sexta-feira, 13 de setembro de 2024

André Ricardo Dias: ‘O caso Sílvio Almeida’

O caso das denúncias de assédio contra Sílvio Almeida nos oferece a possibilidade de analisarmos duas posições de vítima encontradas em meio aos sujeitos sociais sobre os quais recaem formas de violência discriminatórias, bem como suas implicações nos debates atuais sobre as identidades sociais. A primeira seria a vítima desimplicada da violência sofrida – aqui, na medida do funcionamento queixoso do ressentido, posição na qual o sujeito atribui unicamente ao outro a causa dos seus males – sendo indiferente o fato de ter ou não sofrido a agressão.

É bom esclarecermos que à nível de uma interpretação psicanalítica, não importa se a violência se deu de fato ou não, pois o essencial é que haja a manutenção cíclica deste afeto paralisante. A outra, a vítima, digamos, inconteste, sobre a qual, diga-se de passagem, em tais situações – a vítima do assédio, do estupro – primeiramente recai a suspeição e o descrédito.

E foi assim que militantes de diversos segmentos das minorias (chamaremos de militância hegemônica identitária, sem tratarmos dos aspectos políticos e econômicos aqui envolvidos) se posicionaram imediatamente após a divulgação das primeiras denúncias contra o até então ministro dos direitos humanos. Antes de argumentar em desfavor da referida idealização reificante, quero lembrar o caso de um participante da última edição do Big Brother Brasil, um homem negro, que se referiu às mulheres negras como “macacas”.

Sobre este caso, até hoje impera o silêncio. Agora tomemos o problema da reificação. Genericamente este conceito designa a “coisificação” ou, em nosso caso, exatamente a transformação do homem em objeto. Neste caminho, perpassa a idealização, a construção de um homem negro unidimensional, reduzido a tal condição, imagem e semelhança da identidade negra criada sobremaneira pelo movimento identitário acadêmico. Falaremos sobre isso adiante.

Estes casos demonstram o impasse no qual se encontra a nossa militância, agora, nem sempre exatamente à esquerda do espectro político. Primeiramente, chamamos de identitário o discurso autocentrado em torno de formas homogeneizantes de identidades sociais quando, por exemplo, a condição de raça e gênero vem a desconsiderar o fator classe, além das múltiplas determinações que nos conformam enquanto indivíduos vivendo em sociedade.

Este tipo de discurso, majoritário em meio à nossa militância, tem origem no pragmatismo norte-americano em sua valorização prática discursiva pouco afeita às complexidades socioeconômicas imbricadas às questões de raça, classe, etnia, gênero, etc. Daí a necessidade, por parte de tais movimentos e teorias diversas, de cunharem termos como interseccionalidade, branquitude, decolonialidade, dentre outros conceitos que intentam enlaçar à fórceps diversas determinações que se “entrecruzariam” na clareza de uma boa análise crítica dialética.

Deixando o trato teórico à grosso modo, voltemos aqui à crítica da reificação. Dizemos que desimplicar a vítima da violência racial da qual, bem sabemos, são o ex-ministro e o ex-BBB alvo em potencial, da responsabilização perante seus atos na vida cotidiana, significa reproduzir um duplo preconceito. Em sua dupla face, ao se destituir a condição de sujeito frente à negação da “agência”, ou seja, da autonomia e responsabilização, em favor de uma deferência comiserativa que em nada significa alçar a vítima da violência racial à condição de sujeito.

Ora, em relação às denúncias contra o ministro, o que turvou o entendimento da militância ao se deparar com aquela situação? Por que a possível vítima foi sorrateiramente desacreditada, dessa vez, por parte dos segmentos que lutam publicamente contra a violência contra as mulheres? Me refiro, inclusive, a figuras públicas cujos comentários de apoio ao ministro podem ser lidos nas postagens em seu perfil no Instagram até esta data.

O detalhe de que a vítima principal seja Anielle Franco, uma mulher que encerra em si mesma condicionantes que a tornam um exemplo da mulher violentada pelo nosso patriarcado assassino e exploratório, aponta para a gravidade do quadro teórico e militante que orienta aqueles segmentos políticos.

Talvez haja em questão duas reificações, a do racismo brasileiro, que subjuga a cor da pele a um fantasma que se reflete na violência real das relações socias concretas, e a reificação da “causa”, que também reproduziria um racismo de viés, que toma o negro pela exceção não apenas para apontar a particularidade do ser negro no Brasil como dispositivo de denúncia, mas para demarcar uma identidade estabilizada com vistas à manutenção da posição de vítima. Caberia entendermos em nome de quais ganhos este último se mantém ativo, se concordemos que estamos na crista deste paradoxo.

Que a opinião pública tenha caído na lábia do advogado que solicitou, em tom processual, provas para um crime de importunação sexual, que se diga, um bem sucedido advogado no uso de suas artimanhas discursivas e oratórias já bastante conhecidas, vem demonstrar que caímos na cilada – esta sim – do vitimismo. Aqui opera o recurso utilizado por Almeida ao se posicionar publicamente em sua defesa enquanto homem negro vítima de racismo.

O mesmo recurso que desimplica a responsabilidade do participante de um programa de televisão de longo alcance quando este fere de morte as mulheres negras, repetindo em alto e bom som um nefasto xingamento que nos revira traumas sociais do racismo (o autor aqui foi chamado de “macaco” durante a sua vida escolar) socialmente abominável na atualidade.

À nível da militância hegemônica identitária, o desfecho do caso Silvio Almeida seguramente será o mesmo que se deu ao episódio envolvendo o referido participante do BBB24: não haverá coragem para ultrapassar o discurso queixoso em direção à justiça, pois ali, pouco encontraremos além da posição desimplicada da vítima em seu lamento ad aeternum que, em tais casos, é um manto para encobrir a covardia.

 

•        Ex-aluna de Silvio Almeida relata ter sido assediada antes da banca de monografia

Quando Carla atendeu o telefone, ela reconheceu de imediato a voz do outro lado da linha: era Silvio Almeida. O ano era 2009 e Almeida havia sido seu professor durante dois anos na graduação de Direito na Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo. “Oi, tudo bem? Sabe quem está falando?”, teria perguntado ele. 

Quinze anos depois, Carla reviveu aquele momento em entrevista ao Intercept Brasil. “Eu obviamente reconheci a voz, eu escutava ela todos os dias”, ela me disse.

O ex-ministro Silvio Almeida foi demitido da pasta de Direitos Humanos na sexta-feira, 6, após denúncias de assédio sexual e moral praticados dentro da pasta virem à tona.

A existência das denúncias foi confirmada pela organização Me Too, uma organização sem fins lucrativos que apoia vítimas de assédio sexual. Mas Carla relata ter sido assediada por Almeida muito antes que ele chegasse ao governo.

Carla foi aluna da São Judas Tadeu entre 2005 e 2009. Na época, Silvio Almeida lecionou a disciplina de Filosofia no curso de Direito. No último ano da graduação da estudante, Almeida foi indicado para compor a banca de avaliação de sua monografia final — foi essa a ocasião da ligação, segundo ela.

Carla afirma que Almeida lhe disse no telefone: “acho que a gente devia sair para conversar sobre o seu tema porque eu não quero que você saia prejudicada”. A então estudante desconversou e disse que não tinha tempo pois trabalhava e estudava, lembra.

O professor voltou a ligar outras vezes, segundo ela, mas não “subia o tom”. Apenas reiterava que não queria que a aluna saísse prejudicada, ela lembra. Carla afirma não saber como o professor obteve seu número de telefone.

Na época, Carla contou o ocorrido apenas para as amigas próximas. Ela não buscou a reitoria da universidade por medo e porque não tinha como apresentar provas contra o professor. “Fiquei com medo dele realmente me prejudicar na monografia”, disse ela.

Foram essas amigas que enviaram para Carla as notícias sobre as  denúncias de assédio moral e sexual contra Almeida dentro do ministério dos Direitos Humanos.

Depois que o caso se tornou público, vieram à tona outros relatos de mulheres que conviveram com Silvio Almeida em outros espaços. Uma professora foi à público para dizer que foi vítima de assédio sexual por parte de Almeida em 2019 na Escola de Governo.

Na quinta-feira, a revista Veja publicou que estudantes de Direito da São Judas Tadeu relataram a colegas episódios de assédio de Almeida.

Segundo a Veja, os relatos eram de “tentativa de troca de favores sexuais para que a avaliação das provas fosse alterada para melhor”. O Intercept questionou Carla se havia, na época dela, outros casos conhecidos. Ela disse saber de uma outra aluna que também havia dito que Almeida deixava claro que gostaria de sair com ela.

“Eu sabia que não era a única”, disse Carla. Ao ver as notícias na semana passada, ela se disse aliviada. “Agora ele mexeu com alguém que está no mesmo nível que ele, que talvez não teria tanto medo de falar alguma coisa”, disse ela.

Questionada pelo Intercept, a Universidade São Judas Tadeu disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que até o momento “não recebeu nenhuma denúncia ou relato formal de natureza semelhante aos mencionados” e que, por isso, desconhece os fatos.

A instituição acrescentou que “apesar de não haver qualquer relação jurídica com o ex-professor há cinco anos, a instituição está apurando internamente o tema” e está à disposição das autoridades.

O Intercept entrou em contato com Silvio Almeida por meio de sua assessoria de comunicação, mas não houve resposta até o fechamento da reportagem.

 

Fonte: A Terra é Redonda/The Intercept

 

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