quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Debate sobre direitos humanos entre países do Sul Global desafia unilateralismo do Ocidente

Em comemoração ao cinquentenário das relações diplomáticas entre Brasil e China e o décimo aniversário entre a China e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), foi realizado nesta terça-feira (10), no Rio de Janeiro, um evento com o intuito de debater direitos humanos, relações internacionais e governança global.

Com o tema "Diversidade da Civilização e a Escolha do Caminho para Realizar os Direitos Humanos", o evento contou com a participação de mais de 120 pessoas, entre altos funcionários, especialistas, acadêmicos, representantes de organizações sociais relevantes, think tanks e mídia.

Durante o encontro, os presentes ressaltaram os direitos humanos como ferramenta para o mundo multilateral, reforçando os cuidados com a segurança, a saúde, ciência e a empregabilidade. Descolando a ideia de direitos humanos de uma visão unipolar.

Enquanto discursava, Victoria Donda, membro do parlamento do Mercosul, chamou a atenção para os riscos de uma perspectiva unilateral de direitos humanos, frisando a importância de aprofundar o debate sobre o tema.

Segundo ela, direitos humanos, liberdade e democracia têm sido utilizados como conceitos vazios para a intervenção política em alguns países.

À Sputnik Brasil, Donda reafirmou que é preciso ressignificar conceitos como direitos humanos e democracia, ferramentas que os Estados utilizam para garantir os direitos de seus cidadãos.

"Os direitos humanos associados a momentos excepcionais são usados ​​como um teste para o intervencionismo global por parte dos países centrais. Acreditamos que falar sobre direitos humanos e garantias de direitos humanos deve ser feito num contexto de diversidade de povos e de respeito aos governos que respeitam essas políticas", disse.

"Esses países que reconquistaram a sua independência, reconquistaram seus protagonismos e e trazem temáticas importantes como o desenvolvimento, a cooperação, a justiça internacional e o multilateralismo", disse, em entrevista à Sputnik Brasil, Marcos Cordeiro Pires, professor de economia política internacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Exemplo de país que, a partir do desenvolvimento e da estruturação de suas bases políticas e econômicas amplia sua voz nos debates em contexto global, é a China. Pires destaca que ter o gigante asiático conduzindo conversas relacionadas aos direitos humanos é importante, pois trata-se de um país "que não tem suas pretensões hegemônicas e também não tem um discurso universalista".

"Direitos humanos não é um patrimônio exclusivo dos países ocidentais. Esse debate aqui é muito importante porque a nossa percepção de direitos humanos, ela se reduz muito aos aspectos formais, tal como aqueles liderados pelos Estados Unidos e os países europeus", afirma o professor na Unesp. "Discutir direitos humanos atualmente na América Latina é estender esses conceitos abstratos e trazer problemas reais, como principalmente o desenvolvimento e o combate à fome como um direito essencial para todos os seres humanos", acrescenta.

Juan Carlos Moraga Duque, presidente da ONG Human Rights Without Frontier (Direitos Humanos Sem Fronteiras), ressaltou em seu discurso o papel exercido pela China quando o assunto é direitos humanos, ao passo que este lugar não é reconhecido, sobretudo pelo Ocidente, a partir de repetidos lugares-comuns e sem conteúdo acerca do país.

"Um caso específico é a Ucrânia, onde a China tem defendido com o seu imenso apoio que as negociações de paz devem ser apoiadas, ao contrário dos países da OTAN que, claro, sem consultar o seu povo, estão a colocar lenha na fogueira para acumular enormes fortunas. Para eles, a guerra é um negócio e, portanto, uma clara violação dos direitos humanos que devemos denunciar", destaca.

Conforme destaca Moraga Duque, a Constituição Chinesa, aprovada em 1982, define os direitos humanos como uma parte importante do Estado de Direito e governança social.

Na mesma linha, Ronnie Lins, diretor do Center China & Brazil: Research and Business (CCB), afirma em declarações à Sputnik Brasil que o conceito de direitos humanos é preponderante para os chineses e está diretamente relacionado à soberania nacional.

"Obviamente, a defesa das pessoas, a defesa do país, dos interesses, isso tudo faz parte da manutenção dos direitos humanos dos chineses", afirma.

O evento, portanto, permite que a temática direitos humanos seja colocada no centro do diálogo Sul-Sul, mais especificamente entre a China, notadamente uma potência mundial, e países da América Latina.

O encontro, em suma, oportuniza que as nações latino-americanas obtenham melhor conhecimento a respeito de tradições e valores que também fundamentam os direitos humanos no mundo oriental, além daquelas que, comumente, estão acostumadas a lidar.

"[O evento] permite a troca de experiências, de conhecer quais são as abordagens e valores e identificar de maneira prioritária onde é que estão as concepções de direitos humanos que possam ser consideradas universais, independentemente das culturas, independentemente das diferenças que possam existir entre os países", destaca à Sputnik Paulo Abrão, ex-secretário-executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IPPDH) do Mercosul, ex-secretário-nacional de Justiça, ex-diretor do Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos do Mercosul e presidente da Comissão de Anistia do Brasil.

Abrão ressalta, ainda, as condições atuais para realizar um debate dessa proporção que permita uma discussão crítica da construção histórica e force a comunidade internacional a reconhecer a complexidade da diversidade humana para que, ciente dos desafios, rume para a construção de uma sociedade mais pacífica, "tendo os direitos humanos como a gramática ou o eixo estruturante dessas relações sociais".

"O diálogo entre o Sul Global é um ponto de partida importante, porque ele estabelece uma perspectiva do Sul Global em relação a essa forma de se viver que tem que ser reconhecida pelos países centrais. Não é mais possível que, numa complexidade que nós vivemos atualmente, tenhamos fórmulas únicas para poderem ser aplicadas a todas as sociedades, especificamente na agenda de direitos humanos", conclui.

¨      Shoigu: parceria do BRICS com Sul Global consolida maioria mundial

A cooperação entre os países do BRICS e os Estados do Sul Global está em demanda agora mais do que nunca, pois contribui para a consolidação da maioria mundial, disse o secretário do Conselho de Segurança da Rússia, Sergei Shoigu.

A 14ª Reunião dos Altos Representantes do BRICS e BRICS+ sobre Assuntos de Segurança está sendo realizada em São Petersburgo de terça (10) a quinta-feira (12).

Durante uma sessão plenária da reunião, Shoigu disse que uma das principais áreas de seu trabalho é intensificar a cooperação com todos os países do Sul Global.

"Acredito que, nas condições de mudanças fundamentais que estão ocorrendo no cenário mundial, essa interação é mais necessária do que nunca e é chamada a contribuir para a consolidação da maioria mundial", apontou.

Segundo ele, os esforços de todos os países-membros vão tornar o BRICS uma "ferramenta importante para garantir o equilíbrio de interesses, consolidação da paz, estabilidade e confiança mútua".

Shoigu acrescentou também que "a erosão do sistema de segurança internacional é uma ameaça aos países soberanos".

De acordo com ele, vários Estados ocidentais estão impondo "a chamada ordem baseada em regras à comunidade mundial, mas o próprio processo de surgimento de tais regras contradiz a essência e os fundamentos do direito internacional".

Ao mesmo tempo, o potencial de cooperação em segurança no âmbito dos BRICS está longe de se esgotar.

"Nossa associação, ao longo dos anos de sua existência, se estabeleceu como um formato inovador e exigido de cooperação internacional com base no diálogo igualitário, no respeito pelo modo de desenvolvimento de cada um e na consideração dos interesses uns dos outros para a busca coletiva de soluções para os problemas globais", declarou.

O representante da delegação chinesa, ministro das Relações Exteriores Wang Yi, por sua vez, disse que devido às grandes convulsões que estão acontecendo agora, muitos países "enfrentam enormes ameaças e déficits de segurança".

Nesse contexto, o BRICS está se tornando uma plataforma em que a causa da paz e as abordagens construtivas da agenda internacional estão sendo defendidas, segundo ele.

"Nosso papel construtivo está se tornando cada vez mais tangível. Um grande número de países está interessado no BRICS e tudo isso indica a grande vitalidade de nosso mecanismo", disse Wang Yi.

Ele afirmou que no mundo em que há países que seguem o pensamento da Guerra Fria, os membros do BRICS devem cumprir com os princípios de multilateralismo, cooperação e defesa dos interesses legítimos dos países em desenvolvimento.

A Rússia assumiu a presidência do BRICS em 1º de janeiro deste ano. Nessa data, além da Rússia, Brasil, Índia, China e África do Sul, entraram no bloco os novos países-membros: o Egito, a Etiópia, o Irã, os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita.

Em junho, o primeiro-ministro da Malásia Anwar bin Ibrahim confirmou a Lula da Silva a intenção da Malásia de participar do BRICS.

No dia 20 de agosto, o Azerbaijão solicitou oficialmente sua adesão ao BRICS.

Recentemente, o assessor presidencial russo Yuri Ushakov confirmou que a Turquia havia se candidatado a membro pleno do BRICS e que o pedido está sendo analisado.

¨      Agenda de Amorim na Rússia reforça papel da multipolaridade frente aos desafios globais

Em sua terceira viagem do ano à Rússia, o assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, já se reuniu com o ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, e participa de discussões entre autoridades da área de defesa de países do BRICS. Para especialista, a presença reforça aposta na cooperação Sul-Sul.

Pelo segundo dia consecutivo, as principais autoridades brasileiras e russas no ramo das relações internacionais tiveram encontros bilaterais em meio ao aumento das tensões globais da América Latina à Ásia. Após o chanceler Mauro Vieira, nesta terça-feira (10), foi a vez do assessor especial Celso Amorim se reunir com o ministro Sergei Lavrov, chanceler da Rússia. Conforme comunicado divulgado pela Rússia, mais uma vez, as relações bilaterais entre os dois países estiveram em foco, com a discussão de um calendário de novos encontros em "alto nível", incluindo os eventos "sob a presidência da Rússia no BRICS e do Brasil no G20".

Amorim segue na Rússia até a próxima quarta (11) e deve representar o Brasil no fórum que vai reunir as principais autoridades das áreas de defesa e segurança nacional dos países-membros do grupo em São Petersburgo, que conta com três dias de agenda.

O professor de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) José Renato Ferraz da Silveira explica à Sputnik Brasil que as constantes agendas ajudam a reforçar a contribuição do país na cooperação Sul-Sul. "Esse fato [a terceira viagem de Amorim à Rússia] só corrobora que o ex-ministro das relações exteriores é a eminência parda dos assuntos internacionais do governo Lula 3", resume.

Além disso, o especialista acrescenta que a articulação brasileira diante das preocupações com o conflito na Ucrânia, em que foi relatado recentemente o uso de técnicas introduzidas pelos nazistas por Kiev e a guerra de Israel na Faixa de Gaza, reforça o papel "da diplomacia, do diálogo, do multilateralismo, do fim das hostilidades e o uso de dois vetores importantes: a criatividade e o humanismo".

"Os problemas atuais de paz/guerra no mundo exigem atualização dos mecanismos jurídicos e institucionais da ONU [Organização das Nações Unidas] e introduzir alternativas ao FMI [Fundo Monetário Internacional] e ao BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] para o fomento das economias emergentes. O Brasil e outros membros do BRICS reconhecem a necessidade de mudança e de uma ordem mais multipolar. O Brasil escolheu e escolhe o caminho da multipolaridade a partir do aprofundamento das interações entre os membros do BRICS. O papel da atual política externa brasileira compreende que os ganhos relativos no desenvolvimento dessas parcerias estratégicas, na consolidação do BRICS, é mais substantivo do que optar por outros caminhos já traçados no passado", enfatiza.

Outro exemplo, segundo o professor, é o papel de mediador do Brasil frente à situação na Venezuela, em que vários países da América do Sul "queimaram pontes com Caracas", como Argentina, Equador e Peru.

"O Brasil buscou desde o princípio da crise venezuelana mediar e negociar por uma saída pacífica das partes em conflito e fez algumas propostas para tentar melhorar o clima político venezuelano", argumenta.

<><> Quais países compõem o BRICS?

Único representante da América Latina no BRICS, que no ano passado chegou a anunciar a entrada da Argentina a partir de 2024 no bloco — com a eleição de Javier Milei, o novo presidente anunciou a desistência do ingresso de Buenos Aires —, o Brasil tem um papel crucial nas discussões para a entrada de outros possíveis representantes latino-americanos, acrescenta o especialista. Entre os já citados está a Colômbia, cujas relações com Brasília se intensificaram diante da proximidade entre os governos Luiz Inácio Lula da Silva e Gustavo Petro. Em abril, o presidente brasileiro chegou a prometer que vai patrocinar a entrada do país no grupo.

"O Brasil tende a ter uma visão estratégica correta de sua inserção global. Exercer uma liderança na América do Sul, navegar com habilidade entre os desafios novos da integração econômica, articular de forma adequada os níveis regional, hemisférico e global e preservar o perfil de um negociador global. Ou seja, a atuação ou a arregimentação dos aliados latino-americanos para o BRICS revela o esforço de uma diplomacia ativa e altiva", enfatiza.

Já a professora de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora do Lab.Ásia Alana Camoça lembrou à Sputnik Brasil que nos últimos anos o país busca reafirmar sua presença na arena internacional como ator relevante na discussão de questões de defesa e segurança globais, sendo um dos principais instrumentos justamente o BRICS.

"Amorim, com sua experiência diplomática, destaca o interesse do Brasil em se engajar ativamente em debates estratégicos e contribuir para a formulação de políticas que impactam a estabilidade internacional", diz.

<><> Questionamento da ordem global vigente

Para além de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, o BRICS registrou uma expansão inédita este ano com o anúncio da entrada de Egito, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Etiópia e Irã. A especialista cita que o país tem adotado uma postura de apoio à integração dos novos membros, inclusive Teerã, que é um dos principais países que enfrentam a tentativa dos Estados Unidos em interferir nas questões regionais e na soberania do Oriente Médio.

"O tom predominante entre os membros do BRICS parece focar na promoção de uma agenda multilateral e na inclusão de nações emergentes ou potências médias em tomadas de decisão sobre questões globais. Não diria que se trata necessariamente de confrontar a hegemonia dos Estados Unidos, mas sim de questionar a ordem global vigente, incluindo suas instituições, regimes e estruturas de poder, buscando maior atuação de países emergentes, potências médias do Sul Global", afirma.

Mesmo com a experiência diplomática trazida por Amorim às discussões, a especialista vê o atual momento global como desafiador, principalmente no curto prazo.

"O Brasil tem historicamente adotado uma postura de neutralidade e mediação em conflitos regionais e internacionais. Cabe ressaltar que, todavia, mesmo que Amorim possa ajudar a criar mecanismos de diálogo e facilitar a busca por soluções pacíficas, dificilmente, diante da polarização que vivenciamos hoje, seria possível enxergar no curtíssimo prazo uma atuação significativa do Brasil nessa questão", finaliza.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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