O Assédio numa sociedade assediada
Na semana passada nos
surpreendemos com uma notícia bomba, publicada pelo site Metrópoles. A matéria
do Jornalista Guilherme Amado referia, em primeira mão, o cometimento de
assédio sexual contra mulheres, entre essas, a Ministra Anielle Franco da
Igualdade Racial, praticado por um Ministro de Estado, Silvio Almeida, dos
Direitos Humanos e Cidadania, pasta que ocupou até o dia 06 de setembro/24,
quando foi demitido, sumariamente, pelo Presidente da República mediante a
justificativa de ser insustentável a sua permanência a partir das acusações de
assédio sexual imputadas a ele.
A notícia se alastrou
nacional e internacionalmente em frações de segundos. Logo tomou conta da
programação jornalística em vários veículos midiáticos. Nas redes sociais
percebeu-se postagens sem a devida isenção, umas em defesa e outras já
condenando o Ministro. Como se não bastasse tal precipitação, alguns posts
sugeriam que as supostas vítimas viessem a público para o relato pessoal da
suposta agressão sofrida.
Neste sentido é
imperativo atentar-se ao princípio da presunção de inocência, aclamado no
artigo 9º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, segundo o
qual todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado. No Brasil, a presunção de inocência está
prevista no Art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, o qual determina que
ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória.
O ato de importunação
sexual, tipificado no Art. 215-A do Código Penal (CP), estabelece: Praticar
contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer
a própria lascívia ou a de terceiro. Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos,
se o ato não constitui crime mais grave.
Já o assédio sexual, tipificado no Art. 216-A do CP, estabelece:
Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual,
prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência
inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena de detenção, de 1 (um)
a 2 (dois) anos. Tanto a importunação sexual, ato mais grave, como o assédio
sexual, se provados, são inadmissíveis e sempre dolorosos, ainda mais se
praticado por alguém, que em decorrência de sua formação tenha plena
consciência dos efeitos da agressão e das repercussões absolutamente danosas e
intimidadoras à vítima.
Na situação que
envolve o ex Ministro Silvio Almeida e a Ministra Aniele Franco, o assédio
sexual denunciado ocorreu entre colegas com mesma hierarquia. É importante
referir que não há a necessidade de que a conduta corresponda precisamente ao
tipo penal mencionado no Art. 216-A do CP. O ato praticado será considerado, em
mesma medida, como assédio sexual.
O inesperado
acontecimento impactou o país pela elogiada prática acadêmica e produção
intelectual do ex-ministro, reconhecidos internacionalmente. O exercício
ministerial de Silvio Almeida se encaixava perfeitamente com sua história de
vida e de trabalho.
Um homem negro que a
propósito de inúmeras e perversas adversidades por ter nascido num país
eminentemente racista conseguiu driblar os vários óbices que estavam em seu
caminho.
Num país em que o
negro faz parte da camada mais pobre e alijada de meios que possa lhe
possibilitar mudar a sua condição de excluído, alcançar uma expressiva ascensão
social é verdadeiramente quase uma exceção. Silvio Almeida superou barreiras
íngremes e surpreendeu. Por essas razões, a consternação de várias pessoas que
vislumbraram na sua nomeação para o cargo de Ministro de Estado, um salto de
qualidade num país que teima em perseverar no malfadado racismo estrutural,
relevante conceito introduzido nos estudos realizados pelo ex ministro.
Por outro lado, também
nos sensibilizamos pelo constrangimento das supostas vítimas, entre essas, a
Anielle Franco, uma mulher também marcada pela negritude de sua pele, por sua
história de luta e de superação de várias discriminações ao longo de sua existência,
além de ser mulher num país de tradição patriarcal, que ainda coloca o feminino
numa condição de vulnerabilidade e inferioridade em relação à superioridade
masculina.
Nesse horizonte, a
filósofa Carole Pateman assinala que “toda a sociedade civil é patriarcal. As
mulheres estão submetidas aos homens tanto na esfera privada quanto na pública”
(Livro O Contrato Sexual de Carole Pateman publicado pela editora Paz e Terra,
1993, p.167).
No Brasil, o
patriarcado originariamente agrário e escravista, ainda se mantém enraizado na
perspectiva cultural, não obstante tenha assumido nuances diferentes ao longo
do tempo. A igualdade salarial e remuneratória entre homens e mulheres que
exercem as mesmas atividades, por exemplo, teve que ser regulada recentemente
no país pelo Projeto de Lei n° 1085, de 2023.
A mulher ainda é
relegada, em certa medida, a subempregos por não ser aceita no mercado de
trabalho privado pelo fato de ter filhos pequenos que dependem exclusivamente
de seus cuidados. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as
denúncias de violência contra integridade física da mulher acontecem a cada
minuto (Disponível em:
https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/).
Dado assustador.
O sofrimento da mulher
vítima de assédio sexual ocorre em dobro, durante a violação ao seu corpo e
após tal acontecimento. De modo geral, as mulheres tem receio de denunciar o
abuso, por absoluto constrangimento, pelo sentimento de menos valia, pela dor e
pela exposição frente ao público e pelos julgamentos que possam advir. Não
raro, a sociedade do atraso, do preconceito e do reforço da atmosfera machista
culpabiliza a mulher pelo ato libidinoso que invadiu o seu corpo, sem o seu
consentimento. A maioria das mulheres já sentiram na pele e na alma os vários
tipos de assédio seja moral, seja sexual e em casos mais graves as
importunações sexuais. Violências que em menor ou maior grau marcam a sua
integridade biopsicossocial lhe causando uma sensação de impotência, marcada
por um sentimento de indignação e revolta.
Segundo SOUZA et al.,
(2013): “A violência sexual contra a mulher é um problema de saúde pública que
pode acarretar consequências médicas, psicológicas e sociais. As vítimas podem
sofrer de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, ansiedade,
transtornos alimentares, distúrbios sexuais e do humor.” (Artigo: Aspectos
psicológicos de mulheres que sofrem violência sexual, Revista Reprodução e
Climatério, Vol. 27, páginas 98-103).
Contudo, reafirmo a
gravidade no ato de emitir, de modo antecipado e irresponsável impropérios
sobre a pessoa suspeita de qualquer tipo crime que possa ou não ter cometido ou
por outro lado, julgue de maneira desairosa as vítimas. Lembremos do consagrado
princípio da presunção de inocência. Caberá ao acusado o direito à ampla defesa
e após os tramites do devido processo legal, restará aguardar que a justiça
seja realizada.
Diante do lamentável e
triste episódio que, em boa medida, macula as vidas envolvidas e o próprio
ideário de um governo progressista que se propôs a reconstruir o que foi
destruído no passado, fica a tarefa de intensificar, com a devida atenção, a
promoção da cultura de integridade em todos seus espaços, antes, durante e
depois, embora a realidade material observada nas variadas dimensões
institucionais brasileiras seja bem adversa.
Há uma clareza secular
sobre as más condutas praticadas por várias personagens públicas, que ocupam
cargos nos três poderes do país, brancas, ou negras, estas em menor número, já
que os cargos exercidos por pessoas brancas ainda são hegemônicos. Há brancos
que cometem reiteradamente crimes, no entanto, ainda não foram expurgados
sumariamente dos poderes em que exercem suas representações, além de uma
consequente punição legal que merecem. Nem tão pouco, tais crimes são
desnudados com tanta veemência, como o caso que suscitou a escrita deste texto.
É necessário, portanto, refletirmos com profundidade sobre essas questões e
acerca das sutis palavras de Fiodor Dostoievski: “Compara-se muitas vezes a
crueldade do homem à das feras, mas isso é injuriar estas últimas”.
Fonte: Por Elisabeth
Lopes, em Brasil 247
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