sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Cerrado em chamas: número de incêndios no bioma já ultrapassa total de focos registrados em 2023

O Cerrado está em chamas. 54.298 incêndios atingiram o bioma desde o início deste ano até a metade da segunda semana de setembro. O número já ultrapassa o total de focos computados ao longo dos doze meses de 2023, quando foram registrados 50.713 incêndios. Os dados são do monitoramento realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

As queimadas destroem a biodiversidade local e impactam profundamente a vida das comunidades que são guardiãs do Cerrado, como os povos indígenas e quilombolas e as populações ribeirinhas.  

Setembro acaba de começar, e o painel do Inpe mostra que o número de focos de incêndios identificados no bioma até esta terça-feira (10) já é maior do que o total registrado durante todo o mês de setembro do ano passado.

Segundo Isolete Wichinieski, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Articulação Agro é Fogo, os números são um retrato da expansão do agronegócio no Cerrado e da seca que se alastra desde o ano passado. 

“No ano passado, as chuvas não foram abundantes, como era necessário. A seca facilita esse processo [de queimadas] e facilita também a entrada das formas que os grileiros usam para atingir as comunidades. O fogo se torna uma das armas nesse sentido, para que as comunidades sejam impactadas. É uma forma de expulsão das comunidades. Pode ser que não seja uma questão que seja colocada como intencional, mas em si, acaba afetando”, explicou ao Brasil de Fato DF. 

Entre janeiro e agosto de 2024, o fogo consumiu 4 milhões de hectares de mata no cerrado brasileiro, sendo 79% de vegetação nativa. Esse valor representa um aumento de 85% em relação ao mesmo período do ano passado, quando 2,2 milhões de hectares foram queimados. Os dados são do Monitor do Fogo, da plataforma Mapbiomas.

·        Onde há desmatamento, há fogo

Os incêndios no Cerrado também estão diretamente relacionados ao desmatamento. As queimadas são utilizadas como técnica de limpeza de áreas para pastagem e plantio. Além disso, o solo desflorestado fica mais desprotegido e suscetível ao rápido alastramento do fogo, mesmo que de origem acidental. 

No ano passado, pela primeira vez desde o início da série do MapBiomas Alerta, o Cerrado foi o bioma com maior área desmatada do Brasil, ultrapassando a Amazônia. 

“Isso também é um fator que influencia o aumento das queimadas: a facilidade com que o fogo chega nesses espaços onde há desmatamento e depois ultrapassa os limites das áreas desmatadas, além da falta de controle e de prevenção ao fogo”, destacou Wichinieski. 

Em 2023, o Cerrado correspondeu a 61% da área desmatada do país, e a Amazônia a 25%. Apenas no Cerrado, houve um crescimento de 68% no desmatamento em relação a 2022. A expansão da agropecuária é responsável por 97% do desmatamento no país. Os dados são da edição mais recente do Relatório Anual do Desmatamento (RAD) no Brasil, divulgado pelo MapBiomas em maio deste ano. 

O documento também aponta um incremento no desmate de territórios que abrigam comunidades tradicionais e guardiãs do bioma. Na comparação com 2022, o desmatamento em terras indígenas no Cerrado aumentou 188% e 665% em território quilombola (TQ).

O Cerrado é considerado o berço das águas brasileiras, já que abriga os três principais aquíferos da América do Sul – Guarani, Bambuí e Urucuia – e as principais nascentes que abastecem grandes rios no Brasil e oito das doze regiões hidrográficas do país. 

No entanto, a remoção da vegetação reduz a umidade e impacta o ciclo de chuvas e o controle local do clima. Tudo isso contribui para a seca no Cerrado, que este ano, segundo estudo da Universidade de São Paulo (USP), é considerada a pior em 700 anos.

Em seis dias de incêndio, chamas consumiram mais de 10 mil hectares no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros / Foto: Coordenação Comunicação ICMBio

Wichinieski detalhou que o agronegócio também contribui para esse fenômeno. Segundo ela, a monocultura leva ao assoreamento de rios e impacta áreas de recarga hídrica.

“A seca, juntamente com os incêndios, prejudica ainda mais a permanência das comunidades que são guardiãs desse bioma, da floresta, das sementes, da biodiversidade que existe somente no Cerrado”, destacou a integrante da CPT.

Fogo na Chapada dos Veadeiros 

Após seis dias de chamas, o incêndio que se alastrava pela Chapada dos Veadeiros, em Alto Paraíso de Goiás (GO), começou a ser controlado na manhã desta quarta-feira (11), segundo informações do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Segundo o Instituto, “praticamente todos os focos” dentro e nas imediações da unidade de conservação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros foram controlados. As equipes ainda lutam para combater um último foco de calor na região do Moinho.

O incêndio, ainda sem informações quanto à origem e às causas, queimou uma área estimada em 8 mil hectares no interior do Parque. Somando a área queimada no entorno da unidade de conservação, a extensão total do dano alcança cerca de 10 mil hectares, conforme o ICMBio.

¨      Cerrado tem territórios quilombola e indígena mais desmatados do Brasil em 2023

Há cerca de 3 anos, o agricultor Domingos Rodrigues da Silva precisou abrir mão da sua criação de abelhas. Com o avanço do desmatamento, o espaço de mata onde ele mantinha a criação ficou cada vez mais reduzido, inviabilizando a atividade.  

Domingos mora desde 1968 na Barra do Aroeira, que fica no Tocantins e foi o território quilombola mais desmatado do Brasil em 2023, segundo dados da plataforma Mapbiomas. As terras estão na região do Matopiba, área do Cerrado onde há intensa expansão agrícola, entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. 

Somente no ano passado, a comunidade perdeu 2.555 hectares de mata, um aumento de mais de 600% com relação ao ano anterior.  

"Na cabeceira do córrego tá tudo desmatado", conta o agricultor. Com a derrubada da mata perto da nascente, o córrego assoreou, prejudicando as lavouras da comunidade, onde vivem cerca de 150 famílias. Por lá, os moradores plantam arroz, feijão, mandioca e outros alimentos. "De tudo um pouco, para o consumo", como explica Domingos.  

"Falar do Cerrado é como falar de nós. Porque a maioria do nosso modo de vida vem de estar e viver num ambiente como esse", diz a quilombola Rita Lopes. Ela é presidente da Associação do Território Quilombola Rio Preto, área vizinha à Barra do Aroeira, onde os moradores também sentem os impactos da devastação. A destruição do bioma tem secado veredas – pequenos rios que correm entre buritizais – e impactado a biodiversidade. "A derrubada das árvores está sumindo com as abelhas, que também fazem parte do bioma e da alimentação dos quilombolas. Não só na parte de alimentos, mas também medicinal", conta. No entorno desses territórios tradicionais, avançam as monoculturas de soja, milho e gergelim.  

As duas comunidades aguardam a titulação, procedimento que garante a segurança jurídica dos moradores, concedendo o título coletivo da terra e permitindo a preservação da área. Atualmente, no Tocantins, somente o quilombo Ilha de São Vicente, em Araguatins, tem a área toda titulada. 

A primeira etapa do processo de regularização territorial da Barra do Aroeira, o relatório antropológico, foi concluída em 2008. Em 2011, foi concluído e publicado o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Em 2021, os moradores receberam o título coletivo de uma porção de mil hectares do território. 

No Território Quilombola Rio Preto, um dos elementos que atesta a presença dos antepassados dos moradores na área é o Cemitério Campo Santo do Bom Jardim, reconhecido como sítio arqueológico histórico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2023. Entre árvores nativas, estão os túmulos centenários da comunidade, formando uma pequena ilha de mata em meio à devastação.  

<><> Território indígena 

Em 2023, o Território Indígena Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, no Maranhão, perdeu 2.750 hectares de mata, ficando no topo da lista de territórios indígenas mais desmatados do Brasil. "Foram dois lugares da TI desmatados a partir de 2011, 2012, por aí, até agora e que formaram duas grandes fazendas hoje dominadas pela agricultura", explica Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e coordenadora da equipe Cerrado do MapBiomas. O território tem área delimitada, mas ainda não foi homologado. A homologação é a etapa final do processo de demarcação de terras indígenas.  

Ao todo, foram perdidos 7.048 hectares de vegetação nativa em territórios indígenas no Cerrado em 2023, um aumento de 188% em relação a 2022, segundo dados do Mapbiomas. Em todo o Brasil, ao contrário, houve queda no desmatamento em TIs.

¨      'Amazônia entrou na estação seca já com déficit de água pela estiagem de 2023', avalia especialista

"A seca está matando os cafezais", lamenta o agricultor familiar Gersi de Souza, morador de Acrelândia (AC), um dos 3.978 municípios brasileiros afetados pela estiagem atual. "Ano passado a gente já viveu uma situação muito difícil. E esse ano a situação complicou", conta. Esta é a pior seca em 70 anos no Brasil, de acordo com dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.  

Pesquisadoras ouvidas pelo Brasil de Fato avaliam que o fenômeno é resultado da combinação entre a influência do El Niño, que afetou o Brasil em 2023, e o crescente desmatamento na Amazônia, intensificado durante o governo Bolsonaro. "Nos anos de 2019 a 2022, nós perdemos 50 mil km² de floresta primária, fora a secundária", explica Luciana Gatti, coordenadora do laboratório de gases de efeito estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). As florestas primárias são as matas nativas de um bioma, enquanto as secundárias são as que cresceram em área anteriormente desmatada. "A gente não recuperou os 50 mil km² quadrados de floresta perdida, e tampouco poucos zeramos o desmatamento", alerta.  

O El Niño, caracterizado pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico, reduziu as chuvas na Amazônia, trazendo um verão seco para a região em 2023. "A gente observou mortandade de peixes, de botos, populações ribeirinhas e povos indígenas, isolados e tendo dificuldade pra ter acesso a água de qualidade e transporte", relata Helga Correa, especialista em conservação na ONG WWF Brasil. Em 2024, a seca na Amazônia chegou antes do esperado, sem que o bioma se recuperasse da estiagem anterior. "Não tivemos chuva suficiente na estação úmida e entramos na estação seca já com déficit de água", explica a especialista.  

A perda de floresta tem como consequência a redução da evapotranspiração, processo de evaporação da água do solo e transpiração das plantas, que devolvem a água para a atmosfera. "Toda vez que eu mexo nessa possibilidade da floresta contribuir na evapotranspiração, eu contribuo na mudança da circulação da chuva e no aumento da temperatura de uma forma geral", diz Helga.  

Embora os efeitos da estiagem sejam mais nítidos na região Amazônica, onde populações ficaram isoladas devido ao baixo nível da água dos rios, os impactos podem ser sentidos em mais de 70% dos municípios do país.  

"Se, por um lado, o desmatamento beneficia economicamente algumas pessoas, o prejuízo para a saúde, o prejuízo dos impactos das mudanças climáticas, o prejuízo da perda de biodiversidade é compartilhado com todo mundo", ressalta Helga. 

Na avaliação de Luciana, o poder público precisa tomar medidas urgentes de controle de desmatamento e desenvolver projetos de reflorestamento para que esse quadro seja amenizado. "A gente precisa de mais árvore umedecendo a atmosfera para nos proteger das ondas de calor", alerta.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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