Vítimas indígenas
de Brumadinho ainda lutam para recuperar seu território
Aqueles
que moram por onde corre o Paraopeba, rio que atravessa o estado de Minas
Gerais, têm poucas chances de não lembrar o que aconteceu com aquelas águas. O
rio, com 510 km de extensão, passa por 35 cidades do estado e já não tem mais a
mesma saúde e biodiversidade de antes. O estado de ‘morte’ do leito é visível
na paisagem, na qual um manancial limpo foi substituído pela devastadora
realidade de uma bacia contaminada por 13 milhões de metros cúbicos de rejeitos
de minério.
O
rompimento da barragem do Córrego do Feijão, da mineradora Vale, no dia 25 de
janeiro de 2019, em Brumadinho (MG), culminou na morte de 272 pessoas. O
número é uma das consequências mais extremas e visíveis da mineração predatória que há
décadas se mascara como uma das principais atividades econômicas em Minas
Gerais.
A
linha férrea que corta o estado é o caminho de trens carregados com toneladas
de minério de ferro que passam e apitam inúmeras vezes durante o dia e a noite,
anunciando o lembrete de que, mesmo diante de um dos maiores crimes
socioambientais da história do Brasil, pouco mudou.
As
águas do Rio Paraopeba tornaram-se impróprias para uso e não recomendadas para
nenhuma finalidade, da pesca ao abastecimento doméstico, segundo laudos das prefeituras
de Brumadinho, Mário Campos, São Joaquim de Bicas e Juatuba. Somando todos os
26 municípios sob influência da bacia do Paraopeba, a população atingida chega
a aproximadamente 200 mil pessoas.
Depois
de quatro anos, a Vale e a TÜV Süd, empresa alemã que atestou a segurança da
barragem, ainda não responderam judicialmente pelos crimes ambientais e pelos
homicídios causados pelo rompimento. As pessoas atingidas, espalhadas por toda
a extensão territorial por onde passa o Rio Paraopeba, aguardam por reparação.
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Um rio de lama correndo na aldeia
Entre
os grupos afetados, estão comunidades indígenas Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe, que
desde 2019 enfrentam uma série de dificuldades para serem reconhecidas como
atingidas pelo rompimento da barragem e receberem as devidas indenizações pelas
violações. Enquanto isso, vivem na impossibilidade de dar continuidade ao seu
modo de vida tradicional.
Originárias
das aldeias de Coroa Vermelha, Barra Velha, Pau Brasil, Monte Pascoal, Pedra
Branca e Mata Medonha, todas no Sul da Bahia, aproximadamente 25 famílias
migraram para Minas Gerais em 2017. O objetivo era encontrar um território onde
pudessem se instalar e ter uma qualidade de vida melhor, com a possibilidade de
vivenciar suas tradições distantes das crescentes violências urbanas –
gradualmente mais comuns nas suas terras de origem. Na zona rural de São
Joaquim de Bicas, a menos de 20 km da barragem do Córrego do Feijão, fundaram a
aldeia de Naô Xohã.
O
espaço ocupado à beira do Rio Paraopeba, distante dos centros urbanos e próximo
da Mata Atlântica, era visto pelas famílias indígenas como uma chance de
vivenciar a natureza de acordo com seus saberes ancestrais. Ali buscavam o
sustento por meio da agricultura, da caça, do etnoturismo e do artesanato. Além
disso, a proximidade com a mata possibilitava uma conexão com a terra, os
animais e, especialmente, o sagrado Txopai, o rio.
Era
no Rio Paraopeba, a menos de 100 metros da aldeia, que os indígenas da Naô Xohã
consumiam a água, buscavam o peixe das refeições e realizavam seus rituais. Com
o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, demorou menos de 24 horas para
que os rejeitos de minério alcançassem o trecho onde a comunidade estava
instalada. “No outro dia, a lama chegou na nossa comunidade. Era um barulho
grande, e quando vi era um rio de lama”, relembra Célia Angohó, ex-moradora de
Naô Xohã e atual cacica da aldeia Katurãma.
Com
o rompimento, veio a impossibilidade de usufruir das águas da bacia. Na
ocasião, a orientação do governo de Minas Gerais foi que a população “não
fizesse uso da água bruta do Rio Paraopeba para qualquer finalidade até que a
situação seja normalizada”. A recomendação, que segue até os dias atuais,
alterou a rotina da comunidade. Crianças e adultos já não podiam usufruir da
bacia do rio como era de costume e as mudanças cotidianas ultrapassam as
barreiras das questões hídricas.
Rio
e animais mortos formavam cenas que até hoje são difíceis de esquecer. “A gente
via móveis, pedaços de animais passando. Os peixes pulavam para fora do rio”,
conta Angohó. Apesar de a aldeia ter sido evacuada um dia após a ruptura, os
moradores de Naô Xohã decidiram permanecer no terreno onde estavam suas
moradias.
·
Permanecer para resistir
Atual
liderança de Naô Xohã, o cacique Sucupira alega que a realocação proposta pela
Vale não considerou o protocolo de consulta prévia à comunidade
e determinava uma mudança para uma área muito menor do que o território que
ocupavam. “A gente tem o nosso costume de viver em reserva, em matas. Colocaram
uma parte do pessoal em uma área que não tem mata, não tem uma nascente, um
local muito pequeno, e eu como vice-cacique na época não aceitei”, conta.
A
permanência na Naô Xohã era uma resistência importante para o grupo. Mesmo
diante do cenário de incertezas sobre contaminação e outras consequências da
longa exposição aos metais pesados encontrados nos rejeitos de minério, uma
parte da comunidade optou por seguir no território. Hoje dependem de programas
de assistência governamentais e da venda de artesanato.
“Como
líder do povo que ficou na aldeia Naô Xohã, tenho a esperança de reconstruir.
Nós temos nossos antepassados, os deuses e espíritos que nos orientam a
reconstruir. Nunca vai ser que nem antes do rompimento, mas a gente vai se
habituar”, enfatiza Sucupira.
Além
do rompimento da barragem, os alagamentos causados pelas cheias do rio
Paraopeba também atingiram Naô Xohã. Nas chuvas de janeiro de 2022, as
enchentes foram tão intensas que chegaram ao terreno da aldeia, trazendo nova
necessidade de evacuação, pois a água do rio segue contaminada pelos rejeitos
da barragem e apresentam índices altos de metais pesados, como ferro, manganês
e alumínio.
A
contaminação na água e no solo da calha do rio traz a iminente possibilidade de
que o solo da aldeia também esteja contaminado, considerando que as enchentes
do Paraopeba também atingiram os roçados indígenas. Com isso, ficou inviável o
plantio no território, causando grandes mudanças na saúde da comunidade. A
alimentação, antes baseada no que era semeado e colhido ali, foi trocada pelo
consumo de ultraprocessados e alimentos industrializados, que antes não faziam
parte da rotina alimentar, especialmente das crianças.
O
resultado é uma epidemia de diabetes que atinge grande parte dos indígenas da
comunidade. “Antes, nós não tínhamos isso. Criança e adulto, tudo tem hoje. A
gente não tinha o costume de comer nada ensacado, com agrotóxico. Nossa
plantação não tinha nada disso. Depois do crime, a gente tem que ir no
supermercado, comprar arroz, feijão, milho, mandioca. Tudo isso sai do nosso
próprio bolso”, conta o cacique Sucupira, que relata que, além de diabetes, a aldeia
também sofre com intoxicações, alergias, febres e problemas respiratórios
causados pela presença do minério no rio.
·
À procura de um território
Sem
uma alocação adequada provida pela mineradora Vale, algumas das famílias da
aldeia Naô Xohã que não permaneceram no território acabaram se dispersando pela
Região Metropolitana de Belo Horizonte, capital mineira, onde passaram a
habitar em condições inadequadas.
Hotéis,
ginásios escolares e casas precárias na periferia de Belo Horizonte foram
cenário de momentos complicados para parte da comunidade dos Pataxó e Pataxó
Hã-Hã-Hãe. O aglomerado do Jardim Vitória, no nordeste da capital, foi um das
situações mais complicadas, especialmente considerando o período de alta da
pandemia de covid-19.
Com
um espaço restrito e um cotidiano bem diferente do vivenciado na aldeia, os
indígenas sofreram com a mudança de rotina e com o preconceito por parte da
sociedade. “Quando estávamos na cidade, igual estava no Jardim Vitória, diziam
‘aqui não é seu lugar. Lugar de índio é lá no Amazonas’, ou então que lugar de
índio é na floresta “, conta a cacica Angohó, se referindo ao novo espaço onde
está sendo construída a aldeia Katurãma.
Os
relatos de preconceito eram constantes: quem foi provisoriamente para o
aglomerado no Jardim Vitória era chamado de ‘índio urbano’ e tinha a
ancestralidade questionada com frequência. “Eu via as falas racistas. Diziam
que nunca viram índio de olho claro, com pele escura. A gente entrava no
mercado, a segurança estava sempre seguindo a gente. A gente era muito
constrangido nos ônibus, sempre passava muita vergonha por estar com nossos
trajes”, relembra Angohó.
Em
busca de soluções, as comunidades de Naô Xohã e Katurãma viabilizam sua
sobrevivência por meio de doações e ajuda humanitária, uma vez que nem todos os
grupos são contemplados pelo Termo de Ajuste Preliminar Emergencial firmado
pela Vale.
A
maior assistência que os indígenas obtiveram não veio do governo nem da
mineradora: uma Reserva Particular do Patrimônio Natural localizada em São Joaquim
de Bicas, pertencente à Associação Mineira de Cultura Nipo-Brasileira, foi
negociada com a comunidade. Uma parte do território foi doada e a outra,
vendida por uma parte do acordo de reparação – que ainda não foi concretizado.
No
local conhecido anteriormente como Mata do Japonês nasceu em 2021 a aldeia
Katurãma, um terreno de 36 hectares no perímetro urbano de São Joaquim de
Bicas, a poucos quilômetros de onde fica a aldeia Naô Xohã.
Ainda
que o território tenha deixado de ser uma questão, uma outra série de problemas
são enfrentados na comunidade. A presença e as constantes ameaças de posseiros
e grileiros é uma delas, conflito que se intensificou com a ida dos Pataxó para
o local. As lideranças relatam episódios que vão de ligações anônimas e intimidação
até envenenamento de cachorros de moradores da aldeia.
Com
o novo território, a expectativa era de receber apoio e proteção de órgãos como
a Polícia Federal e a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), o que não
ocorre por tratar-se de uma propriedade particular e não um território
demarcado pelo Governo Federal.
“Se
nós falamos nossa língua, vivemos num coletivo, temos uma comunidade, uma
aldeia, uma escola bilíngue, porque para a gente ser considerado indígena a
gente tem que ter uma terra demarcada? A nossa autodemarcação não vale?”,
questiona a cacica de Katurãma, em busca de reconhecimento.
Quase
dois anos após se mudarem para a Mata do Japonês, a falta de recursos faz com
que algumas famílias ainda não tenham conseguido construir casas e sigam
morando em habitações precárias e até mesmo debaixo de lonas. Fossas secas e
três banheiros foram construídos para atender as 25 famílias que vivem em
Katurãma – tudo produzido pelas mãos e recursos da própria comunidade, com
ajuda de voluntários.
Com
a maior proximidade da área urbana da cidade do que em Naô Xohã, o assédio
moral e o racismo também acabam se tornando mais presentes no cotidiano da
comunidade. “A gente escuta das pessoas que aqui não é nosso lugar. Onde que é?
Eu quero saber. Se nós quisermos estar dentro dessa mata na cidade, não vamos
deixar de ser indígenas. Não vamos aceitar mais que as pessoas falem onde é o
lugar onde nós devemos ficar”, afirma Angohó.
“A gente só quer viver onde a gente foi feito
pra viver. Dentro das matas, do nosso modo, com a nossa cultura que é
diferenciada. A gente quer comer um peixe assado numa folha da patioba, beber
água da nascente, plantar dentro da minha terra. A gente só quer viver sem
doença, sem preconceito. Somos nativos brasileiros, filhos desse solo e só quer
respeito pra viver”, desabafa a cacica.
Procurada
pelo Mongabay, a Vale declara que “em 2019 assinou um Termo de Ajuste
Preliminar Emergencial que prevê ações de avaliação e remediação dos impactos
causados à comunidade que vivia próximo à Bacia do Paraopeba e que mantém um
permanente diálogo com as comunidades impactadas, sempre respeitando suas
tradições e reconhecendo a autonomia e protagonismo assegurados pela
Constituição”. As comunidades de Naô Xohã e Katurãma negam que estejam
recebendo a devida assistência da empresa.
Fonte:
Mongabay
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