O que explica recorde de incêndios no
Pantanal
Imagine a cena: um
caminhão rodando por uma estrada solta uma pequena faísca que é suficiente para
fazer pegar fogo na vegetação ao lado.
O fogo se espalha tão
rapidamente que alcança o próprio caminhão, que pega fogo e explode.
Pode parecer uma cena
de filme de ação, mas aconteceu de fato, numa estrada do Pantanal. E uma série
de fatores contribuem para tornar possível uma cena como essa na região.
De início, dá para ver
que o Pantanal atingiu, entre agosto e setembro, a "Regra dos 30"
(que é uma expressão comum entre as pessoas que trabalham com fogo): 30 dias
sem chover, umidade abaixo de 30%, temperatura acima de 30ºC e ventos acima de
30 km/h.
Mas, além da conjunção
de tantos 30s, essa é uma região forjada no fogo, dependente dele. É uma área
úmida, onde não se imagina o fogo como parte da paisagem natural. Mas ele é
fundamental para a manutenção das características do local.
Os lugares que mais
queimam no Pantanal são também os lugares que mais inundam, semelhante ao que
ocorre no delta do Okavango, em Botsuana. Nos períodos úmidos, há muita
produção de matéria orgânica.
Muitos dos capins do
Pantanal são adaptados ao fogo, e produzem muita matéria seca, ou seja, crescem
e, quando rebrotam, o capim do ano anterior seca e permanece ali. Nos períodos
secos, essa biomassa produzida fica disponível para queima.
Atualmente, o Pantanal
está vivendo um período de uma seca extrema, que começou em 2019.
Nesse tempo, só houve
um ano de cheia: 2023. Então, toda a biomassa produzida na cheia do ano passado
é hoje material passível de entrar em combustão.
• Como acontecem as cheias e secas no
Pantanal?
O que chamamos de
Pantanal é, na verdade, um lugar onde chove pouco. Da borda leste para a borda
oeste do Pantanal, temos uma precipitação média de cerca de 1.000 mm/ano.
Seria quase clima
quase de semiárido, não fossem as chuvas nas cabeceiras. Da parte norte do
Pantanal, vêm as águas dos rios Paraguai e Cuiabá, que são os mais caudalosos.
Da parte leste, principalmente dos rios Aquidauana e Miranda.
Quando esses rios
vertem grande volume de água, eles transbordam e o Pantanal inunda.
E o que temos
observado nesses últimos anos é um decréscimo das chuvas, de uma maneira geral,
nas cabeceiras. Então, no Cerrado e um pouco já na transição para a Amazônia
(áreas das cabeceiras desses rios), está chovendo menos.
Historicamente, a
região tem os ciclos plurianuais de seca e cheia. A série mais longa de dados
que temos é do rio Paraguai, onde a Marinha faz medições desde 1900. Do início
das coletas até 1960, houve bastante oscilação, com anos mais cheios e anos mais
secos.
Em 1960, o Pantanal
entrou num ciclo de seca, até 1974, com alguns poucos anos de cheias no meio,
como agora em 2023. De 1974 até 2018, o Pantanal viveu um ciclo de grandes
cheias, até que, em 2019, voltamos ao padrão de 1960.
Há certamente na
região uma questão cíclica. E isso se alia aos eventos extremos, que são efeito
das mudanças climáticas. Estamos, portanto, vivendo um ciclo de seca,
exacerbado pelos eventos extremos.
E estamos ainda em um
período de aprendizagem. Como estamos num ciclo de seca que começou em 2019,
depois de um longo período de cheias, as pessoas mais novas, mesmo as que estão
acostumadas ao Pantanal, ainda não viveram um ciclo de seca como esse de agora.
Para eles é uma novidade e pouca gente sabe o que fazer.
• Resiliência e adaptação
Em 2024 convergiram
todos esses fatores: a regra dos 30, a grande quantidade de biomassa produzida
no ano anterior de cheias, um ciclo de seca, mudanças climáticas, período de
aprendizagem.
Isso faz com que esse
ano a região enfrente incêndios que superam o registrado no mesmo período de
2020, ano recorde de queimadas.
E a esses fatores se
junta ainda outro: a capacidade de adaptação da flora local para essa
alternância de fogo e água.
O Pantanal é mais
preparado para o fogo do que a Amazônia. Por aqui, um ambiente, quando muito
sensível, leva cerca de 20 anos para se recuperar.
Na Amazônia, há
registro de regiões que demoraram mais de 40 anos para se recuperar, ou que
nunca voltaram a ser o que eram.
Algumas áreas do
Pantanal, como as matas ciliares, são mais sensíveis ao fogo.
Dependendo da
intensidade, o fogo vai moldar como essa mata ciliar vai crescer, restrita a
árvores que consigam se estabelecer nesses ambientes.
O Cerrado tem cerca de
12 mil espécies da flora, contando árvores, arbustos, ervas e todos os outros
hábitos de crescimento.
O Pantanal tem apenas
2.500 para todos os hábitos de crescimento, porque sobrevivem aqui apenas as
que conseguem driblar a questão da inundação e também do fogo.
Já os campos
inundáveis são extremamente resistentes ao fogo: você queima hoje, amanhã eles
começam a rebrotar.
Algumas gramíneas
podem crescer junto com a inundação e chegar a 5m de altura — às vezes ficam
maiores que a cana-de-açúcar.
Mesmo quando os campos
não inundam, só a subida do lençol freático leva a uma produção grande de
biomassa.
O efeito desse fogo
associado a inundação é tornar a paisagem mais aberta. Depois que uma área
inunda, só vão germinar as árvores que conseguem conseguem germinar embaixo
d'água ou que resistem a inundação após a germinação no seco.
Com a ocorrência de
fogo, essas árvores que germinaram e/ou cresceram sob a influência da
inundação, podem morrer. A tendência é que os ambientes fiquem mais abertos,
com árvores e arbustos substituídos por densas áreas de campo com gramíneas.
• Nos grandes incêndios, perdem todos
Recentemente o governo
federal aprovou a Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo, e o Mato
Grosso do Sul também aprovou sua lei estadual do manejo.
Esse manejo envolve
todo um trabalho educativo, de valorização do manejo tradicional que as pessoas
fazem e definição dos momentos e lugares adequados para a realização desse
manejo.
Não é só controle e
combate de incêndios, mas um processo de conversar com as pessoas, planejar
quem vai queimar, quando vai queimar, quantas áreas vão queimar. Tudo isso para
reduzir a biomassa disponível para os períodos mais secos do ano.
Estávamos auxiliando o
governo do estado na criação de um programa de fogo prescrito em fazendas com o
uso da plataforma SIFAU, que foi desenvolvida pela UFRJ em parceria com a UFMS
para auxiliar o planejamento do Manejo Integrado do Fogo.
Com o uso do fogo
prescrito, é possível reduzir a biomassa através da queima preventiva num
período em que não há risco de incêndio para evitar que, no período mais seco,
exista combustível suficiente para gerar os grandes incêndios. É combater o
fogo com fogo.
Quando o governo
estava prestes a implementar o programa, os incêndios começaram. A queima
prescrita ficou em segundo plano, e agora lidamos com o combate.
Isso leva a prejuízos
em diversos níveis. Na questão de saúde, incêndios grandes produzem muita
fumaça, que afeta a saúde das pessoas, com o aumento de doenças respiratórias.
Na frente econômica, o
fogo pode destruir cercas, tratores e construções nas fazendas. Até o aeroporto
de Corumbá acaba ficando fechado por dias quando não há visibilidade para
pousos e decolagens.
Além disso, apesar da
capacidade de adaptação da flora local, se o fogo se torna muito frequente,
algumas espécies mais sensíveis vão eventualmente se tornar raras no sistema ou
até sumir.
Uma pesquisa em
andamento sobre liquens mostrou que as áreas de mata que pegaram fogo em 2020
não tinham liquens. Já áreas que pegaram fogo há 20 anos voltaram a tê-los.
É como um efeito
sanfona, que acontece também com a fauna da região. Mas esse efeito sanfona tem
um limite. Sem a implementação de uma política adequada de manejo do fogo, o
Pantanal tende a sofrer cada vez mais com essa conjunção de fatores, agravados
pelas mudanças climáticas.
• É preciso retirar o Cerrado da agonia
Neste último 11 de
setembro, houve poucas razões para comemorar o Dia Nacional do Cerrado. A
temporada de incêndios que assola o país há semanas tem devastado o bioma,
também conhecido como “coração das águas” e que abrange 10 estados e o Distrito
Federal. A savana mais biodiversa do planeta se estende por uma área duas vezes
menor do que a Amazônia, mas tem enfrentado um calvário equivalente, sem a
mesma visibilidade da maior floresta equatorial do mundo.
É no Cerrado que se
encontra o estado de Mato Grosso, o recordista em focos de incêndios nesta
temporada, com mais de 20 mil ocorrências. É no Cerrado, ainda, que se encontra
o conjunto de fatores que leva a uma reflexão sobre as prioridades nacionais em
meio à crise climática. O bioma em estado de agonia abriga o coração do
agronegócio, tido ora como vilão, ora como vítima da tragédia ambiental em
curso; reúne uma biodiversidade única, além de ser o epicentro de bacias
hidrográficas vitais; e, mais importante, é o ambiente natural onde estão
incrustados os Poderes da República.
Pasma e paralisada com
o avanço destruidor das chamas, a fumaça que encobre cidades inteiras e as
doenças respiratórias provocadas pelo ar seco e com fuligem, a opinião pública
assiste a uma ação descoordenada das autoridades brasileiras. O Executivo tem
mostrado certo grau de diligência no enfrentamento da tragédia, embora esteja
patente que o esforço tem sido insuficiente para conter as queimadas. O
Judiciário, particularmente na figura do ministro do Supremo Tribunal Federal
Flávio Dino, tem cobrado providências da União e dos estados para combater o
que o magistrado diagnosticou como “pandemia de incêndios” a castigar o país. E
o Legislativo? Está omisso. Os parlamentares estão mais preocupados com as
eleições municipais ou com a sucessão na Câmara dos Deputados, marcada para
fevereiro de 2025. Está evidente que o Congresso Nacional tem prioridades
outras do que a calamidade ambiental que se abate sobre o país.
Em uma iniciativa que
remete aos tempos de outra catástrofe nacional — a pandemia de covid-19 —,
setores da sociedade civil estão empenhados em sensibilizar o Poder público
sobre a agonia do Cerrado. Na semana passada, representantes de entidades
científicas e do terceiro setor entregaram ao presidente do STF, ministro Luís
Roberto Barroso, a Carta de Brasília 2024 em Defesa do Cerrado. No documento,
os signatários afirmam que o bioma tem sido negligenciado há décadas, e as
consequências estão cada vez mais próximas de se tornarem irreversíveis.
Entre as propostas
para salvar o Cerrado, há uma sequência tão didática quanto desafiadora.
Primeiro, é preciso interromper o processo de aniquilação do bioma, por meio de
combate rigoroso a ações criminosas e à negligência. Em seguida, urge
implementar políticas e práticas para abolir o modelo predatório de exploração
econômica e estimular o desenvolvimento sustentável. Por fim, fazse essencial
manter uma campanha permanente de valorização e preservação do bioma, em nome
das futuras gerações e da sobrevivência do patrimônio ambiental brasileiro.
Em alto e bom som, o
Cerrado pede socorro. É dever do Estado e da sociedade atender a esse chamado.
• Estamos sufocando: o que ainda falta
entender?
O ar está rarefeito,
cheio de fuligem. Névoa seca e densa; cheiro de fumaça por todo o canto;
redemoinhos de fogo; florestas devastadas pelo incêndio criminoso; pessoas
desabrigadas; animais mortos; pés queimados; indígenas expulsos dos seus
territórios. Biomas e mananciais em grave risco. O que se esperava para daqui a
décadas — caso não tomássemos providências imediatas — já está se
materializando neste tempo-espaço. É aqui e agora.
Já não falta tanto
tempo para tornarmos nosso ambiente insuportável. E seguimos na mesma toada da
destruição. Estamos esperando o que para entender que esta é a maior
emergência? É isso o que afeta a vida e o futuro do planeta — futuro não,
presente! Sem a proteção ao meio ambiente, não há economia pulsante; não há PIB
crescendo; não há saúde. Nem ar, nem água, nem vida.
Estou sem paciência
para a politização/ polarização ridícula — aquela da linha: ‘olha aí o governo
que você elegeu’ versus ‘veja aí a herança que o teu governo deixou’. O
apagamento do tema meio ambiente vem de tanto tempo que não dá para contar.
Cientistas têm feito alertas em série sobre as ameaças; ativistas fazem
protestos; cúpulas internacionais não chegam a consensos; acordos são assinados
e descumpridos. O adiamento da prioridade é sinal de novo apagamento.
Ignorância é fogo que arde e queima.
A devastação parece
contar com apoio de uma espécie que não nasce em árvore: o dinheiro. O poder
econômico dá as mãos ao poder político — aliás, creio que isso é uma coisa só —
para sacrificar a vida do planeta. Dos escritórios às mansões com ar-condicionado,
brotam as ideias de destruição.
Os mapas pintados de
pontos laranjas, mostrando a dimensão das queimadas, e as imensas linhas de
fogo alto ficam na nossa memória e entristecem. Assim como as terríveis
enchentes e enxurradas que, ano a ano, pioram e levam vidas e histórias de
vidas. Lembro-me dos tempos em que a seca no Nordeste produzia imagens também
da fome e do desespero das famílias sem água e sem comida, enquanto larápios
roubavam dinheiro público. Nada aprendemos? Continuaremos sem nada aprender?
Não falta informação,
faltam boa vontade, conscientização, decência e vergonha na cara. Um planeta
tão rico e diverso inerte à emergência climática, refém do desmatamento,
assistindo pacificamente à devastação em escala. O que podemos fazer? Eu me
pergunto — e você? Eu tenho me aproximado cada vez mais da natureza e isso é um
bálsamo para o meu dia a dia. Caminhadas pelo Cerrado; canoa no lago.
Sabemos o básico para
coletivamente mudar essa trajetória de destruição. Individualmente, podemos
alterar a nossa rotina diária, mas não será o suficiente se não for um
compromisso genuíno da sociedade. São necessárias políticas públicas mais
agressivas, punições exemplares e compromissos reais.
A proposta de criar o
Instituto de Pesquisa do Cerrado e a união de ativistas, do terceiro setor e de
cientistas, como apresentamos recentemente na matéria Salvem o Cerrado,
publicada na editoria Brasil, pode ser uma ideia bem interessante para proteger
nosso bioma. O agro não pode ser inimigo, e há formas sustentáveis de
prosperar, com tecnologia e ciência aplicada ao campo. Temos tratado isso no
CB.Agro, trazendo temas e soluções pertinentes.
Bombeiros, brigadistas
e policiais não serão em número suficiente para fazer sozinhos o que é dever de
uma sociedade inteira, que deve ser levada a novos caminhos por quem está no
poder. Solitariamente, podemos pouco. Solidariamente, faremos muito.
Fonte: BBC News Brasil/Correio
Braziliense
Nenhum comentário:
Postar um comentário