sábado, 14 de setembro de 2024

Horizontes de mudança pós-capitalista

O cenário mundial nesta segunda década do século XXI está marcado pelo horror do genocídio sofrido pelo povo palestino, que é rejeitado pela maioria da humanidade, mas todos os andaimes institucionais e jurídicos construídos após a Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas, o Tribunal Internacional de Justiça, como garantidores da convivência humanitária, estão se revelando incapazes de impedi-lo, sobrepostos por um aparto imperial, financeiro e colonialista de guerra e dominação que tudo devora.

Diante deste andaime imperial-colonial, que luta com armas, mas também com aparatos ideológicos, derivados de um padrão de poder capitalista e racista de alcance mundial, parece indispensável recuperar, aprofundar, outras opções, outros caminhos, alternativas para recuperar um sentido de paz e humanidade.

É uma necessidade que se acentua com os avanços eleitorais e estatais da direita e da extrema direita na América Latina (Javier Milei e outros), nos Estados Unidos (Donald Trump e outros) e na Europa (Marine Le Pen, Giulia Meloni e outros), que atiçam o racismo e o colonialismo.

Vale a pena notar também, embora num nível diferente, os limites das políticas e regimes social-democratas na Europa (Olaf Sholz e outros), ou progressistas na América do Sul (Gabriel Boric e outros).

Alternativas, outros caminhos, outras perspectivas que recuperem sentidos e sentimentos humanos, que ousem pensar e propor horizontes de mudança pós-capitalistas e pós-coloniais.

Parece-nos relevante enfatizar a alternativa de programas sociais, políticos e culturais orgânicos. Entendemos por isso projetos que emergem desde as classes, estratos, etnias, grupos populares, até propostas com capacidade de envolver, incorporar, setores sociais, organizações e mecanismos de ação e luta.

Neste artigo, propomos retomar e revitalizar o projeto que emergiu dos novos movimentos indígenas latino-americanos no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, e que, no caso do Equador, tomou a forma do Programa pela Plurinacionalidade, Interculturalidade e Bem Viver, que confronta aspectos centrais do padrão de poder capitalista-colonial.

Cabe dizer que há projetos semelhantes, embora com suas próprias especificidades, nos movimentos indígenas da Bolívia, Peru, Guatemala, Chile e México, entre outros. No caso do Equador, referimo-nos à formulação deste programa nos documentos orgânicos da Confederação de Nacionalidades Indígenas, e recuperamos também textos de líderes históricos desta organização.

Este programa deu seus primeiros passos nos anos 80 do século passado, no contexto da identidade e organização dos povos e nacionalidades indígenas, que foi se consolidando ao lado da afirmação do agrupamento e da luta dos povos nos chamados Levantamentos Nacionais, e, no caso equatoriano, envolveu a estratégia da exigência de processos constituintes, e, numa terceira fase, incorporou a luta contra as medidas neoliberais.

Uma das virtudes desta trajetória é que são propostas que emergem do debate, da organização e da luta dos próprios grupos indígenas, que se nutre e se diversifica no combate ao colonialismo interno e ao neoliberalismo, com sucessos e derrotas num processo político em que as reivindicações indígenas vão ganhando protagonismo e se juntam às lutas dos trabalhadores, dos professores, do movimento de mulheres e do movimento ambientalista.

Este artigo trata da exposição dos conteúdos deste programa; vamos respeitar o lugar de enunciação da organização do movimento indígena contemporâneo, reconhecendo que existem outras contribuições e definições destes conceitos em setores da academia formal, mas não as inserimos neste texto.

Trata-se de um programa que foi sendo elaborado à medida que a organização, a luta e a influência política do movimento indígena evoluíam: primeiro, houve o consenso em torno da Plurinacionalidade (1990), depois foi incorporada a Interculturalidade (2001) e, finalmente, o Sumak Kawsay – Bem Viver (2007).

Estamos diante de um programa alternativo que emerge dos debates e das reivindicações do movimento social. Este é um marco fundamental no processo indígena no Equador e em outros países da região e, a partir deste pilar fundador, rompe com um dos obstáculos criados pelo colonialismo, o de que são outros que falam em nome dos indígenas, são outros que escrevem em nome dos indígenas, o que o antropólogo Andrés Guerrero definiu como “ventriloquismo” e “transescrita” dentro de uma estratégia estatal de “administração das populações”.

Este programa indígena enfrenta a colonialidade do poder como um padrão de subordinação que articula o capitalismo e o racismo. Uma das virtudes da definição de Quijano (2000) é que se trata de um modo de dominação em nível global, que não se reduz ou se limita a um só país ou a uma só região. Vem da instauração do antigo sistema colonial, nos séculos XV e XVI, que depois se articulou com o sistema capitalista-imperialista, nos séculos XIX e XX, e está em pleno vigor no que hoje se denomina “globalização”.

Portanto, o programa Plurinacionalidade, Interculturalidade e Bem Viver enfrenta uma problemática mundial: capitalismo – colonialismo – racismo.

Trata-se de um programa integral, mas por uma questão de exposição, abordaremos as noções uma a uma, e depois voltaremos a articulá-las. Cabe destacar também que elas se tornam demandas estratégicas nas ações de luta em âmbito nacional e local, estão inseridas na dinâmica da luta social e política concreta, num contexto de crise política e econômica.

Baseamo-nos em três documentos orgânicos da Conaie, que por sua vez correspondem a três conjunturas que permitem a consolidação da organização e do programa que promove. É sempre necessário salientar que a Conaie não é a única organização indígena no Equador, mas é aquela em torno da qual foi possível formar e sintetizar este programa alternativo, étnico e anticolonial, e que teve maior repercussão em sua capacidade de convocar as pessoas.

Estes documentos são: “Projeto Político da Conaie”, de 1994, depois uma versão que modifica ligeiramente a anterior: “Projeto Político das Nacionalidades e Povos do Equador”, de 2001; e “Proposta da Conaie diante da Assembleia Constituinte”, de 2007, aos quais se juntam textos públicos de líderes históricos do novo movimento indígena: Nina Pacari, Luis Macas e Patricia Gualinga.

No “Projeto Político” sobre Plurinacionalidade afirma-se: “A Plurinacionalidade baseia-se na diversidade real e inegável da existência das Nacionalidades e Povos do Equador como entidades econômicas, políticas e culturais históricas diferenciadas. A plurinacionalidade defende a igualdade, a unidade, o respeito, a reciprocidade e a solidariedade de todas as nacionalidades e povos que compõem o Equador. Reconhece o direito das Nacionalidades a seu território e à sua autonomia política e administrativa interna” (CONAIE, 2001: 2.4).

No documento sobre a “Nova Constituição”, propõe-se: “O Estado plurinacional é um modelo de organização política para a descolonização de nossas nações e povos. Trata-se de reconhecer não apenas a contribuição dos povos e nacionalidades indígenas para o patrimônio da diversidade cultural, política e civilizatória do Equador, mas também de procurar superar o empobrecimento e a discriminação de séculos de civilizações indígenas. Por suas peculiaridades socioculturais, políticas e históricas, os povos e nacionalidades reivindicam direitos específicos e que são contribuições como valores simbólicos, formas de exercício da autoridade e sistemas de administração social de enorme mérito e valor político” (Conaie: 2007, p. 14).

Comentemos que o componente de Plurinacionalidade dentro do Programa indígena para transformar a sociedade equatoriana rompe com um dos pilares do sistema político moderno: “um só estado – uma só nação”, que caminha lado a lado com o postulado de “um só estado – uma só cultura”, esse estado monolítico é o que recobre o sistema capitalista-colonial, essa única nação e cultura que é reconhecida como moderna e industrial, branca-mestiça, urbana e cosmopolita, que, em relação aos povos indígenas, aplicou uma estratégia de “administração das populações”, com a qual negou a participação política direta a estes setores, os excluiu do sistema oficial, os tratou como marginais e delegou, nas instituições locais, o processamento de suas demandas.

O Programa, ao propor o reconhecimento de outros povos e nacionalidades, aceita-os oficialmente como “entidades econômicas, políticas e culturais”. Isto implica a defesa de um sistema político de igualdade, reciprocidade e solidariedade entre as diferentes classes, estratos e etnias existentes, que vai ao lado da “superação do empobrecimento e da discriminação”, à qual as populações indígenas têm sido estruturalmente submetidas.

A plurinacionalidade caminha lado a lado com o reconhecimento dos territórios indígenas, os que já existem, mas também os que são reivindicados em restituição face à expropriação por parte dos latifundiários, da mineração ou do petróleo; é também o respeito pelo sistema de governança próprio das nacionalidades indígenas.

O pilar da plurinacionalidade é a recuperação e a revalorização da sociedade comunitária indígena, que é uma ordem coletiva baseada em mecanismos internos de solidariedade, reciprocidade e apoio mútuo. Está ligado a uma jurisprudência dos povos.

Implica também que o sistema estatal assuma e considere a participação direta dos povos indígenas na formulação e definição das políticas públicas, tanto em nível nacional como local, não só naquelas relacionadas com as populações indígenas, mas também nas que estão relacionadas com o desenvolvimento e o bem-estar.

Em suma, são mudanças no sistema político que não dizem respeito apenas aos povos indígenas, mas levam a profundas transformações em todo o país.

No “Projeto Político” sobre Interculturalidade afirma-se: “O princípio da interculturalidade respeita a diversidade das nacionalidades e dos povos, o povo afroequatoriano e mestiço-equatoriano e demais setores sociais, mas, por sua vez, exige a unidade destes, nos campos econômico, social, cultural e político, num quadro de igualdade, respeito mútuo, paz e harmonia. O reconhecimento, a promoção e a vigência da diversidade garantem a unidade e permitem a convivência, a coexistência e a inter-relação fraterna e solidária entre as nacionalidades e os povos, o que garante o estabelecimento do estado Plurinacional”. (CONAIE, 2001, p. 2.5).

No documento sobre a “Nova Constituição” afirma-se que: “A interculturalidade implica a construção de um projeto de país entre todas e todos que preconizem o respeito e a valorização de todas as formas de expressão cultural, de conhecimento e de espiritualidade, o que exige a unidade dos povos e nacionalidades e do conjunto da sociedade como condição básica para uma democracia plurinacional e uma economia justa e equitativa. Um dos eixos para o desenvolvimento das culturas e para o exercício da interculturalidade é a incorporação das línguas dos povos e nacionalidades no sistema educativo. É impossível promover essas línguas (e, portanto, essas culturas, essas outras formas de compreender o mundo) se não houver um esforço nacional e coletivo” (Conaie: 2007, p. 22).

Comentemos que o componente de Interculturalidade dentro do Programa Indígena para transformar a sociedade equatoriana implica, em primeiro lugar, denunciar e desmantelar o velho colonialismo e o neocolonialismo, sua desapropriação material e cultural, que nega os povos indígenas, os ignora como portadores de saberes, compreensões, de um sistema social complexo, que conseguiu perdurar apesar dos esforços de extermínio e anulação, e incorpora a luta contra a ideologia racista.

Como destaca a líder amazônica Patricia Gualinga: “é o respeito que conseguimos ter uns pelos outros, o oposto da interculturalidade é o racismo. Racismo é se achar superior aos outros povos, ter esse ar de “somos o que sabem pensar, os outros não” (Gualinga: 2021, p.55).

A interculturalidade anda de mãos dadas com o postulado da “unidade na diversidade”, que toda a sociedade e o estado equatoriano reconheçam e incorporem os saberes indígenas e os idiomas dos povos. É reescrever a evolução histórica do Equador, dar relevância aos seus acontecimentos e personagens, que a possibilidade de reconstruir a nação passa pela valorização de seus conhecimentos e filosofias, a fim de gerar novas compreensões sobre o desenvolvimento e o bem-estar.

A abordagem da interculturalidade tem sido uma contribuição fundamental dos movimentos indígenas para motivar, desenvolver os processos de descolonização nas ciências sociais, nas artes e até nos debates epistemológicos.

Nos últimos anos, ficou claro que a abordagem da interculturalidade gerou uma irritação incontida na extrema-direita, tanto na Europa como na América.

No documento “Nova Constituição” afirma-se: “O Sumak Kawsay é um princípio ancestral que propõe o bem viver, deverá promover a convivência harmoniosa das pessoas e dos povos entre si e com a natureza. A biodiversidade e a natureza não são apenas uma mercadoria a mais a ser comprada e vendida, e à qual se explora irracionalmente; a natureza é Pachamama, somos parte dela, portanto, a relação com os componentes do entorno natural deve ser respeitosa”. (Conaie: 2007, p. 21).

No documento “Projeto Político” indica-se que: “as nacionalidades e os povos praticam uma Filosofia Integral onde os seres humanos e a natureza estão em estreita e harmoniosa inter-relação, garantindo a vida de todos os seres. A consciência histórica ratifica a Filosofia Integral praticada pelas Nacionalidades e Povos, que sobreviveram à exploração, ao genocídio, ao etnocídio e à subjugação desumanizada da civilização ocidental” (CONAIE, 2001: 2.1).

Comentando o componente de Sumak Kawsay – Bem Viver, coloca-se no centro do debate um dos pontos centrais da modernidade ocidental: a relação entre os seres humanos e a natureza, entre a “ideologia do progresso” e as noções de bem-estar coletivo que incorporam o respeito pela natureza. Para os povos indígenas, em seus códigos de vida e também em suas práticas territoriais, deve ser procurada uma relação harmoniosa, baseada nos postulados de que todos os seres têm vida, o que implica que a natureza também tem, e que é necessário procurar uma situação de equilíbrio que permita a sobrevivência integral dos seres humanos e dos ecossistemas.

Como explica a líder Nina Pacari: “O Sumak Kawsay, que se traduz literalmente por ‘bem viver’ ou ‘vida plena’, revela-se um resumo da noção desenvolvida pelos povos originários, e está orientado a partir do sujeito coletivo, o que significa: meu bem-estar só na medida em que todos os outros estejam numa situação de equidade. Nessa medida, há equilíbrio e equidade. Posto desta forma, torna-se um paradigma para fortalecer não apenas as vivências nos territórios comunitários, mas também no âmbito geral” (Pacari: 2021, p. 19).

Nina Pacari, ao mesmo tempo que adverte contra a redução de uma tradução literal, situa a noção de Sumak Kawsay numa perspectiva de bem-estar coletivo baseado no equilíbrio e na equidade entre todos os seres humanos e entre estes e a natureza.

As visões do Bem Viver entram em confronto, em primeiro lugar, com as ofensivas extrativistas, especialmente as que se implantam nos territórios indígenas e na preservação dos ecossistemas; a evolução da “Iniciativa Yasuní” é um bom exemplo disso. Tem sido um ponto de confrontação tanto com as tendências neoliberais quanto com as desenvolvimentistas.

Os debates em torno do Sumak Kawsay – Bem Viver foram tão potentes que, no contexto da Assembleia Constituinte de 2007-2008, levaram à aprovação dos Direitos da Natureza (Constituição 2008, capítulo 7).

Por uma questão de exposição, abordamos sinteticamente os pontos centrais, mas se trata de um Programa social, político e cultural integral, que confronta, em primeiro lugar, a colonialidade do poder, mas também questiona os pontos centrais do padrão de acumulação capitalista em nossos países e enfrenta um dos pilares da dominação global: o racismo e a ideologia do progresso e da modernidade.

Não é apenas um Programa Indígena para os indígenas, é uma proposta dos povos e nacionalidades indígenas para a transformação de todo o país, nos níveis econômico, estatal e ideológico.

Trata-se de um Programa cuja evolução e divulgação tem sido acompanhadas por estratégias de ação e impacto, como bem explica o dirigente Luis Macas: “os povos e nacionalidades indígenas, através da CONAIE, traçaram duas linhas de ação: uma delas é a reivindicação de conquistas pragmáticas necessárias, e outra linha fundamental é a estratégica, indispensável para gerar mudanças, ações e comportamentos que têm sido evidentes em sua trajetória de luta. Um tema central é o da Plurinacionalidade, entendemos através deste conceito a existência histórica da diversidade dos povos… assim, o movimento indígena assumiu em determinado momento o poder de questionar o estado uninacional, colonial, opressor, e se compromete a enfrentar e lutar contra o modelo político-econômico que afeta a maioria da sociedade” (Macas: 2021, p. 27).

A trajetória do Programa exposto tem uma vitalidade política que consegue articular vários níveis de ação e impacto, e vai ganhando adeptos e reconhecimentos até obter uma condição de vanguarda para a etapa política específica de 1990 a 2008 na estratégia do movimento indígena equatoriano, cujo ponto cardeal é a Plurinacionalidade, ou seja, a penetração no sistema político e o reconhecimento de territórios e da governança comunitária, evitando, assim, outras tendências, como o multiculturalismo, que pode reconhecer saberes e culturas, mas sua participação política é mantida à margem e reduzida às questões especificamente indígenas. Por isso é relevante a ênfase de Macas no propósito de “lutar contra o modelo político-econômico” de opressão e colonialismo.

Em torno da luta por este programa, o movimento equatoriano tem desenvolvido ações como os Levantamentos Nacionais, sendo os mais recentes em 2019 e 2022, e estratégias políticas relevantes, como a demanda por processos constituintes, em momentos concretos, os quais têm encurralado os seguidos governos e gerado adesões em setores e organizações populares, provocando definições políticas e ideológicas nas classes e estratos urbanos que encurralam o racismo.

Suas noções e impactos sociais e culturais têm agitado os setores intelectuais e acadêmicos, incentivando tendências como a decolonialidade e o pós-colonialismo.

A evolução política do Programa da Plurinacionalidade, Interculturalidade e Bem Viver teve seu ponto alto na Constituição de 2008, que, em seu contexto, incorporou a Plurinacionalidade, a Interculturalidade e o Bem Viver, bem como sua aprovação em referendo nacional, com o apoio de 64% do eleitorado. Seu desenvolvimento posterior teve seus altos e baixos, confrontando-se com o desenvolvimentismo e o neoliberalismo, mas isso poderá ser tratado em outro artigo.

Finalmente, sugiro que estamos diante de um novo momento: é um programa vigente que se expande para além das fronteiras nacionais e das vicissitudes de uma organização específica; conseguiu ultrapassar seus próprios limites. As noções de plurinacionalidade, de interculturalidade e de bem viver, a recuperação das sociedades comunitárias indígenas desafiam uma mundialização mergulhada no colonialismo e no racismo, que se sente ameaçada e responde com a guerra, apelando à dominação pura e simples.

 

Fonte: Por Francisco Hidalgo Flor, em A Terra é Redonda 

 

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