Na semana passada,
durante uma visita a Damasco, o novo líder da Síria, Ahmed al-Sharaa (anteriormente
conhecido como Abu Mohammed al-Jolani), foi abordado por uma jovem que pediu
para tirar uma foto com ele. Ele pediu gentilmente que ela cobrisse o cabelo
antes de tirar a foto.
O incidente
rapidamente provocou um debate acalorado nas redes sociais e na mídia
árabe.
O que aconteceu
pode ter sido pequeno, mas foi revelador porque simbolizou a corda bamba em que
se encontram os novos governantes da Síria, o grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS),
designado como uma organização terrorista pela Organização das Nações Unidas
(ONU), pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pelo Reino Unido.
De um lado, está a
população síria diversificada e, em alguns casos, mais liberal, junto à
comunidade internacional, cuja aceitação é crucial para a sobrevivência e a
legitimidade do HTS.
Para eles, o
incidente com o cabelo ofereceu um vislumbre preocupante do possível futuro da
Síria sob o comando do HTS, evidenciando o temor de que as políticas
conservadoras possam acabar impondo o uso do véu para todas as mulheres.
Por outro lado, os
radicais islâmicos criticaram al-Sharaa por ter tirado a foto, descrevendo a
mulher como uma "mutabarijah" — termo usado para designar uma mulher
que se veste de forma indecente ou usa maquiagem —, e insistindo que sua ação
violava as regras religiosas.
Estes radicais
exercem influência significativa sobre as facções militantes — e podem
mobilizar a oposição dentro da própria base islâmica de al-Sharaa.
O HTS enfrenta o
desafio de tentar conciliar essas demandas concorrentes — equilibrando as
expectativas da comunidade internacional e dos setores liberais da população
síria com as demandas da ala radical. Ambos os lados estão analisando
atentamente cada declaração e ação do HTS.
Em suas mensagens, ele se concentrou
na coexistência dentro da sociedade diversificada
da Síria, concedeu anistia a ex-militares recrutados, proibiu atos de vingança
contra ex-funcionários e partidários do governo e adotou uma linguagem neutra
e, por vezes, conciliatória ao se dirigir a adversários tradicionais, incluindo
Israel, Estados Unidos, Irã e Rússia.
Suas declarações
foram deliberadamente desprovidas de retórica inflamada ou ameaças,
concentrando-se em temas como reconciliação, estabilidade e reconstrução, em um
claro esforço para neutralizar a oposição e pressionar pela retirada do HTS e
do próprio al-Sharaa das listas internacionais de terroristas.
·
Desconforto
significativo
Ainda não está
claro se a abordagem flexível de al-Sharaa representa uma mudança ideológica
genuína ou uma estratégia calculada com o objetivo de obter aprovação e
consolidar o poder antes de implementar potencialmente uma agenda mais rígida e
religiosamente conservadora.
Mas suas medidas
mais progressistas já estão provocando um desconforto significativo entre os
radicais na Síria, que insistem em um governo islâmico enraizado em uma
identidade sunita rigorosa.
Embora os árabes
sunitas sejam o grupo étnico e religioso dominante na Síria, o país é
notavelmente diversificado, com uma série de grupos minoritários, incluindo
xiitas alauítas, como o presidente deposto Bashar al-Assad, curdos, cristãos,
drusos, turcomanos e ismaelitas, além de outros pequenos grupos.
Mesmo que a
liderança do HTS esteja sendo genuína em sua pressão por mudanças, a ampla
variedade de facções islâmicas e jihadistas profundamente enraizadas na Síria —
muitas das quais desempenharam papéis importantes na recente ofensiva —,
provavelmente não vai tolerar qualquer coisa que não seja um sistema islâmico
rigoroso.
Caso o HTS se
desvie deste caminho, é provável que estas facções estejam preparadas para
recorrer à resistência armada para impor sua visão.
Mas este não é um
desafio novo para o HTS.
·
Do
Estado Islâmico à Al-Qaeda ao HTS
Há uma década, o
grupo, anteriormente conhecido como Frente al-Nusra e com raízes em movimentos
jihadistas transnacionais, vem evoluindo.
O HTS deixou de ser
uma ramificação secreta do grupo extremista autodenominado Estado Islâmico, por volta de 2011
e 2012, para ser afiliado à Al-Qaeda, relativamente
mais flexível, no ano seguinte — e, em 2016, passou a ser uma facção
independente.
O grupo consolidou
o controle da província de Idlib, no noroeste da Síria, em 2017, administrando
um "governo" civil na área, supostamente sem conexões ou ambições
jihadistas no longo prazo.
Esta evolução
reflete a visão estratégica de al-Sharaa e provavelmente incorpora elementos de
oportunismo e pragmatismo com o objetivo de garantir a aceitação e
sobrevivência do grupo no longo prazo. A estratégia do HTS de sinalizar que não
representa uma ameaça externa já rendeu frutos.
Embora seus antigos
parceiros jihadistas, a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, tenham sido fortemente
atacados na Síria pela coalizão liderada pelos EUA — o que resultou no
assassinato rotineiro de seus líderes, muitas vezes na própria cidade de Idlib
—, al-Sharaa vem operando com relativa liberdade.
Apesar da
recompensa de US$ 10 milhões oferecida pelos EUA pela sua cabeça, ele tem sido
capaz de aparecer publicamente com frequência, participando de eventos e
interagindo com a população, como um estadista.
No entanto, os
críticos jihadistas de al-Sharaa o acusam de ser um político manipulador,
disposto a comprometer princípios ideológicos fundamentais para subir na
própria carreira e garantir ganhos políticos para o HTS, às custas de outros
grupos militantes que operam no país.
·
Como
rebeldes conquistaram corações e mentes
O HTS consolidou
sua autoridade em Idlib por meio de uma estratégia dupla: conquistando corações
e mentes das populações locais ao oferecer alguma forma de estabilidade e, ao
mesmo tempo, usando a força para eliminar ou cooptar rivais e até mesmo antigos
aliados.
O grupo se afastou
da retórica jihadista característica, que luta pela religião e pelo
estabelecimento da lei islâmica (Sharia) na Síria, como
parte de um projeto global interconectado mais amplo. Em vez disso, adotaram
uma narrativa mais "revolucionária" e nacionalista, concentrando-se
no objetivo singular de derrubar o presidente Bashar al-Assad e
"libertar" a Síria.
A frente civil
estabelecida pelo HTS em 2017 para administrar a cidade de Idlib foi chamada de
Governo da Salvação da Síria (SSG, na sigla em inglês).
O objetivo era
demonstrar a capacidade de governança do HTS e reforçar sua legitimidade. É
provável que esta medida também tivesse como objetivo aliviar os temores em
relação a militantes que governam uma província, buscando se distanciar da
imagem brutal associada ao domínio do Estado Islâmico sobre territórios na
Síria e no Iraque.
O SSG operava como
um miniestado — com um primeiro-ministro, ministérios e departamentos locais
gerenciando setores importantes, como as áreas de educação, saúde e
reconstrução, tudo isso enquanto aderiam a um conselho religioso guiado pela
Sharia (lei islâmica).
Também criou
academias militares e de polícia com aspecto profissional, exibindo com
frequência suas cerimônias de formatura e organizando desfiles militares,
geralmente com a presença de al-Sharaa.
O SSG divulgava com
frequência suas conquistas nas áreas de reconstrução e prestação de serviços.
Muitas vezes, comparava estes esforços com as condições terríveis e a corrupção
desenfreada em áreas controladas pelo governo sírio ou por grupos rebeldes
rivais. Al-Sharaa chegou a participar duas vezes da feira anual de livros de
Idlib, fazendo discursos.
Mas o HTS enfrentou
desafios significativos em Idlib, e seu governo estava longe de ser tranquilo.
Antes da ofensiva
rebelde liderada pelo HTS em 27 de novembro deste ano, o grupo foi perseguido
por protestos, especialmente contra a liderança de al-Sharaa. Os manifestantes
acusavam o HTS de suprimir a dissidência por meio da abdução e prisão de
oponentes e críticos.
O grupo também foi
criticado por supostamente conspirar com potências estrangeiras para minar
"a jihad" na Síria. Em 2023, o grupo foi abalado por um escândalo
envolvendo espiões dentro da sua alta liderança, e foi acusado por radicais de
evitar deliberadamente um combate significativo contra as forças do governo
para agradar apoiadores estrangeiros não identificados.
Durante esses
protestos, al-Sharaa foi frequentemente associado a Assad, enquanto o aparato
de segurança do HTS foi comparado à "Shabiha", a notória milícia leal
a Assad.
No entanto, é
importante observar que muitos dos críticos do HTS, do passado e do presente, e
alguns dos que foram presos pelo grupo, eram radicais que incitavam ativamente
a oposição ao projeto do HTS em Idlib. Outros eram moradores locais e ativistas
que criticavam o que descreviam como monopolização do poder e regime
"autoritário" do HTS.
·
Radicais
x liberais: restrições religiosas
Embora alguns
moradores locais tenham feito reclamações sobre restrições religiosas em Idlib,
conforme noticiado pela mídia árabe e por ONGs, estas queixas não eram
generalizadas. Isso pode ser devido à relativa flexibilidade do HTS e ao fato
de que a maioria dos moradores da província são muçulmanos sunitas
conservadores que, em geral, podem aceitar o status quo.
Na verdade, o HTS
tem sido alvo com frequência de duras críticas por parte dos radicais por ser
muito "leniente" e não conseguir impor as regras rígidas da Sharia em
Idlib.
Al-Sharaa
argumentou que a imposição de regras rígidas, como a polícia da moralidade, é
uma ideia ultrapassada que muitas vezes causa mais danos do que benefícios.
Em abril de 2023,
ele declarou: "Não queremos criar uma sociedade hipócrita que reza quando
estamos por perto, e não reza quando não estamos". Ele enfatizou que
queria que as pessoas aderissem aos ensinamentos islâmicos por convicção,
"não por meio do bastão [da força]".
Apesar destes
comentários, o grupo sempre respondeu empregando medidas rigorosas em um claro
esforço para apaziguar os radicais — um padrão que oferece um vislumbre de como
o HTS pode responder a tais pressões no futuro.
Por exemplo, apesar
de ter dissolvido várias estruturas da Hisba (polícia da moralidade) que
operavam sob nomes velados, e apesar das objeções verbais do próprio al-Sharaa,
o SSG estabeleceu uma "polícia da moralidade pública" sob seu
Ministério do Interior no início de 2024.
Essas forças da
moralidade regulamentavam o comércio, asseguravam que as mulheres usassem
roupas religiosas compatíveis e limitavam a mistura de gêneros em espaços
públicos.
E, alguns meses
antes, o Ministério da Educação do SSG havia emitido um decreto determinando
que todas as estudantes e funcionárias mulheres usassem "trajes islâmicos
soltos, em conformidade com a Sharia", o que inclui cobrir o cabelo e
evitar a "moda e as tendências" consideradas "incompatíveis com
nossos ensinamentos religiosos". O decreto também proibia misturar alunos
do sexo masculino e feminino nas escolas primárias e secundárias.
·
Outras
rivalidades rebeldes
Até recentemente, a
característica dominante dos grupos de oposição da Síria —
sejam eles rebeldes ou jihadistas — era a desunião e a fragmentação, muitas
vezes marcadas por lutas internas. As facções armadas competiam por
território,
fontes de receita, autoridade e ideologia.
Durante anos, esta
desunião persistente, entre outros fatores, prejudicou seriamente sua
capacidade de alcançar a vitória sobre Assad.
A recente unidade
rebelde que levou à queda de Assad continua sendo um desenvolvimento
relativamente novo — e ainda pode se revelar frágil. Além disso, ainda há
desafios internos impostos por facções rivais.
Há muito tempo, o
HTS tem uma relação tensa com o outro grande grupo rebelde na Síria, o Exército
Nacional Sírio (SNA, na sigla em inglês), apoiado pela Turquia. O foco do SNA durante
a recente ofensiva foi amplamente alinhado com as prioridades de Ancara — tomar
áreas controladas pelos curdos no norte da Síria para eliminar o que a Turquia
considera uma "ameaça" curda ao longo de suas fronteiras.
Se os dois grupos
vão conseguir chegar a um acordo sobre a divisão dos locais estratégicos
tomados das forças curdas — ou em toda a Síria, de forma mais ampla — permanece
incerto, especialmente porque o HTS continua a fazer pressão pela unidade
completa, claramente sob sua própria liderança.
O Estado Islâmico,
que continua ativo na Síria por meio de agentes e células adormecidas, declarou
sua jihad em andamento no país e denunciou a autoridade rebelde liderada pelo
HTS como "apóstata", supostamente levada ao poder por forças "infiéis".
Com o
enfraquecimento do controle das Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em
inglês) lideradas pelos curdos no nordeste do país, é provável que o Estado
Islâmico esteja de olho nas prisões e nos campos de Hasaka, onde estão sendo
mantidos combatentes ligados ao grupo extremista e seus familiares. Uma
libertação ou fuga em massa destas instalações poderia reforçar
significativamente as fileiras do Estado Islâmico, e sua capacidade de
desestabilizar a Síria.
Desde a eclosão da
guerra civil síria em 2011 — após a violenta repressão de Assad à revolta
pacífica —, o país atraiu uma grande variedade de combatentes estrangeiros,
clérigos e grupos jihadistas transnacionais, o que foi facilitado pela
vulnerabilidade das fronteiras, principalmente com a Turquia.
Para consolidar seu
controle sobre Idlib e, possivelmente, como parte de acordos com potências
estrangeiras para conter a ameaça jihadista no norte da Síria, o HTS aniquilou
algumas facções locais e estrangeiras e cooptou outras, integrando-as às suas
próprias estruturas, renomeando suas unidades para ocultar suas origens
estrangeiras. Isso inclui facções menores da Ásia Central, do Cáucaso
(chechenos) e da minoria uigur da China.
Muitas destas
facções menores, incluindo grupos jihadistas independentes como Ansar al-Islam
e Ansar al-Tawhid, participaram ativamente da última ofensiva, o que destaca
seu possível interesse em moldar o futuro da nova Síria.
Em termos de
mensagens pós-Assad, grupos como a Al-Qaeda, assim como figuras islâmicas mais
moderadas e acadêmicos, lembraram o HTS de sua "obrigação" de
garantir a criação de um sistema islâmico na Síria, caracterizado por uma forte
identidade sunita.
·
'Tomada
de poder'
Quando perguntado
por um correspondente da CNN em 6 de dezembro se o HTS pretende impor um sistema
islâmico, al-Sharaa deu uma resposta evasiva característica. Em vez de dizer
"sim" ou "não" diretamente, ele declarou: "As pessoas
que temem a governança islâmica viram implementações incorretas dela ou não a
entendem adequadamente".
Esta resposta,
cuidadosamente formulada, sugere que o HTS provavelmente planeja implementar um
governo islâmico, mas talvez de forma mais flexível e com nuances.
No entanto, desde
que o HTS derrubou o governo de Assad, as tensões ideológicas começaram a
ressurgir após a euforia inicial e o esforço unificado para atingir um objetivo
comum.
Em 9 de dezembro, o
HTS emitiu um decreto concedendo anistia a ex-militares recrutados, mas os
radicais da Síria denunciaram a medida como excessivamente "leniente"
e inconsistente com a Sharia, chegando ao ponto de incitar a desobediência e
convocar ataques de vingança contra ex-partidários do governo, desafiando
diretamente a ordem do HTS.
O HTS tentou conter
o alvoroço emitindo uma declaração esclarecendo que perseguiria ex-funcionários
e partidários do governo envolvidos em crimes de guerra — uma aparente
tentativa de apaziguar os críticos. Ao mesmo tempo, o HTS procurou reforçar sua
autoridade, prometendo explicitamente punir qualquer pessoa que desafiasse seu
decreto com atos de vingança.
Outro ponto de
discórdia surgiu em 16 de dezembro, quando al-Sharaa anunciou planos para
dissolver e desarmar grupos militantes e milícias no país, concentrando as
armas apenas nas mãos do Estado e dos militares.
Mais uma vez, os
radicais protestaram, exortando as facções a manterem suas armas. Eles
argumentaram que a medida consolidaria o poder do HTS, não deixando outros
grupos armados para desafiar sua autoridade, e abrindo caminho para a tirania.
Outro
descontentamento veio à tona com a resposta silenciosa do HTS aos repetidos ataques
aéreos israelenses na Síria após a queda de Assad. Após dias de silêncio, em
14 de dezembro, al-Sharaa criticou os ataques, mas declarou que seu grupo não
tinha intenção de se envolver em novos conflitos, enfatizando seu foco atual na
reconstrução da Síria. Ele também afirmou que não permitiria que a Síria fosse
usada como plataforma de lançamento para ataques contra Israel.
Alguns consideraram
esta postura como fraca e uma traição aos princípios islâmicos. A frustração
deles foi ampliada pela recente mensagem da Al-Qaeda pedindo que o HTS
priorizasse a luta contra Israel, e cumprisse sua "obrigação" de
defender os palestinos em Gaza.
Estas tensões sugerem
que os adeptos da linha radical — tanto dentro das fileiras do HTS, quanto em
facções externas — podem estar dispostos a pegar em armas contra o grupo se
perceberem que ele está se afastando demais da sua visão de uma nova Síria
religiosa.
Muitos destes
indivíduos e facções estão profundamente interessados no país, e é improvável
que abandonem suas ambições facilmente. Eles veem a Síria, assim como o
Afeganistão sob o comando do Talebã, como um projeto
para um Estado sunita islâmico forte, que poderia exercer influência regional
e, ao mesmo tempo, servir como um refúgio seguro para muçulmanos perseguidos e
fugitivos jihadistas.
Sob pressão tanto
dos liberais quanto dos radicais, al-Sharaa e o HTS estão trilhando uma linha
tênue na tentativa de não antagonizar demais nenhum dos lados, e a necessidade
de flexibilidade parece ser fundamental.
Há uma semana, a
jovem que queria tirar uma foto foi solicitada a cobrir o cabelo.
Nesta semana,
al-Sharaa foi fotografado com dois diplomatas britânicos — um deles era Ann
Snow, a representante especial do Reino Unido para a Síria. O cabelo dela não
estava coberto.
Fonte: BBC News Mundo
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