sábado, 28 de setembro de 2024

O clima mudou. A política não mudará?

No momento em que escrevemos este artigo, focos de incêndio tomam todas as regiões do Brasil. As densas nuvens de fumaça que ocuparam o lugar dos rios voadores agora se alastram de Norte a Sul. Com a expansão das secas e o surgimento de zonas com clima árido e condições similares à de desertos, as cidades brasileiras já vivem paisagens de ficções pós-apocalípticas. Isso porque não faz nem quatro meses desde a cheia do rio Guaíba, que devastou mais de 400 municípios no Rio Grande do Sul.

A escala é mesmo digna de fim do mundo: nos últimos 10 anos, ao menos 5 milhões de pessoas no Brasil tiveram que abandonar suas casas em função de desastres. É como se a população inteira de Belo Horizonte e Salvador estivesse desalojada. A crise climática é incontornável.

Diante dos eventos extremos que se repetem ano após ano, é urgente organizar nossa solidariedade e indignação e amadurecê-las para que se tornem ação política capaz de romper o círculo vicioso de perdas e danos. Indignação e solidariedade sem luta por justiça climática não vão transformar a realidade.

Enquanto esse enfrentamento não for compromisso prioritário das autoridades e não se traduzir em políticas públicas, a conta sempre vai chegar mais cara para populações periféricas e vulneráveis, comunidades tradicionais e ribeirinhas, povos indígenas e agricultores familiares e para as populações que sofrem com estruturas e serviços urbanos precarizados.

Como epicentros da crise climática, as cidades gritam que o debate também precisa ser local. Em mais da metade dos municípios brasileiros, não há sequer menção aos riscos de tragédias causadas por extremos climáticos nos instrumentos de planejamento urbano. Passou da hora de repensar lógicas de habitação, circulação, produtividade e coexistência que produzam resiliência e afastem os pontos de não retorno dos nossos biomas.

Para pautar o debate climático nas eleições municipais, o NOSSAS e o Clima de Eleição lançaram a terceira edição da Vote pelo Clima – uma plataforma para pressionar candidaturas de todo o Brasil a incluir propostas aprofundadas e contextualizadas sobre essa causa em suas campanhas. A primeira edição da campanha foi lançada durante as eleições municipais de 2020, por iniciativa do Clima de eleição, organização criada para impulsionar a transição climática justa no Brasil por meio de incidência política e participação social.

A novidade desta edição é que a plataforma conecta candidaturas e eleitorado seguindo uma lógica de match, comum em apps de relacionamento — é possível filtrar concorrentes de acordo com propostas como redução de emissões, transição energética e apoio às populações atingidas. No momento da inscrição, as candidaturas assumem os compromissos apresentados pela plataforma. Cada cadastro pode incluir até três propostas de campanha que dialoguem com as pautas prioritárias da Vote pelo Clima.

Após a inscrição, o cadastro passa por uma análise para verificar se a candidatura está regularizada junto ao TSE e, só após essa confirmação, ela é disponibilizada na plataforma para consulta pelo eleitorado. O site possui ainda um filtro que impede que candidatos com registros de crimes ambientais e discursos de ódio possam se cadastrar.

As inscrições de pessoas candidatas são feitas por um formulário disponível no link: votepeloclima.org. Nesse mesmo link, eleitores podem encontrar concorrentes aos cargos municipais que se alinham às suas preocupações. As equipes do Clima de Eleição e do NOSSAS estão dedicadas a estratégias de mobilização online e offline para ampliar o número de candidaturas efetivamente inscritas e comprometidas com a plataforma. A divulgação acontece em várias frentes: via contato com bases dos diversos partidos em todos os estados brasileiros; por redes sociais, e-mail e WhatsApp, as equipes convidam eleitores a pressionar candidaturas de seus territórios para adesão à plataforma, além do trabalho de assessoria de imprensa.

Neste momento, todo apoio na divulgação é bem-vindo e os perfis do Clima de Eleição e do NOSSAS nas redes sociais estão repletos de materiais sobre a iniciativa para compartilhamento.

Mais de 70 organizações da sociedade civil apoiam a iniciativa, como o Observatório do Clima, a ClimaInfo e o Pacto pela Democracia. Até o momento, mais de mil concorrentes às eleições nos municípios de todos os estados iniciaram o cadastro no site, entre candidaturas a prefeituras e câmaras municipais.

Ou a sociedade toma urgentemente a dianteira nas transformações necessárias das políticas públicas, ou não haverá futuro possível num horizonte próximo. O clima mudou. A política precisa mudar.

 

•        Emergência climática: América do Sul está mais quente, seca e inflamável

A América do Sul está ficando mais quente, seca e inflamável. Isso é o que mostra um novo estudo publicado nesta quinta-feira (25) na prestigiada revista científica "Communications earth & environment".

E por trás desse aumento, há uma explicação clara: as mudanças climáticas. Ainda segundo a pesquisa, é esse o processo que está intensificando os períodos de seca e aumentando a temperatura no subcontinente, resultando em condições mais propensas a incêndios florestais em várias regiões.

No estudo, que traz números até 2022 (entenda mais abaixo), os pesquisadores analisaram dados de temperatura, precipitação e ocorrência de incêndios nos últimos 40 anos em toda a América do Sul e encontraram evidências de que esses eventos se tornaram mais frequentes e severos, especialmente no norte da Amazônia, no nordeste do Gran Chaco (que abrange o Pantanal) e na região do Lago Maracaibo, na Venezuela.

📈 Veja o quanto aumentou:

•        Nesses locais, entre 1971 e 2000, condições quentes, secas e inflamáveis geralmente ocorriam por menos de 20 dias por ano.

•        No entanto, nas últimas décadas, essas condições aumentaram para até 70 dias por ano, uma taxa que representa mais do que o triplo de dias com condições do tipo.

"A mudança climática é, sem dúvida, o fator mais importante que explica essa tendência", diz ao g1 Raul Cordero, autor do estudo e professor da Universidade de Groningen, na Holanda.

"A mudança climática faz com que os eventos extremos aumentem em frequência, e esse aumento extraordinário no risco de incêndios na América do Sul é mais um exemplo disso", acrescenta.

Veja o mapa abaixo, que compara o período entre os anos 1971-2000 e 2001-2022 e mostra o seguinte:

•        🔴 quanto mais tons avermelhados, mais dias por ano registraram condições simultâneas de calor, seca e incêndios;

•        já quanto mais tons pretos, menos dias do tipo foram registrados nessa comparação;

•        por fim, tons brancos representam áreas com pouca ou nenhuma mudança significativa na duração dessas condições.

Mais dias de calor, seca e incêndios na América do Sul. — Foto: Arte/g1

Ainda segundo o estudo, quando são comparados os períodos entre os anos 1971-2000 e 2001-2022, é visto que somente o número de dias quentes aumentou em cerca de 60 dias por ano na Amazônia e na região da Bacia de Maracaibo.

Já no Pantanal, embora o aumento de dias quentes não tenha sido tão significativo, o que os pesquisadores constataram foi que a região apresentou um dos maiores aumentos no número de dias secos por ano em toda a América do Sul.

Além disso, durante o mesmo período, foi identificado que as precipitações anuais na região, assim como em Maracaibo, caíram cerca de 100 mm e 200 mm, respectivamente.

No estudo, os pesquisadores destacaram, porém, que a quantidade de chuva nessas áreas ainda é alta (mais de 1000 mm por ano).

Mas, paralelamente a isso, foi observado que as condições secas aumentaram em mais de 50 dias por ano nessas duas regiões. E um fator importante nesse processo foi justamente o impulso das mudanças climáticas.

"O fator chave no Pantanal (e em grande parte do Gran Chaco) que explica o aumento no risco de incêndios intensos é a queda nas precipitações. Felizmente, a região ainda mantém precipitações relativamente altas, de modo que os efeitos nos ecossistemas locais associados à redução das chuvas são relativamente limitados", alerta Cordero.

Este ano, como mostrou o g1 com exclusividade, o Brasil enfrenta a maior seca da sua história, com aproximadamente um terço do território em situação de seca intensa.

No Pantanal, as alterações climáticas aumentaram em cerca de 40% o número de incêndios florestais observados em junho. Além disso, a crise climática elevou em até 20 vezes a chance de condições meteorológicas que contribuíram para a intensificação dos incêndios na Amazônia Ocidental entre março de 2023 e fevereiro de 2024.

Desde agosto, somente no Amazonas, todos os 62 municípios do estado estão em emergência ambiental devido à estiagem severa e o aumento de focos de incêndio na região. Segundo a Defesa Civil do estado, 330 mil pessoas já sofrem com os impactos da seca que atinge o estado e isola comunidades no interior.

Cordero diz que essa situação atual do país está de acordo com o estudo, que prevê temporadas de incêndios cada vez mais intensas.

Infelizmente, a situação continuará piorando até que detenhamos o aquecimento global, algo que, no melhor dos casos, só acontecerá depois de algumas décadas. Temos pela frente um clima cada vez mais hostil, não só na América do Sul, mas no mundo todo. — Raul Cordero, autor do estudo e professor da Universidade de Groningen, na Holanda.

<><> El Niño e La Niña

O estudo de Cordero aponta ainda que o El Niño-Oscilação Sul (ENSO) influencia a ocorrência de condições extremas na região. A constatação não é bem uma novidade, mas reforça que o fenômeno climático tem um impacto significativo no clima de toda a América do Sul.

Isto é, como tanto o El Niño e a La Niña influenciam as temperaturas no Pacífico, elas afetam em muito o clima da região.

Por exemplo, a seca intensa no Gran Chaco coincidiu com a La Niña de 2020 a 2022, enquanto a Amazônia teve um período seco durante o El Niño de 2015.

Além disso, foi constatado que, quando ocorre o El Niño, o risco de incêndios aumenta no norte da Amazônia, enquanto a La Niña eleva esse risco na parte central da América do Sul.

⛈️☀️️ El Niño X La Niña: O El Niño é a fase positiva do fenômeno El Niño-Oscilação Sul (ENOS), com aquecimento das águas do Pacífico Equatorial. Isso traz verões mais quentes e invernos menos rigorosos no Brasil. Já a La Niña é a fase negativa, com resfriamento das águas, resultando em chuvas no Norte e Nordeste e tempo seco no Centro-Sul. Entre essas fases, há também a fase neutra, com efeitos climáticos menos claros.

Para Ana Paula Cunha, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), essa atual seca de 2023-2024 tem um fator ainda mais agravante: o aumento das temperaturas do Atlântico Tropical Norte, também relacionado às mudanças climáticas.

Isso altera o comportamento das zonas de convergência, que poderiam trazer chuvas para o Norte, agravando a seca.

"O aumento desses eventos de seca e calor está ligado, primeiramente, ao aquecimento global, que provoca o aumento das temperaturas dos oceanos e, consequentemente, mudanças nos padrões de chuvas no Brasil. Em segundo lugar, a remoção da cobertura vegetal agrava a situação, pois altera as trocas de calor e água entre a superfície e a atmosfera, prolongando a estação seca e elevando as temperaturas", diz Cunha.

No começo deste mês, a Organização Meteorológica Mundial (OMM) afirmou que há 60% de probabilidade de surgirem condições de La Niña no final deste ano.

A atual estimativa aponta que houve uma "redução" da probabilidade de ocorrência do fenômeno. Em junho, era de 70% a chance de o La Niña se consolidar entre agosto e novembro, segundo a OMM.

A agência da ONU alertou, porém, que o aquecimento do planeta em longo prazo permanece.

 

Fonte: Por Áurea Carolina e Beatriz Pagy, em Outras Palavras/g1

 

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