quinta-feira, 19 de setembro de 2024

O Assédio numa sociedade assediada

Na semana passada nos surpreendemos com uma notícia bomba, publicada pelo site Metrópoles. A matéria do Jornalista Guilherme Amado referia, em primeira mão, o cometimento de assédio sexual contra mulheres, entre essas, a Ministra Anielle Franco da Igualdade Racial, praticado por um Ministro de Estado, Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania, pasta que ocupou até o dia 06 de setembro/24, quando foi demitido, sumariamente, pelo Presidente da República mediante a justificativa de ser insustentável a sua permanência a partir das acusações de assédio sexual imputadas a ele.

A notícia se alastrou nacional e internacionalmente em frações de segundos. Logo tomou conta da programação jornalística em vários veículos midiáticos. Nas redes sociais percebeu-se postagens sem a devida isenção, umas em defesa e outras já condenando o Ministro. Como se não bastasse tal precipitação, alguns posts sugeriam que as supostas vítimas viessem a público para o relato pessoal da suposta agressão sofrida.

Neste sentido é imperativo atentar-se ao princípio da presunção de inocência, aclamado no artigo 9º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, segundo o qual todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado.  No Brasil, a presunção de inocência está prevista no Art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, o qual determina que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

O ato de importunação sexual, tipificado no Art. 215-A do Código Penal (CP), estabelece: Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.  Já o assédio sexual, tipificado no Art. 216-A do CP, estabelece: Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena de detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. Tanto a importunação sexual, ato mais grave, como o assédio sexual, se provados, são inadmissíveis e sempre dolorosos, ainda mais se praticado por alguém, que em decorrência de sua formação tenha plena consciência dos efeitos da agressão e das repercussões absolutamente danosas e intimidadoras à vítima.

Na situação que envolve o ex Ministro Silvio Almeida e a Ministra Aniele Franco, o assédio sexual denunciado ocorreu entre colegas com mesma hierarquia. É importante referir que não há a necessidade de que a conduta corresponda precisamente ao tipo penal mencionado no Art. 216-A do CP. O ato praticado será considerado, em mesma medida, como assédio sexual.

O inesperado acontecimento impactou o país pela elogiada prática acadêmica e produção intelectual do ex-ministro, reconhecidos internacionalmente. O exercício ministerial de Silvio Almeida se encaixava perfeitamente com sua história de vida e de trabalho.

Um homem negro que a propósito de inúmeras e perversas adversidades por ter nascido num país eminentemente racista conseguiu driblar os vários óbices que estavam em seu caminho.

Num país em que o negro faz parte da camada mais pobre e alijada de meios que possa lhe possibilitar mudar a sua condição de excluído, alcançar uma expressiva ascensão social é verdadeiramente quase uma exceção. Silvio Almeida superou barreiras íngremes e surpreendeu. Por essas razões, a consternação de várias pessoas que vislumbraram na sua nomeação para o cargo de Ministro de Estado, um salto de qualidade num país que teima em perseverar no malfadado racismo estrutural, relevante conceito introduzido nos estudos realizados pelo ex ministro.

Por outro lado, também nos sensibilizamos pelo constrangimento das supostas vítimas, entre essas, a Anielle Franco, uma mulher também marcada pela negritude de sua pele, por sua história de luta e de superação de várias discriminações ao longo de sua existência, além de ser mulher num país de tradição patriarcal, que ainda coloca o feminino numa condição de vulnerabilidade e inferioridade em relação à superioridade masculina.

Nesse horizonte, a filósofa Carole Pateman assinala que “toda a sociedade civil é patriarcal. As mulheres estão submetidas aos homens tanto na esfera privada quanto na pública” (Livro O Contrato Sexual de Carole Pateman publicado pela editora Paz e Terra, 1993, p.167).

No Brasil, o patriarcado originariamente agrário e escravista, ainda se mantém enraizado na perspectiva cultural, não obstante tenha assumido nuances diferentes ao longo do tempo. A igualdade salarial e remuneratória entre homens e mulheres que exercem as mesmas atividades, por exemplo, teve que ser regulada recentemente no país pelo Projeto de Lei n° 1085, de 2023.

A mulher ainda é relegada, em certa medida, a subempregos por não ser aceita no mercado de trabalho privado pelo fato de ter filhos pequenos que dependem exclusivamente de seus cuidados. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as denúncias de violência contra integridade física da mulher acontecem a cada minuto (Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/). Dado assustador.

O sofrimento da mulher vítima de assédio sexual ocorre em dobro, durante a violação ao seu corpo e após tal acontecimento. De modo geral, as mulheres tem receio de denunciar o abuso, por absoluto constrangimento, pelo sentimento de menos valia, pela dor e pela exposição frente ao público e pelos julgamentos que possam advir. Não raro, a sociedade do atraso, do preconceito e do reforço da atmosfera machista culpabiliza a mulher pelo ato libidinoso que invadiu o seu corpo, sem o seu consentimento. A maioria das mulheres já sentiram na pele e na alma os vários tipos de assédio seja moral, seja sexual e em casos mais graves as importunações sexuais. Violências que em menor ou maior grau marcam a sua integridade biopsicossocial lhe causando uma sensação de impotência, marcada por um sentimento de indignação e revolta.

Segundo SOUZA et al., (2013): “A violência sexual contra a mulher é um problema de saúde pública que pode acarretar consequências médicas, psicológicas e sociais. As vítimas podem sofrer de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, ansiedade, transtornos alimentares, distúrbios sexuais e do humor.” (Artigo: Aspectos psicológicos de mulheres que sofrem violência sexual, Revista Reprodução e Climatério, Vol. 27, páginas 98-103).

Contudo, reafirmo a gravidade no ato de emitir, de modo antecipado e irresponsável impropérios sobre a pessoa suspeita de qualquer tipo crime que possa ou não ter cometido ou por outro lado, julgue de maneira desairosa as vítimas. Lembremos do consagrado princípio da presunção de inocência. Caberá ao acusado o direito à ampla defesa e após os tramites do devido processo legal, restará aguardar que a justiça seja realizada.

Diante do lamentável e triste episódio que, em boa medida, macula as vidas envolvidas e o próprio ideário de um governo progressista que se propôs a reconstruir o que foi destruído no passado, fica a tarefa de intensificar, com a devida atenção, a promoção da cultura de integridade em todos seus espaços, antes, durante e depois, embora a realidade material observada nas variadas dimensões institucionais brasileiras seja bem adversa.

Há uma clareza secular sobre as más condutas praticadas por várias personagens públicas, que ocupam cargos nos três poderes do país, brancas, ou negras, estas em menor número, já que os cargos exercidos por pessoas brancas ainda são hegemônicos. Há brancos que cometem reiteradamente crimes, no entanto, ainda não foram expurgados sumariamente dos poderes em que exercem suas representações, além de uma consequente punição legal que merecem. Nem tão pouco, tais crimes são desnudados com tanta veemência, como o caso que suscitou a escrita deste texto. É necessário, portanto, refletirmos com profundidade sobre essas questões e acerca das sutis palavras de Fiodor Dostoievski: “Compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das feras, mas isso é injuriar estas últimas”.

 

Fonte: Por Elisabeth Lopes, em Brasil 247

 

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