quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Por que o Brasil não tem uma 'Embraer do mar'?

A Embraer é vista em todo o mundo como um caso de sucesso na criação de uma empresa nacional de alta tecnologia. A companhia aeronáutica é destaque no segmento de jatos comerciais e aeronaves de defesa. Por outro lado, até pouco tempo atrás o país possuía uma pujante indústria naval. Por que o setor marítimo nunca criou uma gigante como a Embraer?

Em diversos momentos de sua história, o Brasil foi uma potência naval, tanto em termos de Marinha quanto em relação à sua capacidade de produção.

Durante a época do Império, por exemplo, a força naval brasileira era a segunda mais forte do mundo, ficando atrás apenas da Inglaterra. No entanto, com a Revolução Industrial e a modernização das frotas ao redor do mundo, logo o país ficou para trás.

Depois, a partir da Era Vargas, o Estado brasileiro voltou a investir no setor, dando origem a uma nova indústria naval no Brasil. Esse momento durou até o final dos anos 1980 e início dos 1990, quando o setor foi novamente abandonado dentro da lógica do neoliberalismo.

"Foi varrida do mapa", define Lucas Kerr, professor no Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), sobre o período que ele considera como "o auge da nossa indústria naval moderna".

"Tínhamos mais de 100 mil empregos na indústria naval até 1989 e chegamos em 2000 com 3 mil empregos. Os anos 90 foram um período no qual passamos a comprar tudo do exterior."

Ariovaldo Rocha, presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval), relembra que, nos anos 1970, os estaleiros brasileiros detinham a segunda maior carteira de encomendas do mundo, ficando atrás apenas do Japão.

Estimulada pela descoberta do pré-sal, a construção naval brasileira viu uma ressurgência no início dos anos 2000. Como fomento à indústria, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003–2011) estabeleceu uma política de nacionalização progressiva dos componentes navais.

Com o passar do tempo, mais e mais peças dos navios deveriam ter origem nacional, até que em algum momento o navio fosse produzido inteiramente com tecnologia brasileira. O grande destaque nacional foi a construção de navios de apoio marítimo às plataformas de petróleo e gás, diz Rocha.

"Chegamos a fabricar mais de 60% dos componentes por aqui", detalha Kerr, que também é coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos, Geopolítica e Integração Regional (NEEGI). O momento de bonança, contudo, foi breve.

"A [operação] Lava Jato liquidou isso e contribuiu para paralisar as compras de navios no Brasil por parte da Petrobras e da Marinha Mercante, eliminando novamente nossa indústria naval."

<><> A Embraer pode servir de exemplo?

As indústrias náutica e aeronáutica têm pontos em comum que permitem que paralelos entre elas sejam traçados.

Ambas, por exemplo, demandam alta tecnologia e ajudam a desenvolver a indústria nacional. As duas também apresentam produtos de duplo uso, tanto civis quanto militares, dando a elas grande importância dentro de estratégias de defesa do país e do fortalecimento da Base Industrial de Defesa (BID), um dos pilares da Política Nacional de Defesa (PND) e da Estratégia Nacional de Defesa (END).

Sendo assim, por que o Brasil, que contou tantas vezes com uma indústria naval de ponta, nunca produziu uma "Embraer dos mares"?

<><> Embraer: a joia da indústria nacional

Fundada em 1969 sob o manto do Estado brasileiro, a Embraer foi privatizada em 1994 durante o governo de Itamar Franco. Hoje, a União mantém uma golden share (ação dourada, em tradução livre) na companhia, retendo o poder de veto em decisões estratégicas como compartilhamento de tecnologias militares e mudanças no controle acionário e na denominação social da empresa.

Durante sua história, a Embraer protagonizou o desenvolvimento da indústria aeroespacial brasileira, tanto no âmbito civil, com seus jatos de voos regionais, sendo líder no segmento de jatos comerciais de até 150 assentos, quanto na área militar, sendo responsável por aeronaves como o turboélice Super Tucano, o cargueiro KC-390 e, em parceria com a sueca Saab, a construção do caça Gripen.

Desenvolvido nacionalmente, o KC-390 é um sucesso de vendas ao redor do mundo, já sendo encomendado pelas forças aéreas de Portugal, Hungria, Países Baixos, Áustria, República Tcheca e Coreia do Sul. Índia e Cingapura também demonstraram interesse no cargueiro brasileiro, visto como o substituto do americano C-130 Hércules da Lockheed Martin.

<><> Momento nacional é de recuperação

A escassez de encomendas — que passaram a ser direcionadas quase em sua totalidade para o exterior — e a falta de investimentos e políticas públicas paralisou as constrições navais após 2014, aponta o Sinaval à Sputnik Brasil.

"Isso se refletiu na perda das conquistas desse período até 2014 e resultou na redução drástica do número de empregos em nosso segmento industrial e em sua cadeia de fornecedores, além da perda dos investimentos realizados."

O momento de paralisia durou ainda durante as presidências de Michel Temer (MDB, 2016–2018) e Jair Bolsonaro (PL, 2019–2022), afirma Kerr.

Desde o retorno de Lula à presidência, os investimentos à indústria naval retomaram. "A indústria naval e offshore voltou a receber atenção e as licitações de novas embarcações, e módulos para plataformas estão começando a ser lançadas", detalha o Sinaval.

Além disso, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançou a iniciativa BNDES Azul, com linhas de créditos especiais para o setor. Em discurso durante o anúncio do programa, o presidente do banco, Aloizio Mercadante, ressaltou que o Brasil, dependente dos mares para suas exportações, "não possui frota própria".

"Como que o país, um dos três do mundo que constrói e certifica avião, não vai fazer ou não pode ou não deve fazer navios? Nós precisamos fazer navios."

<><> O que falta para uma 'Embraer do mar'?

Hoje, o centro de produção naval mundial se encontra na Ásia. China, Coreia do Sul e Cingapura dominam o mercado de exportações. Só os estaleiros chineses foram responsáveis, em 2021, por 47,2% dos navios construídos no planeta.

Isso não quer dizer, no entanto, que para competir seja preciso bater de frente com esses gigantes. Uma empresa como a Embraer, por exemplo, atua em um ramo específico e estratégico na construção aeronáutica, dificilmente competindo com a Boeing e a Airbus.

Dessa forma, nada impede que sejam estudadas "medidas similares de incentivos e fomentos regulatórios e tributários" semelhantes aos que existem para a joia da indústria aeronáutica brasileira, diz Ariovaldo Rocha, presidente do Sinaval.

"No passado, havia, em paralelo à construção para armadores nacionais, muitas construções para exportação, chegando o Brasil a construir quase 100 navios de grande porte para armadores internacionais."

A capacidade e a expertise dos estaleiros brasileiros é evidente, aponta o sindicato, tanto pela retomada da construção civil como pelos novos projetos da Marinha brasileira, que em parceria com a França e a Alemanha está também desenvolvendo seus meios.

Com o francês Naval Group, a Marinha desenvolve o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub). Ao todo, quatro submarinos de propulsão convencional e um de propulsão nuclear serão construídos. Por enquanto, três dos quatro submarinos convencionais previstos já foram lançados, enquanto o Álvaro Alberto, movido a energia nuclear, tem previsão de lançamento apenas na próxima década.

Já com a alemã Thyssenkrupp, a Marinha está construindo quatro fragatas classe Tamandaré, das quais a primeira foi lançada este ano. O projeto é feito por meio do consórcio Águas Azuis, do qual também participa a Embraer através das subsidiárias Embraer Defesa e Atech.

Nesse sentido, a falta de uma "Embraer naval" se deu até então pela ausência histórica de prioridade na área, aponta Kerr. A indústria naval é uma que, segundo o especialista, precisa de um mínimo de apoio estatal, através de medidas de reservas de mercado. "Foram os momentos que a gente desenvolveu."

Sendo assim, o modelo de criação da Embraer, estatal ligada à Aeronáutica que também contou com planos de desenvolvimento de aeronaves civis, nunca foi reproduzido pela Marinha que, de acordo com Kerr, sempre priorizou submarinos e fragatas importadas.

"Na Força Aérea, um pouco por causa da competição com a Argentina, que tinha uma indústria aeronáutica mais desenvolvida, a fabricação de um avião próprio foi priorizada."

Somado a isso, despesas com pessoal e, no caso da Marinha, com a manutenção do porta-aviões também impediram o desenvolvimento de novos projetos. "Tem anos que 95% do orçamento foi gasto com salário e manutenções."

Hoje, a situação é outra, e a Marinha do Brasil está desenvolvendo nacionalmente seus armamentos. Ainda assim, a oportunidade não parece estar sendo aproveitada pela força naval, que, diferentemente da Força Aérea Brasileira (FAB), não demonstra pensar na exportação de seus armamentos.

O caso da Marinha argentina, que olha para a Alemanha e França para comprar novos submarinos para a sua força, é ilustrativo.

Ainda que o Brasil estivesse na corrida para vender um submarino — antigo — para a Argentina, este seria um modelo já adquirido da Alemanha, o classe Tupi, e não um nacional representativo da tecnologia brasileira.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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