segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Novo líder da Síria realmente rompeu com seu passado radical islâmico?

Na semana passada, durante uma visita a Damasco, o novo líder da SíriaAhmed al-Sharaa (anteriormente conhecido como Abu Mohammed al-Jolani), foi abordado por uma jovem que pediu para tirar uma foto com ele. Ele pediu gentilmente que ela cobrisse o cabelo antes de tirar a foto.

O incidente rapidamente provocou um debate acalorado nas redes sociais e na mídia árabe.

O que aconteceu pode ter sido pequeno, mas foi revelador porque simbolizou a corda bamba em que se encontram os novos governantes da Síria, o grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), designado como uma organização terrorista pela Organização das Nações Unidas (ONU), pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pelo Reino Unido.

De um lado, está a população síria diversificada e, em alguns casos, mais liberal, junto à comunidade internacional, cuja aceitação é crucial para a sobrevivência e a legitimidade do HTS.

Para eles, o incidente com o cabelo ofereceu um vislumbre preocupante do possível futuro da Síria sob o comando do HTS, evidenciando o temor de que as políticas conservadoras possam acabar impondo o uso do véu para todas as mulheres.

Por outro lado, os radicais islâmicos criticaram al-Sharaa por ter tirado a foto, descrevendo a mulher como uma "mutabarijah" — termo usado para designar uma mulher que se veste de forma indecente ou usa maquiagem —, e insistindo que sua ação violava as regras religiosas.

Estes radicais exercem influência significativa sobre as facções militantes — e podem mobilizar a oposição dentro da própria base islâmica de al-Sharaa.

O HTS enfrenta o desafio de tentar conciliar essas demandas concorrentes — equilibrando as expectativas da comunidade internacional e dos setores liberais da população síria com as demandas da ala radical. Ambos os lados estão analisando atentamente cada declaração e ação do HTS.

Em suas mensagens, ele se concentrou na coexistência dentro da sociedade diversificada da Síria, concedeu anistia a ex-militares recrutados, proibiu atos de vingança contra ex-funcionários e partidários do governo e adotou uma linguagem neutra e, por vezes, conciliatória ao se dirigir a adversários tradicionais, incluindo Israel, Estados Unidos, Irã e Rússia.

Suas declarações foram deliberadamente desprovidas de retórica inflamada ou ameaças, concentrando-se em temas como reconciliação, estabilidade e reconstrução, em um claro esforço para neutralizar a oposição e pressionar pela retirada do HTS e do próprio al-Sharaa das listas internacionais de terroristas.

·        Desconforto significativo

Ainda não está claro se a abordagem flexível de al-Sharaa representa uma mudança ideológica genuína ou uma estratégia calculada com o objetivo de obter aprovação e consolidar o poder antes de implementar potencialmente uma agenda mais rígida e religiosamente conservadora.

Mas suas medidas mais progressistas já estão provocando um desconforto significativo entre os radicais na Síria, que insistem em um governo islâmico enraizado em uma identidade sunita rigorosa.

Embora os árabes sunitas sejam o grupo étnico e religioso dominante na Síria, o país é notavelmente diversificado, com uma série de grupos minoritários, incluindo xiitas alauítas, como o presidente deposto Bashar al-Assad, curdos, cristãos, drusos, turcomanos e ismaelitas, além de outros pequenos grupos.

Mesmo que a liderança do HTS esteja sendo genuína em sua pressão por mudanças, a ampla variedade de facções islâmicas e jihadistas profundamente enraizadas na Síria — muitas das quais desempenharam papéis importantes na recente ofensiva —, provavelmente não vai tolerar qualquer coisa que não seja um sistema islâmico rigoroso.

Caso o HTS se desvie deste caminho, é provável que estas facções estejam preparadas para recorrer à resistência armada para impor sua visão.

Mas este não é um desafio novo para o HTS.

·        Do Estado Islâmico à Al-Qaeda ao HTS

Há uma década, o grupo, anteriormente conhecido como Frente al-Nusra e com raízes em movimentos jihadistas transnacionais, vem evoluindo.

O HTS deixou de ser uma ramificação secreta do grupo extremista autodenominado Estado Islâmico, por volta de 2011 e 2012, para ser afiliado à Al-Qaeda, relativamente mais flexível, no ano seguinte — e, em 2016, passou a ser uma facção independente.

O grupo consolidou o controle da província de Idlib, no noroeste da Síria, em 2017, administrando um "governo" civil na área, supostamente sem conexões ou ambições jihadistas no longo prazo.

Esta evolução reflete a visão estratégica de al-Sharaa e provavelmente incorpora elementos de oportunismo e pragmatismo com o objetivo de garantir a aceitação e sobrevivência do grupo no longo prazo. A estratégia do HTS de sinalizar que não representa uma ameaça externa já rendeu frutos.

Embora seus antigos parceiros jihadistas, a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, tenham sido fortemente atacados na Síria pela coalizão liderada pelos EUA — o que resultou no assassinato rotineiro de seus líderes, muitas vezes na própria cidade de Idlib —, al-Sharaa vem operando com relativa liberdade.

Apesar da recompensa de US$ 10 milhões oferecida pelos EUA pela sua cabeça, ele tem sido capaz de aparecer publicamente com frequência, participando de eventos e interagindo com a população, como um estadista.

No entanto, os críticos jihadistas de al-Sharaa o acusam de ser um político manipulador, disposto a comprometer princípios ideológicos fundamentais para subir na própria carreira e garantir ganhos políticos para o HTS, às custas de outros grupos militantes que operam no país.

·        Como rebeldes conquistaram corações e mentes

O HTS consolidou sua autoridade em Idlib por meio de uma estratégia dupla: conquistando corações e mentes das populações locais ao oferecer alguma forma de estabilidade e, ao mesmo tempo, usando a força para eliminar ou cooptar rivais e até mesmo antigos aliados.

O grupo se afastou da retórica jihadista característica, que luta pela religião e pelo estabelecimento da lei islâmica (Sharia) na Síria, como parte de um projeto global interconectado mais amplo. Em vez disso, adotaram uma narrativa mais "revolucionária" e nacionalista, concentrando-se no objetivo singular de derrubar o presidente Bashar al-Assad e "libertar" a Síria.

A frente civil estabelecida pelo HTS em 2017 para administrar a cidade de Idlib foi chamada de Governo da Salvação da Síria (SSG, na sigla em inglês).

O objetivo era demonstrar a capacidade de governança do HTS e reforçar sua legitimidade. É provável que esta medida também tivesse como objetivo aliviar os temores em relação a militantes que governam uma província, buscando se distanciar da imagem brutal associada ao domínio do Estado Islâmico sobre territórios na Síria e no Iraque.

O SSG operava como um miniestado — com um primeiro-ministro, ministérios e departamentos locais gerenciando setores importantes, como as áreas de educação, saúde e reconstrução, tudo isso enquanto aderiam a um conselho religioso guiado pela Sharia (lei islâmica).

Também criou academias militares e de polícia com aspecto profissional, exibindo com frequência suas cerimônias de formatura e organizando desfiles militares, geralmente com a presença de al-Sharaa.

O SSG divulgava com frequência suas conquistas nas áreas de reconstrução e prestação de serviços. Muitas vezes, comparava estes esforços com as condições terríveis e a corrupção desenfreada em áreas controladas pelo governo sírio ou por grupos rebeldes rivais. Al-Sharaa chegou a participar duas vezes da feira anual de livros de Idlib, fazendo discursos.

Mas o HTS enfrentou desafios significativos em Idlib, e seu governo estava longe de ser tranquilo.

Antes da ofensiva rebelde liderada pelo HTS em 27 de novembro deste ano, o grupo foi perseguido por protestos, especialmente contra a liderança de al-Sharaa. Os manifestantes acusavam o HTS de suprimir a dissidência por meio da abdução e prisão de oponentes e críticos.

O grupo também foi criticado por supostamente conspirar com potências estrangeiras para minar "a jihad" na Síria. Em 2023, o grupo foi abalado por um escândalo envolvendo espiões dentro da sua alta liderança, e foi acusado por radicais de evitar deliberadamente um combate significativo contra as forças do governo para agradar apoiadores estrangeiros não identificados.

Durante esses protestos, al-Sharaa foi frequentemente associado a Assad, enquanto o aparato de segurança do HTS foi comparado à "Shabiha", a notória milícia leal a Assad.

No entanto, é importante observar que muitos dos críticos do HTS, do passado e do presente, e alguns dos que foram presos pelo grupo, eram radicais que incitavam ativamente a oposição ao projeto do HTS em Idlib. Outros eram moradores locais e ativistas que criticavam o que descreviam como monopolização do poder e regime "autoritário" do HTS.

·        Radicais x liberais: restrições religiosas

Embora alguns moradores locais tenham feito reclamações sobre restrições religiosas em Idlib, conforme noticiado pela mídia árabe e por ONGs, estas queixas não eram generalizadas. Isso pode ser devido à relativa flexibilidade do HTS e ao fato de que a maioria dos moradores da província são muçulmanos sunitas conservadores que, em geral, podem aceitar o status quo.

Na verdade, o HTS tem sido alvo com frequência de duras críticas por parte dos radicais por ser muito "leniente" e não conseguir impor as regras rígidas da Sharia em Idlib.

Al-Sharaa argumentou que a imposição de regras rígidas, como a polícia da moralidade, é uma ideia ultrapassada que muitas vezes causa mais danos do que benefícios.

Em abril de 2023, ele declarou: "Não queremos criar uma sociedade hipócrita que reza quando estamos por perto, e não reza quando não estamos". Ele enfatizou que queria que as pessoas aderissem aos ensinamentos islâmicos por convicção, "não por meio do bastão [da força]".

Apesar destes comentários, o grupo sempre respondeu empregando medidas rigorosas em um claro esforço para apaziguar os radicais — um padrão que oferece um vislumbre de como o HTS pode responder a tais pressões no futuro.

Por exemplo, apesar de ter dissolvido várias estruturas da Hisba (polícia da moralidade) que operavam sob nomes velados, e apesar das objeções verbais do próprio al-Sharaa, o SSG estabeleceu uma "polícia da moralidade pública" sob seu Ministério do Interior no início de 2024.

Essas forças da moralidade regulamentavam o comércio, asseguravam que as mulheres usassem roupas religiosas compatíveis e limitavam a mistura de gêneros em espaços públicos.

E, alguns meses antes, o Ministério da Educação do SSG havia emitido um decreto determinando que todas as estudantes e funcionárias mulheres usassem "trajes islâmicos soltos, em conformidade com a Sharia", o que inclui cobrir o cabelo e evitar a "moda e as tendências" consideradas "incompatíveis com nossos ensinamentos religiosos". O decreto também proibia misturar alunos do sexo masculino e feminino nas escolas primárias e secundárias.

·        Outras rivalidades rebeldes

Até recentemente, a característica dominante dos grupos de oposição da Síria — sejam eles rebeldes ou jihadistas — era a desunião e a fragmentação, muitas vezes marcadas por lutas internas. As facções armadas competiam por território, fontes de receita, autoridade e ideologia.

Durante anos, esta desunião persistente, entre outros fatores, prejudicou seriamente sua capacidade de alcançar a vitória sobre Assad.

A recente unidade rebelde que levou à queda de Assad continua sendo um desenvolvimento relativamente novo — e ainda pode se revelar frágil. Além disso, ainda há desafios internos impostos por facções rivais.

Há muito tempo, o HTS tem uma relação tensa com o outro grande grupo rebelde na Síria, o Exército Nacional Sírio (SNA, na sigla em inglês), apoiado pela Turquia. O foco do SNA durante a recente ofensiva foi amplamente alinhado com as prioridades de Ancara — tomar áreas controladas pelos curdos no norte da Síria para eliminar o que a Turquia considera uma "ameaça" curda ao longo de suas fronteiras.

Se os dois grupos vão conseguir chegar a um acordo sobre a divisão dos locais estratégicos tomados das forças curdas — ou em toda a Síria, de forma mais ampla — permanece incerto, especialmente porque o HTS continua a fazer pressão pela unidade completa, claramente sob sua própria liderança.

O Estado Islâmico, que continua ativo na Síria por meio de agentes e células adormecidas, declarou sua jihad em andamento no país e denunciou a autoridade rebelde liderada pelo HTS como "apóstata", supostamente levada ao poder por forças "infiéis".

Com o enfraquecimento do controle das Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em inglês) lideradas pelos curdos no nordeste do país, é provável que o Estado Islâmico esteja de olho nas prisões e nos campos de Hasaka, onde estão sendo mantidos combatentes ligados ao grupo extremista e seus familiares. Uma libertação ou fuga em massa destas instalações poderia reforçar significativamente as fileiras do Estado Islâmico, e sua capacidade de desestabilizar a Síria.

Desde a eclosão da guerra civil síria em 2011 — após a violenta repressão de Assad à revolta pacífica —, o país atraiu uma grande variedade de combatentes estrangeiros, clérigos e grupos jihadistas transnacionais, o que foi facilitado pela vulnerabilidade das fronteiras, principalmente com a Turquia.

Para consolidar seu controle sobre Idlib e, possivelmente, como parte de acordos com potências estrangeiras para conter a ameaça jihadista no norte da Síria, o HTS aniquilou algumas facções locais e estrangeiras e cooptou outras, integrando-as às suas próprias estruturas, renomeando suas unidades para ocultar suas origens estrangeiras. Isso inclui facções menores da Ásia Central, do Cáucaso (chechenos) e da minoria uigur da China.

Muitas destas facções menores, incluindo grupos jihadistas independentes como Ansar al-Islam e Ansar al-Tawhid, participaram ativamente da última ofensiva, o que destaca seu possível interesse em moldar o futuro da nova Síria.

Em termos de mensagens pós-Assad, grupos como a Al-Qaeda, assim como figuras islâmicas mais moderadas e acadêmicos, lembraram o HTS de sua "obrigação" de garantir a criação de um sistema islâmico na Síria, caracterizado por uma forte identidade sunita.

·        'Tomada de poder'

Quando perguntado por um correspondente da CNN em 6 de dezembro se o HTS pretende impor um sistema islâmico, al-Sharaa deu uma resposta evasiva característica. Em vez de dizer "sim" ou "não" diretamente, ele declarou: "As pessoas que temem a governança islâmica viram implementações incorretas dela ou não a entendem adequadamente".

Esta resposta, cuidadosamente formulada, sugere que o HTS provavelmente planeja implementar um governo islâmico, mas talvez de forma mais flexível e com nuances.

No entanto, desde que o HTS derrubou o governo de Assad, as tensões ideológicas começaram a ressurgir após a euforia inicial e o esforço unificado para atingir um objetivo comum.

Em 9 de dezembro, o HTS emitiu um decreto concedendo anistia a ex-militares recrutados, mas os radicais da Síria denunciaram a medida como excessivamente "leniente" e inconsistente com a Sharia, chegando ao ponto de incitar a desobediência e convocar ataques de vingança contra ex-partidários do governo, desafiando diretamente a ordem do HTS.

O HTS tentou conter o alvoroço emitindo uma declaração esclarecendo que perseguiria ex-funcionários e partidários do governo envolvidos em crimes de guerra — uma aparente tentativa de apaziguar os críticos. Ao mesmo tempo, o HTS procurou reforçar sua autoridade, prometendo explicitamente punir qualquer pessoa que desafiasse seu decreto com atos de vingança.

Outro ponto de discórdia surgiu em 16 de dezembro, quando al-Sharaa anunciou planos para dissolver e desarmar grupos militantes e milícias no país, concentrando as armas apenas nas mãos do Estado e dos militares.

Mais uma vez, os radicais protestaram, exortando as facções a manterem suas armas. Eles argumentaram que a medida consolidaria o poder do HTS, não deixando outros grupos armados para desafiar sua autoridade, e abrindo caminho para a tirania.

Outro descontentamento veio à tona com a resposta silenciosa do HTS aos repetidos ataques aéreos israelenses na Síria após a queda de Assad. Após dias de silêncio, em 14 de dezembro, al-Sharaa criticou os ataques, mas declarou que seu grupo não tinha intenção de se envolver em novos conflitos, enfatizando seu foco atual na reconstrução da Síria. Ele também afirmou que não permitiria que a Síria fosse usada como plataforma de lançamento para ataques contra Israel.

Alguns consideraram esta postura como fraca e uma traição aos princípios islâmicos. A frustração deles foi ampliada pela recente mensagem da Al-Qaeda pedindo que o HTS priorizasse a luta contra Israel, e cumprisse sua "obrigação" de defender os palestinos em Gaza.

Estas tensões sugerem que os adeptos da linha radical — tanto dentro das fileiras do HTS, quanto em facções externas — podem estar dispostos a pegar em armas contra o grupo se perceberem que ele está se afastando demais da sua visão de uma nova Síria religiosa.

Muitos destes indivíduos e facções estão profundamente interessados no país, e é improvável que abandonem suas ambições facilmente. Eles veem a Síria, assim como o Afeganistão sob o comando do Talebã, como um projeto para um Estado sunita islâmico forte, que poderia exercer influência regional e, ao mesmo tempo, servir como um refúgio seguro para muçulmanos perseguidos e fugitivos jihadistas.

Sob pressão tanto dos liberais quanto dos radicais, al-Sharaa e o HTS estão trilhando uma linha tênue na tentativa de não antagonizar demais nenhum dos lados, e a necessidade de flexibilidade parece ser fundamental.

Há uma semana, a jovem que queria tirar uma foto foi solicitada a cobrir o cabelo.

Nesta semana, al-Sharaa foi fotografado com dois diplomatas britânicos — um deles era Ann Snow, a representante especial do Reino Unido para a Síria. O cabelo dela não estava coberto.

 

Fonte: BBC News Mundo 

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