prático” da política externa de Nehru e adotou a Realpolitik do primeiro-ministro Bahadur Shastri, que autorizou o início do programa nuclear, na década de 1960.

Foi quando a Índia atingiu sua maturidade, com as explosões nucleares de 1998 e o sucesso do míssil balístico Agni II, em 1999. Naquele momento, ela se tornou uma potência atômica e definiu sua nova estratégia de inserção regional e internacional, com base na afirmação simultânea de seu novo poder militar.

Por outro lado, desde sua independência, a Índia vem adotando uma estratégia econômica de corte fortemente nacionalista, e hoje é o país com maior crescimento econômico dentro do sistema mundial. Apesar do viés cada vez mais orientado na direção asiática, a política externa indiana mantém uma equidistância pragmática com relação a Estados Unidos, Europa e China, e em algum momento esteve próxima de se transformar em um aliado atômico dos americanos. Mais recentemente, voltou a distanciar-se dos Estados Unidos e de seu projeto de construção de um cerco nuclear da China, com a possibilidade de extensão da área de atuação da OTAN até a região Indo-Pacífica.

Muito recentemente, já em meados de 2024, houve um movimento de reaproximação entre Índia e China, as nações mais populosas do planeta, que somam juntas três bilhões de habitantes e já são a primeira e a terceira maiores economias do mundo, respectivamente, por paridade de poder de compra. Esta reaproximação sinaliza o desejo de resolver suas disputas de fronteira na Caxemira e em Arunachal Pradesh, que remontam a décadas e já provocaram enfrentamentos armados com a China, com quem mantém uma fronteira comum de 3.379 km de extensão.

O mesmo tem acontecido com relação ao Paquistão e, em ambos os casos, o novo governo indiano parece decidido a tranquilizar e estabilizar sua zona de influência na região sul da Ásia. Mais do que isso, a Índia tem resistido a participar do “Diálogo de Segurança Quadrilateral” promovido pelos Estados Unidos, o QUAD, que também envolve a Austrália e o Japão; mantém estreita relação comercial e estratégica com a Rússia; fez parte da criação conjunta do BRICS; e é membro da Organização de Cooperação de Shangai.

Tudo indica que a Índia está se dispondo a resolver suas pendências regionais para poder assumir uma posição assertiva e global no cenário internacional, acorde com suas novas dimensões demográficas e econômicas, e com a previsão de que, até 2050, será o segundo país mais rico do mundo.

Somando todos esses fatos e fatores, parece claro que a Índia já tomou uma posição de longo prazo, ao lado de seus vizinhos asiáticos, contrários ao projeto QUAD, e mais ainda, à ideia de criação de uma OTAN na região do Indo-Pacífico. E ainda, a Índia vem sinalizando seu desejo de afastar-se progressivamente do sistema monetário-financeiro apoiado no dólar, sobretudo depois do congelamento das reservas russas depositadas nos bancos americanos e europeus. Uma posição que vem angariando número cada vez maior de apoiadores dentro e fora da Ásia, sobretudo na região que se alimenta do efeito expansivo das economias chinesa e indiana.

Esse verdadeiro turning point da política externa indiana explica, em parte, a iniciativa absolutamente inusitada e o movimento surpreendente do primeiro-ministro Narendra, que depois de ir a Moscou no mês de julho, visitou, em agosto, a Ucrânia e a Polônia, propondo-se a intermediar uma negociação de paz fora da Ásia, em plena Europa, envolvendo, como uma de suas partes fundamentais, a Grã-Bretanha, sua antiga potência colonial.

Assim, a Índia vai assumindo uma posição dentro do Sul Global análoga a que ocupou na Conferencia de Bandung de 1955, e na formação do Movimento dos Países Não Alinhados que durante o período da Guerra Fria se opôs ao que consideravam como novas formas colonialismo e neocolonialismo das Grandes Potências daquele período.

Mas este novo/velho caminho da política externa da Índia não será fácil, como se pôde ver pela retaliação quase imediata que sofreu com o golpe de Estado que derrubou sua aliada, a Primeira-Ministra de Bangladesh, Shikh Hasina, no dia 4 de agosto recém passado, e que contou com o apoio/intervenção dos Estados Unidos. Uma mudança forçada de governo, que seguiu o novo figurino das intervenções norte-americanas, desde o Golpe de Estado de 2014 na Ucrânia, e que pode transformar Bangladesh, em qualquer momento, num novo foco de atrito militar entre a Índia e a China.

De qualquer forma, haverá que acompanhar os próximos desdobramento para avaliar o comportamento desta nova Índia que está se propondo entrar no “jogo das Grandes Potências”.

 

¨      A plutocracia norte-americana. Por Pedro Miguel Cardoso

Os Estados Unidos da América (EUA) têm defendido ao longo da sua história a liberdade e a democracia? Este texto não tem espaço para analisar os muitos exemplos de políticas internas e externas deste país, mas tem espaço para argumentar que as ideias proclamadas de defesa da liberdade e da democracia sempre foram mentiras ou mistificações subordinadas ao interesse material e ao poder das suas classes dominantes.

Podíamos começar por recordar simbolicamente que o comandante militar e protagonista político da revolta pela independência: George Washington, o autor principal da declaração de independência em 1776: Thomas Jefferson, e o aclamado “Pai” da Constituição Federal de 1787: James Madison, foram os três proprietários de pessoas escravizadas e assim se mantiveram ao longo da vida.

A questão é que a escravatura não foi algo que persistiu apesar da independência e da revolução liberal, experienciou o seu máximo desenvolvimento depois delas. De 1783 no final da Revolução Americana, até 1861, o número de pessoas escravizadas nos EUA multiplicou-se várias vezes e essa expansão transformaram os Estados do sul numa força dominante no mercado global do algodão.

No tempo de uma vida, o Sul dos EUA cresceu de zonas costeiras de plantações para um espaço de dimensão continental. Os empreendedores escravocratas moveram pela força mais de um milhão de pessoas escravizadas para vastos territórios também apropriados pela força aos habitantes nativos.

A expansão da escravatura formatou todos os aspetos da economia e da política da nova nação, não apenas aumentando o seu poder e território, mas também diferenciando identidades regionais e interesses. A defesa da liberdade, a justificação da escravatura e a destruição dos povos indígenas estiveram intimamente ligados. Sempre foi a liberdade para alguns em detrimento de outros.

Depois da guerra civil e da abolição formal da escravatura foram implementados novos mecanismos de discriminação e opressão. A segregação racial e o trabalho forçado foram uma duradoura realidade e a violência de viés racial manteve-se e mantém-se. Na atualidade, os EUA contabilizam a maior população prisional do mundo em termos absolutos, contando com uma alta percentagem das populações historicamente discriminadas e oprimidas.

Em relação à democracia podíamos abordar as exclusões históricas de significativos setores sociais, tal como em outros países de referência do liberalismo. Os afro-americanos, as populações indígenas e as mulheres foram durante muito tempo afastadas da participação política.

Além disso, o sistema político com o colégio eleitoral, constituído por representantes dos Estados, para a eleição do presidente dos EUA estabeleceu desde o início distorções que se prolongam na atualidade. Há também mecanismos de manipulação, como o “gerrymandering” que é um método de definir os distritos eleitorais de um território para obter vantagens no número de representantes políticos eleitos, utilizado para favorecer ou prejudicar um determinado grupo social ou político.

Mas sobretudo, importa destacar como o grande capital representado em Wall Street e os doadores financeiros dominam completamente os processos económicos, políticos, mediáticos e eleitorais nos EUA e todas as estruturas estatais. Os candidatos ao congresso, senado e presidência dos EUA, são em regra cidadãos ricos e ricamente financiados por interesses privados. Por isso, há académicos que consideram o termo plutocracia (o governo dos ricos para os ricos) mais adequado para descrever o sistema vigente no país.

No plano externo, ainda mais evidentes são as políticas contra a democracia e a liberdade: golpes de Estado para remover presidentes e governos democraticamente eleitos, guerras e invasões para garantir controlo de recursos naturais noutros países, combate ao socialismo e ao comunismo e promoção do terrorismo a nível mundial.

Em resumo, se analisarmos para além da propaganda e da ideologia promovida, o essencial das políticas dos EUA não tem sido a defesa da democracia e da liberdade, mas sim a defesa dos interesses das suas classes dominantes e do seu imperialismo a nível mundial.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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