EDUCAÇÃO: Deformação em larga escala
Se as crianças são
tidas por grande parte da sociedade como o futuro de um país e do planeta, os profissionais
responsáveis por sua educação representam um elo central entre presente e
futuro. No Brasil, uma figura-chave na educação infantil e nos anos iniciais do
Ensino Fundamental é o pedagogo. Não é à toa, portanto, que a formação desses
profissionais é fonte de disputas há mais de um século no país. Nas últimas
décadas, no entanto, os cursos de Pedagogia têm passado por uma transformação
sem precedentes, marcada pela expansão e pela mercantilização, que podem
impactar diretamente a qualidade dos profissionais que serão responsáveis pela
educação das crianças brasileiras.
Desde a década de
1990, o Brasil passa por uma expansão nunca antes vista no número de matrículas
no Ensino Superior. Entretanto, essa expansão não ocorreu de forma uniforme.
Enquanto o número de matrículas em instituições públicas aumentaram de 578.414,
em 1990, para pouco mais de dois milhões, em 2022 (259%), as matrículas nas
instituições privadas passaram de 961.455, em 1990, para 7,3 milhões, em 2022
(666%). De acordo com o último Censo da Educação Superior, as instituições
privadas já respondem por 78% de todas as matrículas do Ensino Superior
brasileiro, e um novo fator passa a ter um peso considerável nesse cenário: a
Educação a Distância (EaD).
As matrículas em
cursos de graduação presenciais têm reduzido consideravelmente no país desde
2015, acompanhadas pelo crescimento dos cursos a distância. Em 2016, o ensino
presencial contava com cerca de 6,6 milhões de estudantes matriculados, e a
modalidade a distância tinha apenas 1,3 milhão. Em 2022, as matrículas
presenciais correspondiam a cerca de 5,1 milhões, ao passo que as matrículas no
EaD saltaram para 4,3 milhões.
Apesar de o ensino
privado no Brasil ter iniciado nas instituições católicas, o cenário que se
apresenta nos últimos anos está longe dessa origem, com a dominação de poucos
grupos privados que atuam pela lógica do mercado financeiro. Esse domínio se
expressa em várias frentes, inclusive na oferta de cursos, com a priorização
daqueles de menor valor de manutenção, como é o caso dos cursos de Ciências
Sociais Aplicadas e das licenciaturas. É onde entra a Pedagogia.
Um estudo conduzido
por Maria Angélica Minhoto, Carlos Eduardo Bielchowsky e Thiago Borges Aguiar,
pesquisadores do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência
(SoU_Ciência), revela que já é possível mensurar os impactos daquilo que os
autores chamam de uma “deformação em larga escala” do ensino da Pedagogia.
O estudo aponta que,
em 2021, 59,9% das matrículas e 70,8% dos ingressos em cursos de Pedagogia
concentravam-se em Instituições de Ensino Superior pertencentes aos dez maiores
grupos privados do país, com a maior parte dessas matrículas inseridas no EaD.
Essas instituições apresentam uma presença mínima de pós-graduação e pesquisa,
além de oferecerem condições precárias para o trabalho docente. Conforme
identificado pelos pesquisadores, a relação entre o número de matrículas e o
número de docentes com dedicação equivalente a 40 horas varia de 84,7
estudantes por docente a até 516,3 estudantes por docente. O número vai muito
além do observado em instituições privadas em geral, que é de 35,7 estudantes
para cada docente.
Para analisar as
consequências desse cenário, os pesquisadores consideraram as notas do Exame
Nacional de Desempenho do Estudante (Enade) e dados de evasão. Aplicado desde
2004, o Enade avalia o rendimento das pessoas que concluíram a graduação em
relação aos conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares de
seus respectivos cursos, além do desenvolvimento de competências e habilidades
necessárias à atuação profissional e do nível de atualização em relação à
realidade brasileira e mundial.
O Enade utiliza uma
escala de um a cinco, sendo um a menor nota e cinco a maior. Se considerarmos
todas as Instituições de Ensino Superior privadas, em 2021, 76,5% dos
estudantes de Pedagogia EaD encontravam-se em cursos com conceito um ou dois no
Enade. Por outro lado, se o recorte for feito apenas para as universidades
particulares, onde se concentram os grandes grupos, o número aumenta para
88,4%, o que ilustra a associação entre a mercantilização e a queda da
qualidade da formação.
“Os resultados do
Enade não representam, por si só, um indicador de qualidade da formação dos
pedagogos dessas instituições”, explicam os pesquisadores. De acordo com eles,
a avaliação em larga escala permite perceber como os pedagogos formados no EaD
dos grandes grupos privados têm acesso a menos oportunidades de estudo,
reflexão e aprendizado. “Trata-se de uma formação tão precarizada que a maioria
dos estudantes não consegue mobilizar saberes para acertar mais do que 40% das
questões da prova”, completam.
Outro aspecto apontado
pelo estudo é a evasão, que mostra que os grandes grupos acumularam, em cinco
anos, taxas de evasão 27% maiores do que as demais Instituições de Ensino
Superior privadas e 75% maiores do que as das instituições públicas. Considerando
que esses grupos concentram a maior parte das matrículas, é um dado que chama
atenção. Na prática, essas instituições, que concentram mais de dois terços dos
ingressantes em cursos de Pedagogia no Brasil, formam menos da metade de seus
estudantes. Para os autores, isso representa um processo de exclusão de grande
parte dos graduandos, que continuam acumulando dívidas relativas às
mensalidades.
Engana-se quem imagina
que os impactos dessa realidade se resumem à frustração dos planos daqueles que
apostaram na transformação de vida pelo Ensino Superior. Apesar das altas taxas
de evasão, de acordo com o Mapa do Ensino Superior Brasileiro 2023, do Instituto
Semesp, a Pedagogia foi a área com o maior número de concluintes na modalidade
a distância no período de 2017 a 2021. Foram cerca de 433 mil concluintes,
número três vezes maior do que o curso de Administração, segunda posição na
lista.
É importante destacar,
ainda, que esses graduados não necessariamente passam a atuar nas salas de
aula, como mostra o levantamento que avaliou a relação de concluintes de cursos
de licenciatura e o número de licenciados que ingressam na carreira docente.
Dentre os profissionais formados de 2010 a 2021, apenas 30% exerciam
efetivamente o trabalho de professores do Ensino Básico em 2022, fenômeno que
tem ficado conhecido como apagão de professores no Brasil.
Há de se questionar as
bases que fundamentam a expansão do Ensino Superior privado em nosso país e a
qualidade dos profissionais que estão se formando, especialmente no caso da Pedagogia, que serão
responsáveis pela educação daqueles que representam o futuro do país.
Fonte: Por Mariana
Ceci e Anna Miranda, no Le Monde
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