quinta-feira, 19 de setembro de 2024

EDUCAÇÃO: Deformação em larga escala

Se as crianças são tidas por grande parte da sociedade como o futuro de um país e do planeta, os profissionais responsáveis por sua educação representam um elo central entre presente e futuro. No Brasil, uma figura-chave na educação infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental é o pedagogo. Não é à toa, portanto, que a formação desses profissionais é fonte de disputas há mais de um século no país. Nas últimas décadas, no entanto, os cursos de Pedagogia têm passado por uma transformação sem precedentes, marcada pela expansão e pela mercantilização, que podem impactar diretamente a qualidade dos profissionais que serão responsáveis pela educação das crianças brasileiras.

Desde a década de 1990, o Brasil passa por uma expansão nunca antes vista no número de matrículas no Ensino Superior. Entretanto, essa expansão não ocorreu de forma uniforme. Enquanto o número de matrículas em instituições públicas aumentaram de 578.414, em 1990, para pouco mais de dois milhões, em 2022 (259%), as matrículas nas instituições privadas passaram de 961.455, em 1990, para 7,3 milhões, em 2022 (666%). De acordo com o último Censo da Educação Superior, as instituições privadas já respondem por 78% de todas as matrículas do Ensino Superior brasileiro, e um novo fator passa a ter um peso considerável nesse cenário: a Educação a Distância (EaD).

As matrículas em cursos de graduação presenciais têm reduzido consideravelmente no país desde 2015, acompanhadas pelo crescimento dos cursos a distância. Em 2016, o ensino presencial contava com cerca de 6,6 milhões de estudantes matriculados, e a modalidade a distância tinha apenas 1,3 milhão. Em 2022, as matrículas presenciais correspondiam a cerca de 5,1 milhões, ao passo que as matrículas no EaD saltaram para 4,3 milhões.

Apesar de o ensino privado no Brasil ter iniciado nas instituições católicas, o cenário que se apresenta nos últimos anos está longe dessa origem, com a dominação de poucos grupos privados que atuam pela lógica do mercado financeiro. Esse domínio se expressa em várias frentes, inclusive na oferta de cursos, com a priorização daqueles de menor valor de manutenção, como é o caso dos cursos de Ciências Sociais Aplicadas e das licenciaturas. É onde entra a Pedagogia.

Um estudo conduzido por Maria Angélica Minhoto, Carlos Eduardo Bielchowsky e Thiago Borges Aguiar, pesquisadores do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência), revela que já é possível mensurar os impactos daquilo que os autores chamam de uma “deformação em larga escala” do ensino da Pedagogia.

O estudo aponta que, em 2021, 59,9% das matrículas e 70,8% dos ingressos em cursos de Pedagogia concentravam-se em Instituições de Ensino Superior pertencentes aos dez maiores grupos privados do país, com a maior parte dessas matrículas inseridas no EaD. Essas instituições apresentam uma presença mínima de pós-graduação e pesquisa, além de oferecerem condições precárias para o trabalho docente. Conforme identificado pelos pesquisadores, a relação entre o número de matrículas e o número de docentes com dedicação equivalente a 40 horas varia de 84,7 estudantes por docente a até 516,3 estudantes por docente. O número vai muito além do observado em instituições privadas em geral, que é de 35,7 estudantes para cada docente.

Para analisar as consequências desse cenário, os pesquisadores consideraram as notas do Exame Nacional de Desempenho do Estudante (Enade) e dados de evasão. Aplicado desde 2004, o Enade avalia o rendimento das pessoas que concluíram a graduação em relação aos conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares de seus respectivos cursos, além do desenvolvimento de competências e habilidades necessárias à atuação profissional e do nível de atualização em relação à realidade brasileira e mundial.

O Enade utiliza uma escala de um a cinco, sendo um a menor nota e cinco a maior. Se considerarmos todas as Instituições de Ensino Superior privadas, em 2021, 76,5% dos estudantes de Pedagogia EaD encontravam-se em cursos com conceito um ou dois no Enade. Por outro lado, se o recorte for feito apenas para as universidades particulares, onde se concentram os grandes grupos, o número aumenta para 88,4%, o que ilustra a associação entre a mercantilização e a queda da qualidade da formação.

“Os resultados do Enade não representam, por si só, um indicador de qualidade da formação dos pedagogos dessas instituições”, explicam os pesquisadores. De acordo com eles, a avaliação em larga escala permite perceber como os pedagogos formados no EaD dos grandes grupos privados têm acesso a menos oportunidades de estudo, reflexão e aprendizado. “Trata-se de uma formação tão precarizada que a maioria dos estudantes não consegue mobilizar saberes para acertar mais do que 40% das questões da prova”, completam.

Outro aspecto apontado pelo estudo é a evasão, que mostra que os grandes grupos acumularam, em cinco anos, taxas de evasão 27% maiores do que as demais Instituições de Ensino Superior privadas e 75% maiores do que as das instituições públicas. Considerando que esses grupos concentram a maior parte das matrículas, é um dado que chama atenção. Na prática, essas instituições, que concentram mais de dois terços dos ingressantes em cursos de Pedagogia no Brasil, formam menos da metade de seus estudantes. Para os autores, isso representa um processo de exclusão de grande parte dos graduandos, que continuam acumulando dívidas relativas às mensalidades.

Engana-se quem imagina que os impactos dessa realidade se resumem à frustração dos planos daqueles que apostaram na transformação de vida pelo Ensino Superior. Apesar das altas taxas de evasão, de acordo com o Mapa do Ensino Superior Brasileiro 2023, do Instituto Semesp, a Pedagogia foi a área com o maior número de concluintes na modalidade a distância no período de 2017 a 2021. Foram cerca de 433 mil concluintes, número três vezes maior do que o curso de Administração, segunda posição na lista.

É importante destacar, ainda, que esses graduados não necessariamente passam a atuar nas salas de aula, como mostra o levantamento que avaliou a relação de concluintes de cursos de licenciatura e o número de licenciados que ingressam na carreira docente. Dentre os profissionais formados de 2010 a 2021, apenas 30% exerciam efetivamente o trabalho de professores do Ensino Básico em 2022, fenômeno que tem ficado conhecido como apagão de professores no Brasil.

Há de se questionar as bases que fundamentam a expansão do Ensino Superior privado em nosso país e a qualidade dos profissionais que estão se formando,  especialmente no caso da Pedagogia, que serão responsáveis pela educação daqueles que representam o futuro do país.

 

Fonte: Por Mariana Ceci e Anna Miranda, no Le Monde

 

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