Julian Rodrigues: ‘Uma cadeirada justa e
necessária’
Nem carinhos, nem
argumentos, nem flores. Nada disso foi capaz de deter o fascismo histórico. E
não faz nem cócegas no neofascismo contemporâneo. A extrema direita se
fortalece em todo o mundo, cavalgando a crise do modelo capitalista neoliberal
que eles mesmos promovem e defendem. Donald Trump nos EUA ou Giorgia Meloni na
Itália são duas caricaturas que sintetizam esse momento de retrocesso
civilizatório no qual estamos mergulhados.
O fenômeno
bolsonarista pôde ser derrotado eleitoralmente em virtude da enorme força da
classe trabalhadora brasileira organizada (sobretudo no PT) e da liderança
excepcional de Luis Inácio Lula da Silva. Mas foi apenas um breve respiro. Os
neofascistas continuam fortes e na ofensiva, tanto nas redes sociais, como nas
ruas e nos parlamentos.
Nas eleições
municipais de 2024 assistimos variações, atualizações, adaptações e também a
radicalização do movimento neofascista. O caso mais emblemático é a disputa na
capital paulista.
Pablo Marçal
representa o ápice das ideias de extrema direita, da cultura hiperneoliberal e
do autoritarismo antidemocrático. Sem partido estruturado, sem apoio relevante
no establishment político e empresarial, sem tempo de TV, sem experiência
eleitoral prévia, o coach evangélico fundamentalista, que enriqueceu vendendo
cursos para brancos urbanos falidos e intelectualmente limítrofes — tornou-se a
peça principal do processo político-eleitoral brasileiro nesse momento.
Pablo Marçal é de
extrema direita, mas não tem história orgânica nesse campo. Ninguém o conhece
de fato e ninguém confia nele. Pablo Marçal é um noveau riche, um social
climber, longe dos centros de poder tradicionais das classes dominantes. Além
de não ser paulista, mineiro, gaúcho e nem ao menos carioca, tem a audácia dos
imprudentes, a autoestima bizarra dos “social climbers”, a expertise dos
estelionatários experientes e, sobretudo, a confiança dos que não tem origem
nem destino.
São Paulo tem “a força
da grana que ergue e destrói coisas belas”. Cosmopolita, vanguardista é tão
rica quanto desigual. Condensa o melhor e o pior do Brasil. São Paulo é berço
de lutas centenárias, epicentro das jornadas democráticas e berço do PT. E é um
dos lugares mais difíceis, caros, inóspitos, brutais para os de baixo. São
Paulo elegeu Luiza Erundina em 1988. Marta Suplicy em 2000. Fernando Haddad em
2012. Aqui, Lula venceu Jair Bolsonaro no último pleito.
Mas São Paulo foi e
também é Jânio, Maluf, Collor, Bolsonaro, Tarcísio. Foi Covas, FHC, Serra,
Marta, Eduardo, Haddad e Lula. Tudo ao mesmo tempo: berço das manifestações de
2013, mas também do “Ele não”. São Paulo, capital, é muito menos conservadora e
reacionária do que o interior do Estado.
São Paulo não elegeu
Ricardo Nunes, mero vereador fisiológico, medíocre, ligado à extrema direita
católica, o político mais sem carisma de todo o universo. Ricardo Nunes foi uma
maldição maior, a maldade suprema que o PSDB e Bruno Covas nos fizeram a todos
paulistanos, nascidos ou que aqui escolheram viver.
Bruno Covas tinha
câncer terminal, mas disputou e venceu as eleições de 2020. Egoísta e
mesquinho, sabia que não iria sobreviver ao primeiro ano de seu mandato. Fez
questão, contudo, de disputar a eleição escolhendo como seu vice e nos
empurrando goela abaixo esse traste obscuro que hoje nos governa.
Ricardo Nunes só não é
tão mal avaliado porque ninguém o conhece. E muito menos sabe o que ele fez ou
deixou de fazer nos últimos anos. Aliás, tal grau de mediocridade está até lhe
sendo benéfica porque tem o permitido criar um personagem na propaganda eleitoral
prefeito humilde que fez muita coisa e por alguma razão a gente não sabia
ainda.
Considerando as CNTP
(condições normais de temperatura e pressão) o pleito paulistano seria
polarizado pelo intendente bolsonarista apoiado em busca da reeleição versus o
desafiante de esquerda. O direitista com apoio de Jair Bolsonaro e do
governador Tarcísio de Freitas, o progressista com apoio do presidente Lula e
dos movimentos sociais.
Pablo Marçal chegou
chutando tudo, bagunçando o cenário. Mais à direita que o próprio Jair
Bolsonaro, radicalmente oportunista, sem vínculos orgânicos com a burguesia ou
a grande mídia. Chegou chutando tudo, sem peias, sem nenhum compromisso com a
própria estrutura do sistema eleitoral burguês. Tão arrogante, agressivo,
pretensioso e disruptivo que causou e causa perplexidade generalizada.
Enquanto isso vai
avançando sobre um eleitorado sedento de novidades, cansado da direita
tradicional, totalmente antipetista. Na prática, Pablo Marçal é um candidato
mais bolsonarista do que o bolsonarismo veio a se tornar.
Enquanto isso, a
candidatura de Guilherme Boulos fez um aggiornamento de imagem e programa tão
significativo que chega a confundir sua base social, militante e eleitoral. A
ponto de termos que assistir à insossa “Tabata liberal” protagonizar os ataques
mais duros contra Pablo Marçal. Fica difícil entender e se identificar com esse
Boulos que está sendo vendido na atual campanha. Há até mêmes comparando-o com
personagens daquele desenho “ursinhos carinhosos”.
Todavia, há (ou havia)
outro personagem que se queria outsider, o carismático apresentador de
programas policialescos, José Luiz Datena. Ele, que em toda eleição brincava de
ser candidato e depois recuava, resolveu se lançar de verdade justamente na
disputa mais complicada para ele. Afinal, o completo espectro da direita está
preenchido (Marçal, Nunes, Tabata, Maria Helena).
Todas as pesquisas têm
indicado que Guilherme Boulos caminha para o segundo turno e, provavelmente seu
adversário será o atual prefeito. José Luiz Datena e Tabata Amaral têm caído.
Pablo Marçal estagnou (e pode vir a cair mais, intuo).
Pablo Marçal desde o
início mostrou que não joga conforme nenhuma regra. Perto dele, Jair Bolsonaro
parece um cara até razoável, um tiozão do churrasco que exagera quando em vez.
Há, aliás, uma diferença que me parece estrutural entre o bolsonarismo e o marçalismo.
A liderança do ex-capitão foi construída em mais de duas décadas de atuação
parlamentar e por meio de uma relação orgânica com as Forças Armadas. A adesão
de Jair Bolsonaro ao liberalismo tosco de um Paulo Guedes sempre pareceu
tática, de ocasião.
Já Pablo Marçal é
vinculado às ideologias mais radicalmente anti-Estado, pró-mercado,
pró-individualismo. Um coach-pastor. Mix muito bem costurado. Teologia da
prosperidade com auto-ajuda rudimentar para bobalhões brancos héteros das
classes médias pouco instruídas — mas muito ambiciosas. E, sobretudo,
ressentidas.
Pablo Marçal pode ir
ao segundo turno. E, se for, tende a vencer Guilherme Boulos. Na dúvida,
tentarão “passar um pano” e vendê-lo sem dentes, quase fofinho. Como já fizeram
com Jair Bolsonaro, aliás. Deu no que deu.
Sim, existe um
mal-estar no ar hipersseco desses dias na pauliceia desvairada. As elites
preferem Ricardo Nunes, obviamente. Mas, antes de qualquer coisa, são
pragmáticas e essencialmente anticomunistas, antipetistas, antipovo. Na dúvida,
perfumam o Pablo e o chamam de bebê fofo. Tudo em nome de derrotar o invasor de
casas barbudo e mal humorado e ainda por cima apoiado por Lula.
E a cadeirada, afinal?
Antes disso, uma nota rápida sobre os debates. A cada nova disputa eleitoral se
tornam menos úteis, mais monótonos e muito mais palco pra cortes em redes
sociais e no velho e bom horário eleitoral gratuito.
Muito cedo ainda o é
para qualquer avaliação peremptória sobre o “efeito cadeirada”. José Luiz
Datena se permitiu esse ato extremo porque já era desde sábado um ex-candidato
vivo, um zumbi. Parece que se arrependeu de não ter desistido dessa vez. Aliás,
um cara com a idade, o salário e o prestígio dele não tem nada a ganhar se
enfiando em disputas eleitorais acirradas. José Luiz Datena é o candidato do
PSDB, o que torna tudo mais patético e trágico também. Triste e doloroso fim do
partido de Montoro, Covas, Serra e Alckmin.
Isso tudo posto, a
cadeirada foi, além de divertida, didática. Simboliza um chega, um gesto
radical, mas imprescindível. Pode gerar algo como um “freio de arrumação”. Ou
não. Mas, no mínimo gerou centenas de mêmes e muita diversão gratuita. E duvido
que algum ser humano tenha tido peninha do Pablo Marçal. O imponderável nunca
nos abandona, o que torna as coisas menos monótonas, afinal.
E que a campanha de
Guilherme Boulos melhore, seja mais politizada, combativa e programática. Com
muito mais PT, mais Lula, mais Marta, mais mobilização social. E, sobretudo,
muito mais propostas objetivas para melhorar a vida das massas trabalhadoras de
São Paulo.
¨
O estilo Marçal de ser. Por Miguel Paiva
A elite se
escandaliza, a bela imprensa reage ofendida, os bem-pensantes se horrorizam, e
nós ficamos indignados, mas o pessoal da turma do Marçal, do Ramagem e de
tantos outros continua. O nível em São Paulo é assustador. Pobre do Boulos, que
tenta se manter na superfície programática, sem tanto sucesso. Quase se afoga
por conta dos ataques que sofre.
Essa linguagem
truculenta característica do Marçal já vimos antes começar a se desenvolver na
turma do Bolsonaro. Deputados eleitos, assessores, vereadores, prefeitos e
ministros, além do próprio presidente, baixaram o nível da discussão. Como o
projeto era demonizar a política, tudo foi colocado no mesmo cesto e ateado
fogo. Aliás, melhor não falar de fogo porque é a ilustração destruidora dessa
linguagem. Vamos destruir tudo, queimar tudo, derrotar todos em nome de Deus.
Foi assim e continua
sendo assim. A linguagem da violência pegou de tal modo que você ouve e sente
esses reflexos nas ruas, no trânsito, nos serviços e na população em geral.
Para que ter gentileza no trato se sou tratado como um animal? Pior. Animais, às
vezes, são tratados de modo mais civilizado. Não adianta mais reclamar na
cidade para que regras sejam cumpridas. Vale tudo. Vale tudo no trânsito na
hora da transgressão, do avanço de sinal, do desrespeito generalizado. Vale
tudo na convivência cívica, no respeito ao outro cidadão, que também deve te
respeitar. Vale tudo no jeito de falar e se comportar das pessoas.
Viver numa cidade como
Rio ou São Paulo hoje é um risco muito maior do que já foi. Além da violência
social, da criminalidade, dos assaltos e da luta desesperada pela
sobrevivência, temos a intolerância, a impaciência em relação ao outro, que
logo se torna seu inimigo, ao invés de seu aliado. É um individualismo sem
bases individuais para se sustentar. É um indivíduo desprovido de tudo,
sobretudo de cidadania, educação e presença do Estado. Se privatizarmos esse
pouco Estado que resta, aí sim, vamos viver no total abandono. Empresas
privadas não têm princípios sociais. Querem o lucro. E tem gente lutando por
isso. A extrema direita opta pelo neoliberalismo, pela economia de mercado e
pelo Estado mínimo, quase inexistente, porque quer distância de qualquer compromisso
social. Este é o grande problema que vivemos. Viramos uma selva privatizada,
sem fiscalização e sem regras. "Salve-se quem puder" não é um lema
construtivo. É um grito de desespero. Apesar de tudo que vem sendo feito,
estamos quase lá.
• Vítimas relatam fraudes bancárias
envolvendo Pablo Marçal: "Pegaram quase todo o meu salário"
Em 2005, uma
professora universitária do Rio Grande do Norte teve quase todo o seu salário
retirado de sua conta bancária por uma quadrilha especializada em fraudes
bancárias, que operava em várias partes do Brasil. Entre os envolvidos no
esquema estava Pablo Marçal, que hoje é candidato à prefeitura de São Paulo. A
professora, identificada apenas como A.C.F., relatou que notou a retirada de
mais de R$ 4.650 de sua conta e, ao procurar a agência da Caixa Econômica, foi
orientada a escrever uma carta para contestar as transações. A Polícia Federal
descobriu que a operação fazia parte de um golpe sofisticado que envolvia o
roubo de dados bancários e transferências fraudulentas.
“Foi muito complicado.
Eu precisava pagar contas e não tinha como pagar. Pegaram quase todo meu
salário”, lembrou.
Marçal, que na época
tinha 18 anos, foi preso temporariamente em agosto de 2005, acusado de
envolvimento com o grupo criminoso. A investigação revelou que ele participava
do esquema manipulando sistemas e-mails e computadores usados para acessar
contas bancárias de vítimas em diversos estados. Apesar da confissão de um dos
comparsas, que admitiu ter colaborado com Marçal, o candidato afirma que apenas
prestava serviços de informática e não tinha envolvimento direto nas fraudes.
Ele foi condenado a quatro anos e cinco meses de prisão em 2010, mas a pena foi
extinta em 2018 devido à demora no processo.
O esquema afetou
várias pessoas e pequenas empresas em todo o Brasil, incluindo clientes de
bancos como Caixa, Banco do Brasil e Bradesco. As vítimas variavam de
empresários a pessoas de baixa renda. A Polícia Federal utilizou escutas
telefônicas e apreensões de materiais para identificar os membros da quadrilha
e rastrear o destino dos fundos roubados, que passavam por várias contas antes
de serem sacados em diferentes localidades.
Fonte: A Terra é
Redonda/Brasil 247
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