Calor mata mais que chuva, mas tema ainda é
raro na agenda de candidatos
Ondas de calor matam
mais que chuvas. E de maneira silenciosa. “Muito provavelmente, o Rio
Grande do Sul neste ano terá mais pessoas que infelizmente vão falecer em
função de ondas de calor do que aquelas que faleceram diretamente vinculadas ao
incidente das chuvas de maio”, aponta Renato Corradi, diretor no Brasil do
Iclei, uma rede global de governos locais comprometidos com a sustentabilidade.
A menos de um mês do
primeiro turno das eleições municipais, o país passa por uma nova e intensa onda de calor, chegando a
figurar como a região mais quente do hemisfério sul na segunda semana de
setembro. Pelo segundo ano consecutivo, o mês veio com temperaturas muito acima
da média para o período, com termômetros passando dos 40 ºC em boa parte do
Brasil. O calor que temos passado nos últimos anos, ressalta Corradi, não é a
mais variação normal de temperatura ao longo do ano. São as mudanças climáticas
agindo.
Apesar da gravidade do
cenário, se depender dos candidatos a prefeito de cidades que estão passando
por picos de calor, a situação pode permanecer ruim ou até
piorar. A Agência Pública mergulhou nos planos de governo de
candidatos a prefeito de cinco médias e grandes cidades que passaram por ondas
de calor sem precedentes desde o ano passado: Rio de Janeiro (RJ), Cuiabá
(MT), Corumbá (MS), Unaí (MG) e Balsas (MA).
O resultado: a
adaptação não é uma prioridade. Segundo o levantamento, nos cinco municípios
analisados, menos de um a cada três candidatos fala diretamente sobre o tema.
Dos 26 planos de governo analisados, somente oito abordam, em diferentes níveis
de profundidade, as ondas de calor que vêm atingindo as suas respectivas
cidades.
A reportagem conversou
com especialistas no tema, que apontam: as cidades ainda não estão preparadas
para lidar com as ondas de calor, apesar de existirem medidas simples que
poderiam ser tomadas para dar mais qualidade de vida à população. Eles apontam também
como a forma como as cidades são geridas acaba piorando a situação.
<><> Por
que isso importa?
- Ondas de calor estão relacionadas a mais mortes que as
chuvas. Nos últimos anos, mais cidades brasileiras têm passado por picos
de calor, cada vez mais frequentes.
- Levantamento mostra que o tema não é tratado de forma
direta pela maioria dos candidatos a prefeito em cidades que têm passado
por esse problema.
<><> O Rio
de Janeiro continua quente
É impossível falar de
ondas de calor no Brasil sem citar o Rio de Janeiro. A capital fluminense, além
de registrar com frequência temperaturas acima de 40 ºC – chegou a 42,5 ºC no
ano passado –, frequentemente ganha as manchetes por alcançar índices de sensação
térmica alarmantes, beirando os 60 ºC. A medição considera a temperatura e a
umidade relativa do ar.
Na eleição carioca de
2024, somente quatro dos nove candidatos abordam diretamente o calor, em
diferentes níveis de profundidade. A arborização urbana aparece no
programa de cinco candidatos e a climatização de ônibus e salas de aula é
tópico em sete dos nove planos de governo.
Atual prefeito e
favorito à reeleição ainda no primeiro turno, Eduardo Paes (PSD) promete
climatizar todas as salas de aulas da cidade e quer criar o programa “ZN
Verde”, para “produzir mudas em larga escala para arborizar e reduzir as ilhas
de calor na Zona Norte”, a mais quente do Rio.
Seus dois principais
adversários são os deputados federais Alexandre Ramagem (PL) e Tarcísio Motta
(PSOL).
O ex-diretor-geral da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin), apoiado por Jair Bolsonaro, também
propõe a instalação de ar-condicionado nas escolas. Seu plano de governo
defende a implementação de programas de reflorestamento em áreas degradadas. O
foco, no entanto, é especialmente em encostas e margens de rios, sem relacionar
isso com as ondas de calor.
Já o programa
apresentado por Tarcísio aborda a temática com bastante recorrência. Em uma das
seções do plano, o psolista aponta que “as condições de habitabilidade” da
cidade estão em risco, questionando como os cariocas vão “suportar as ondas de
calor do verão”. O candidato defende a atualização da Estratégia de Adaptação
às Mudanças Climáticas municipal e a revisão e efetiva implementação do Plano
Diretor de Arborização Urbana, “começando pelas ilhas de calor e regiões mais
quentes da cidade”. Tarcísio sugere também a climatização de ônibus e escolas e
a implementação de descontos no IPTU para edifícios que, entre outras medidas,
“promovam políticas ecológicas de redução do calor”.
Entre os demais
candidatos, que não passam de 1% nas pesquisas de intenção de voto, a atenção
dada ao tema varia.
O deputado federal
Marcelo Queiroz (PP) defende a climatização de ambientes, criação e recuperação
de áreas verdes para mitigar os efeitos das ilhas de calor e a construção de
infraestruturas que resistam a eventos climáticos extremos, incluindo ondas de
calor.
Carol Sponza,
candidata do Novo, também fala em ar-condicionado em escolas e sugere descontos
no IPTU, mas não aborda o calor diretamente em seu programa. O bolsonarista
Rodrigo Amorim (União), que está com a candidatura indeferida, tem como única
proposta no tema garantir ar-condicionado em 100% dos ônibus da cidade.
No campo da esquerda,
Cyro Garcia (PSTU) lembra que o “microclima piora” a cada ano e que isso tem
relação com a “ausência de vegetação e ampliação da manta asfáltica”, mas não
apresenta propostas para resolver o problema. Juliete Pantoja (UP) aborda as mudanças
climáticas, mas não cita diretamente as ondas de calor, ainda que proponha a
climatização de escolas e replantio de árvores. Já o candidato do PCO, Henrique
Simonard, apresenta o plano único do partido para o país, que não fala de
mudanças climáticas.
·
Em “Cuiabrasa”, arborização aparece no
plano de todos os candidatos
Entre os municípios
analisados pela Pública, o campeão de calor é Cuiabá (MT), que tem
registrado as maiores temperaturas do país entre todas as capitais nos últimos
anos. No dia 11 de setembro, por exemplo, o Instituto Nacional de Meteorologia
(Inmet) marcou 42,2 ºC em uma das estações de medições da capital
mato-grossense. No ano passado, Cuiabá chegou a registrar 44,2 ºC.
O município no
Centro-Oeste, que já foi conhecido como “cidade verde”, ganhou recentemente o
apelido de “Cuiabrasa”. As mudanças climáticas têm papel preponderante,
mas não é só isso: segundo um estudo do
Instituto Centro de Vida (ICV), Cuiabá perdeu mais de 55 mil hectares, o
equivalente a 17% da sua cobertura vegetal, entre 1988 e 2017. E, segundo
o engenheiro florestal Lucas Araújo, que atua no ICV em Cuiabá, esse processo
continuou ocorrendo, com outros 7,9 mil hectares perdidos entre 2018 e
2023.
As últimas gestões
municipais, avalia Araújo, adotaram algumas iniciativas de arborização em
conjunto com outros órgãos e com a iniciativa privada, mas, por outro lado,
promoveram projetos que pioram a arborização. “Como a construção do Contorno
Leste, que é uma avenida que extrapola o limite do perímetro urbano. [Esse tipo
de construção] também vai fomentar a perda da cobertura vegetal”, aponta.
Para o analista em
geotecnologias do ICV, a despeito de medidas ambíguas das últimas gestão, a
arborização é uma medida popular entre o eleitorado local, além de necessária
para combater as ondas de calor. Não por acaso, a defesa da pauta aparece, com
diferente ênfase, no plano de governo dos quatro candidatos a prefeito, de
bolsonaristas a petistas.
É o caso do deputado
federal Abilio Brunini (PL), apoiado por Jair Bolsonaro, ex-presidente e notório negacionista das mudanças
climáticas. Na contramão de seu padrinho político,
Brunini dedica boa parte de seu programa de governo ao tema. Logo na
introdução, diz que está cada dia mais “mais difícil viver em uma cidade com o
clima cada vez mais abafado e quente” e critica o atual prefeito, Emanuel
Pinheiro (MDB), por cortar árvores. Diz também que quer construir uma cidade
preparada “para [lidar com] os impactos do calor extremo e da escassez
hídrica”.
O candidato do PL,
arquiteto e urbanista de formação, traz uma série de propostas de combate às
ondas de calor, como arborização urbana, incentivos na conta de IPTU para quem
adotar medidas sustentáveis e climatização de salas de aula e ônibus.
Posicionado do outro
lado do espectro político, o petista Lúdio Cabral também traz a adaptação às
ondas de calor em Cuiabá como central em seu programa, lembrando que “a alta
temperatura e a baixa umidade do ar” causam impactos na saúde, em especial de pessoas
mais vulneráveis, como idosos e crianças.
Lúdio defende uma
série de medidas de arborização e reflorestamento para trazer “conforto
ambiental”, além de propor a climatização de ônibus e de estações de ônibus. O
deputado estadual sugere também uma política municipal de adaptação e mitigação
das mudanças do clima.
Eduardo Botelho, do
União Brasil, fala em “escolas com menos cimento, mais verde e mais ventilação”
e quer incentivar a “arborização no perímetro urbano”. O candidato traz ainda
outras propostas relacionadas às mudanças climáticas, mas sem relação direta
com as ondas de calor e seus impactos.
Já Domingos Kennedy
(MDB), apoiado pelo atual prefeito, fala apenas em arborização urbana e
climatização de abrigos de ônibus, sem se aprofundar no tema do calor.
A última pesquisa
Quaest, divulgada no final de agosto, traz Botelho com 31%, seguido de Abilio
Brunini, com 25%, e Lúdio, com 21%. Kennedy tem 5% das intenções de voto. A
margem de erro é de três pontos percentuais para mais ou para menos.
·
Nas cidades médias, ondas de calor mal
aparecem em planos de governo
Além das duas
capitais, a Pública analisou também os planos de governo de
candidatos de três municípios com histórico recente de ondas de calor e
população acima de 80 mil pessoas. Nessas cidades, o tema aparece ainda menos.
Corumbá, por exemplo,
chegou a registrar 43,3 ºC em novembro do ano passado. A despeito disso,
nenhum dos quatro candidatos do município sul-mato-grossense de 96 mil
habitantes falou sobre as ondas de calor que vêm atingindo a cidade.
O candidato Luiz
Antônio Pardal (PP), apoiado pelo atual prefeito, Marcelo Iunes (PSDB), defende
arborização urbana e o combate a incêndios florestais, mas não relaciona as
medidas ao calor extremo.
O ex-senador Delcídio
do Amaral (PRD), que foi cassado e chegou a ser preso no âmbito da Operação
Lava Jato, mas depois foi inocentado, fala apenas em “abrigos nos pontos de
ônibus”, proposta que também aparece no plano de André Campos (PL). Já Dr.
Gabriel, do PSB, defende que Corumbá se torne uma “cidade carbono zero”, mas
nada fala sobre calor.
O cenário é ainda pior
em Balsas, que registrou 41,9 ºC em setembro do ano passado, além de ter
ultrapassado os 40 ºC na segunda semana de setembro. O município
maranhense de 101 mil habitantes tem três candidatos à prefeitura e nenhum
deles abordou as ondas de calor.
O candidato do PRD,
Alan da Marissol, não propôs nenhuma medida que se relacione com o tema, mesma
situação do candidato Professor Francisco Cunha, do Novo. Já o atual
vice-prefeito, Celso Henrique (PP), fala em “potencializar os serviços
ecossistêmicos e a biodiversidade da cidade” com projetos de arborização
urbana, mas não aborda diretamente o calor.
Em Unaí, apenas um dos
seis candidatos tratou diretamente do calor em seu plano de governo, ainda que
de maneira tímida. A cidade mineira de 86 mil habitantes chegou a
registrar 42,6 ºC em novembro de 2023.
Trata-se de Alino
Coelho, do PSDB. Ele propõe um programa de incentivo à arborização urbana, que
pode “proporcionar sombra, melhorar a qualidade do ar e ajudar a regular a
temperatura urbana”. Coelho é apoiado pelo atual prefeito, José Gomes
Branquinho, do mesmo partido. Branquinho foi vice de Antério Mânica,
ex-prefeito condenado por chacina de quatro fiscais do trabalho, que fiscalizavam fazendas da região.
Os candidatos Calixto
Souto (PSB), Andréa Machado (PRD), Chicão Sincero (PT) e Thiago Martins (PL)
sugerem diferentes medidas de arborização, mas não falam sobre as ondas de
calor. Rafhael de Paulo, do Novo, não traz nenhuma proposta relacionada ao
tema.
·
Cidades não estão prontas para lidar com
calor
As cidades estão
preparadas para lidar com essa nova realidade? “Infelizmente, não”, aponta
Renato Anelli, doutor em arquitetura e urbanismo e coordenador de um grupo de
pesquisa que aborda estratégias para a redução das vulnerabilidades das cidades
brasileiras às mudanças climáticas na Universidade Mackenzie. “Pelo contrário,
inclusive: elas estão agravando essas condições [de calor extremo] à medida em
que se faz um processo de verticalização muito denso e que agrava a situação de
aquecimento da superfície e do ar”. A isso, explica Anelli, se soma a falta de
espaçamento entre os prédios e a redução de áreas verdes nas zonas
urbanas.
Em outras palavras, o
calor que vem da atmosfera é sentido de forma mais intensa pela população por
conta da maneira como estamos construindo as cidades. Ao invés de se
dissipar, o calor permanece mais tempo na superfície, formando as chamadas
“ilhas de calor”, em especial nas grandes cidades.
Os prefeitos que serão
eleitos em outubro não têm o poder de interromper sozinhos o processo de
aumento da temperatura média do planeta. Mas é justamente no âmbito municipal
que medidas mais diretas de combate a esse tipo de evento climático extremo
podem ser tomadas, apontam pesquisadores.
“O gestor público no
Brasil não incorporou dentro do seu contexto de planejamento territorial, de
planejamento urbano, as questões relacionadas ao clima. Com relação às
ondas de calor, é menos ainda”, afirma Jean Ometto, pesquisador do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenador científico do
AdaptaBrasil, plataforma que reúne informações sobre diversos riscos de impacto
das mudanças do clima para cada um dos 5.570 municípios do país.
Fornecimento de água
de maneira pública, disponibilização de ambientes climatizados de maneira mais
ampla, incentivos a construções que possuam melhor ventilação natural e
protocolos de saúde, em especial considerando populações mais vulneráveis ao
calor extremo, estão entre as medidas apontadas pelos especialistas ouvidos
pela Pública. Eles citam também suspensão de atividades de risco quando
temperatura e umidade atingirem certos níveis, mudanças nas leis de zoneamento,
criação de planos de ação climática e avanços na comunicação e na educação
ambiental e climática como centrais neste novo cenário.
Afinal, ainda que
recebam menos atenção do poder público do que extremos climáticos relacionados
à chuva, as ondas de calor matam muito mais, e de maneira silenciosa.
Fonte: Por Rafael
Oliveira, da Agencia Pública
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