Uma sociedade que não valoriza ciência é
presa fácil para desinformação e autoritarismo
Ciência é talvez a
mais importante aventura da história da humanidade. Graças à invenção da
ciência vivemos mais e melhor. Graças à ciência entendemos os mistérios da
natureza, da vida, do universo e tudo mais. Não conhecer as bases do pensamento
científico condena as pessoas a ficarem excluídas de uma parte fundamental da
cultura humana. O pleno exercício da cidadania exige conhecer pelo menos as
bases e métodos da ciência.
Apesar da importância
da ciência, a educação básica brasileira não tem tido sucesso na formação
científica de seus estudantes. Por motivos que não discutirei aqui, dentro do
utilitarismo que pauta a formação dos brasileiros, a sociedade não associa
conhecimento científico com oportunidades de ascensão social.
Ao contrário do que
ocorre em outros países, a formação em pensamento matemático e científico não é
considerada fundamental. Confunde-se o aprendizado de ciência com memorização
de fórmulas abstratas e fora de contexto, sem relação com a realidade próxima
do estudante. Não surpreende que os brasileiros não cogitem usar ciência para
ajudar a tomar decisões.
Eu recebi um choque de
realidade que me marcou para sempre quando fui convidado, em 1991, para dar um
curso de física experimental para professores de física da rede pública da
região de Campinas, financiado pelas Nações Unidas. Eu era um recém contratado
professor da Unicamp.
Encontrei um público
bastante heterogêneo. Poucos professores tinham formação em física. Raríssimos
eram capazes de fazer um gráfico de uma grandeza em função do tempo.
Para a grande maioria,
física era uma atividade realizada por grandes cientistas europeus ou
norte-americanos, que se traduzia em montes e montes de fórmulas. Cabe aos
estudantes memorizá-las, dado que pode cair no vestibular ou no ENEM. Alguns
até inventaram musiquinhas ou poemas para facilitar a memorização. Nenhuma ou
quase nenhuma atividade experimental.
Só tem um problema:
longe de ensinar ciência, esse tipo de iniciativa apenas transmite a negação do
pensar científico para as novas gerações.
Várias tentativas de
introduzir atividades científicas na formação escolar vêm fracassando ao longo
do tempo, em grande parte devido à percepção de mundo dos alunos, suas famílias
e também dos próprios professores. É muito difícil mudar uma cultura já enraizada,
especialmente numa sociedade onde o conhecimento é menos valorizado do que os
títulos das pessoas.
• Cultura científica
Para mim ficou claro
que é muito mais importante para o país um cientista ativo estar envolvido em
divulgar a ciência e a cultura científica do que em publicar artigos em
revistas internacionais de alto prestígio.
Tenho buscado
conciliar essas duas atividades ao longo da minha carreira. Isso é feito em
diferentes frentes. Mas tenho convivido com um problema bastante sério: a
progressão profissional nas universidades públicas brasileiras está
estritamente relacionada com produção científica.
Atividades de
divulgação contam nada ou quase nada. Assim, a maior parte dos docentes percebe
atividades de divulgação como uma perda de tempo que atrapalha suas atividades
de pesquisa que resultam em publicações em revistas de alto prestígio.
Pouquíssimos são ativos em divulgação.
Há anos eu escrevia um
blog justamente chamado Cultura Científica, em que discutia essencialmente
assuntos ligados à ciência, pseudociência e ciência mal feita (bad science).
Obviamente acabei atraindo a atenção e a ira de adeptos de práticas de saúde sem
base científica, como homeopatia e quiropraxia.
Eu sempre respondia
aos comentários e evitava ao máximo julgar o que as pessoas fazem para cuidar
de sua saúde, mas chamava a atenção para a ausência de evidência científica em
suas práticas e como é importante entender o que isso significa.
Outro aspecto
fundamental para a divulgação científica é, sempre que possível, atender e
dialogar com a imprensa. Há muita necessidade de levar explicações científicas
em linguagem simples e compreensível para os canais pelos quais as pessoas se
informam. Se nós cientistas não fizermos isso, esse espaço é rapidamente
ocupado por charlatães.
Com o desenvolvimento
de redes sociais, o Twitter (atual X) passou a ser meu principal ambiente de
atuação. Do jeito que a rede vem sendo tratada por seu novo dono, tolerando
agressões contra divulgadores em nome da liberdade de expressão, isso não vai durar.
Já estou ativo no Bluesky. Depois da proibição da operação da rede no Brasil,
só uso esta alternativa.
• Pandemia: entender a ciência nunca foi
tão importante para salvar vidas
Então chegou a
pandemia de Covid. Mais do que nunca, as pessoas precisavam entender o que
estava acontecendo, e para isso precisavam lançar mão de ciência. Acontece que
a pandemia ocorreu num momento da história em que as redes sociais impuseram
uma nova dinâmica para o conhecimento.
O grande público
brasileiro não entendia o que estava acontecendo. Aconteceu então um fenômeno
muito perigoso: escolher uma explicação estava mais associado à posição
política da pessoa do que à compreensão de fenômenos naturais básicos. Fontes
oficiais logo tomaram posições anticientíficas, ignorando tudo o que sabemos
sobre modelagem epidemiológica.
Assessorado por
médicos incompetentes ou mal intencionados, o então presidente do país decidiu
minimizar a letalidade da doença, para tentar manter a economia funcionando e
agir como se nada estivesse acontecendo.
Ele argumentou que a
Covid era algo menor, uma "gripezinha", que só mataria idosos e
portadores de condições preexistentes. Afirmou que a população jovem logo
estaria protegida por imunidade de rebanho. Estimou que a doença mataria não
mais que 800 brasileiros. Mais que isso, seguindo o então presidente dos EUA,
passou a recomendar o uso de drogas como a cloroquina, sem efeito algum sobre a
Covid, e outras igualmente inúteis.
O resultado, todos
sabem, foi desastroso. Morreram mais de 700 mil brasileiros. Quase mil vezes
mais que a previsão oficial. Só não morreu mais gente no Brasil graças ao
heróico trabalho de divulgadores com alta visibilidade nas redes sociais, que
alertaram para o tamanho do problema e recomendaram medidas de distanciamento
social.
Eu atuei especialmente
comentando a metodologia científica. Em particular, como foi possível usar a
ciência para estimar o número de mortos que teríamos se a população tivesse
seguido as recomendações do presidente: quase 2 milhões.
Só não chegamos a esse
número porque aos poucos a maior parte dos cidadãos brasileiros preferiu buscar
informações científicas, e não ideológicas, para entender o que estava
acontecendo. Neste aspecto, a ação de divulgadores científicos que atuam nas
redes sociais foi de extrema importância. Mas nada fácil, face às tentativas de
silenciamento que ocorreram à época.
• Democratização do conhecimento: uma
obrigação de quem pesquisa
Hoje, o pior da
pandemia já passou. Mas a divulgação de ideias anticientíficas continua firme e
associada à polarização política do país. Agora buscam desacreditar a
importância das vacinas e a elas atribuir supostos efeitos colaterais jamais
demonstrados.
Quem não consegue
entender como e porquê sabemos que as vacinas são seguras é presa fácil para
portadores de desinformação de ocasião. E as consequências desse descaso são
muito sérias.
Mais do que nunca, é
importante incentivar as pessoas a voltarem a entender o mundo através de um
olhar científico. E para isso, a transmissão de conhecimento científico de
forma clara e acessível, capaz de comunicar-se com todas as parcelas da
população, é fundamental.
Nesse contexto, a
sociedade brasileira certamente seria menos vulnerável ao poder deletério das
fake news transmitidas via redes sociais se uma parcela importante dos
cientistas dedicasse parte do seu tempo a traduzir o saber científico para
todos, de forma acessível e democrática.
Fonte: Por: Leandro R.
Tessler, Professor do Instituto de Física Glab Wataghin, (Unicamp), para The
Conversation Brasil
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