segunda-feira, 30 de setembro de 2024

As queimadas na Amazônia e os rios voadores que viraram nuvens de fumaça

O Rio Madeira virou um deserto de areia onde as pessoas precisam caminhar durante horas no calor até chegar ao fio que resta de um dos cursos de água mais caudalosos do mundo. Muralhas extensas de chamas consomem as margens do Rio Xingu, no Mato Grosso. O horizonte de São Paulo foi tingido de grafite pela fumaça que também deu ao Sol um tom de vermelho sangue.

São muitas as imagens distópicas produzidas pela emergência climática que vivemos no país. Depois de cinco minutos consumindo vídeos e fotos no Instagram ou lendo o noticiário fica difícil não jogar um olhar preocupado para o grupo de crianças brincando na rua. Em que planeta crescerão? Um mais hostil, certamente. E nós, população de meia idade, em que mundo envelheceremos?

Mas talvez a representação mais reveladora da crise ambiental seja a imagem de satélite mostrando a fumaça dos incêndios florestais cobrindo parte do mapa brasileiro, desde a Amazônia até a Região Sudeste, espalhando-se pelo mesmo trecho do território percorrido pelos chamados rios voadores.

- Nossos rios voadores foram transformados em rios de fumaça - afirma o biólogo Lucas Ferrante, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). - Estamos vendo o início do fim do nosso modo de vida, que pode levar a desdobramentos graves, com colapso do agronegócio no Sul e no Sudeste, falta de água para a população e desastre ambiental.

Os rios voadores são um dos grandes serviços que a Amazônia presta para o clima da América do Sul. Estamos falando da umidade gerada pela evapotranspiração das árvores na maior floresta tropical do mundo, que desce do Norte pelo Oeste do Brasil, empurrada pela corrente de ar, e faz chover em estados como Paraná, São Paulo e Minas Gerais, além de Argentina e Paraguai. É um sistema fundamental.

As árvores captam água do subsolo e a transportam pelo seu sistema radicular até as folhas, que expelem umidade no ar por meio dos estômatos. Uma única sumaúma pode lançar até mil litros de água na atmosfera em um dia. Estima-se que a vazão dos rios voadores seja superior à do Rio Amazonas, o maior do mundo, com 200 mil metros cúbicos de água em movimento por segundo.

De acordo com Lucas Ferrante, até 70% das chuvas no Sul e no Sudeste do país são geradas pelos rios voadores. Ou seja, se não fosse por essa bomba d'água natural, o Paraná e o interior de São Paulo não seriam potências agrícolas. Sem o sopro molhado da Amazônia não haveria Agrishow em Ribeirão Preto. O agro brasileiro anda de Hilux 0km por causa da chuva enviada pela floresta de pé.

- Mas os rios voadores estão perdendo vazão - explica o biólogo, que monitora as consequências dessa redução no país. - Algumas partes da Amazônia, por causa do desmatamento, já não são mais capazes de exportar água. Com isso, o regime de chuvas no Sul e no Sudeste está sendo afetado. Um dos efeitos disso é declínio na população de animais nativos da Mata Atlântica.

O setor agropecuário vem sentindo essa realidade. No Norte e Noroeste do Paraná, áreas dentro da zona de atuação dos rios voadores, houve uma queda na produção de soja de até 25% no início deste ano, devido à falta de chuvas. Em junho, diferentes cidades no estado cancelaram suas tradicionais festas do milho devido à quebra de safra, também causada pela estiagem na região.

- Pior vai ser quando o problema gerar desabastecimento de água para a própria população. O Sistema Cantareira, por exemplo, que abastece a Grande São Paulo, depende diretamente desse transporte de umidade da Amazônia. A parte mais vulnerável da população vai morrer de sede - prevê Ferrante, autor de diferentes estudos sobre os prejuízos do desmatamento para a Bacia Amazônica e o país.

O termo "rios voadores" foi popularizado pela ciência no início do século. Surgiu de forma espontânea, quando o climatologista peruano José Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), conversava com o aviador e explorador Gerard Moss, tentando explicar para ele como funcionava o transporte do vapor de água expelido da Amazônia para a parte de baixo do território nacional.

Inspirado nessa imagem, Moss, um piloto inglês radicado no Brasil, criou o projeto Rios Voadores, em 2007, no qual ele, conduzindo um monomotor, seguia esse corredor aéreo invisível, da Amazônia até o Sudeste, coletando amostras para análise. Mesmo sem formação de cientista, o aviador deixou uma contribuição para a academia. Moss morreria em 2022, aos 66 anos, de complicações causadas pelo mal de Parkinson.

Há mais de dez anos, enquanto a expressão vinha sendo popularizada pela ciência, pesquisadores alertavam que o desmatamento punha em risco a manutenção dos rios voadores para o regime de chuvas no Brasil. No relatório "O futuro climático da Amazônia" (2014), o cientista Antônio Nobre já alertava que o desmatamento da floresta reduziria sua transpiração e agravaria a seca no país.

- Estamos vivendo na pele as previsões mais pessimistas, enquanto o presidente Lula trabalha para agravar a situação - diz Ferrante. - Ele assinou uma ordem de serviço para asfaltar 20 quilômetros da BR-319, que passa por um bloco de floresta muito preservado. E todos sabemos que as estradas são os grandes vetores de desmatamento na Amazônia. Se asfaltar, vai ser o fim daquela área.


Fonte: Um só Planeta


 

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