Luiz César
Marques Filho: A rebeldia necessária
À medida que se aproxima do fim de seu
primeiro quinquênio, o presente decênio inicia as sociedades contemporâneas nas
experiências traumáticas de um colapso socioambiental. Um colapso se desenha
quando os impactos causados por desastres climáticos em série, perdas
agrícolas, poluição generalizada, pandemias, desigualdades e violência golpeiam
tão frequentemente as sociedades, que estas se tornam progressivamente
incapazes de assegurar um mínimo de segurança física, alimentar, hídrica e
sanitária às suas populações.
Colapso não é um evento com data marcada
para acontecer, é o processo em curso. E dada a aceleração desse processo,
pode-se predizer com segurança uma piora ainda maior nas condições de vida dos
humanos e de inúmeras outras espécies nos seis anos que nos separam de 2030. Os
tratados firmados em 1992 no Rio de Janeiro contra a desestabilização do clima,
a perda da biodiversidade e a desertificação, assim como os 17 Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável, definidos em 2015, chegaram a embalar os sonhos de
muitos.
Hoje sua credibilidade é zero. O medo do
futuro toma de assalto as sociedades e esse sentimento tem sido bem explorado
nas eleições dos últimos dez anos pelos que, nos mais diversos países, negam as
evidências científicas, agitam bodes expiatórios e prometem um retorno
salvífico ao passado.
Ocorre que é impossível voltar ao passado
e, de qualquer modo, também nele não faltavam advertências aos governantes e
governados sobre o que o futuro lhes reservava, mantida a mesma trajetória.
Desde os anos 1960, multiplicam-se os alertas sobre as consequências terríveis
que os agrotóxicos e a destruição das florestas teriam para a vida no planeta.
E desde meados dos anos 1970 forma-se o consenso cientifico segundo o qual o
aquecimento registrado desde os anos 1930 não podia mais ser imputado apenas à variabilidade
natural do sistema climático.
Trabalhos e depoimentos fundamentais entre
1975 e 1988, ano da criação do IPCC, demonstravam esse consenso e projetavam um
aquecimento brutal para o século XXI. Eis o texto do Primeiro Relatório de
Avaliação do IPCC, publicado em 1990: “Baseado nos resultados dos modelos
atuais, predizemos, no Cenário A do IPCC (Business-as-Usual) de
emissões de gases de efeito estufa, uma taxa de aumento da temperatura média
global durante o próximo século de cerca de 0,3 °C por década (com uma faixa de
incerteza de 0,2 °C a 0,5 °C por década). (…) Isso resultará em um provável
aumento na temperatura média global de cerca de 1°C acima do valor atual até
2025 e 3oC antes do final do próximo século”.
Isso significa que, mantida essa taxa, a
temperatura média do planeta aumentará 1oC a cada três decênios!! É
verdade que são necessárias observações de ao menos três decênios para se poder
afirmar com certeza a emergência de uma nova tendência no comportamento do
clima. Mas nada permite esperar doravante uma desaceleração do aquecimento,
haja vista:
(a) o aumento da queima de combustíveis
fósseis;
(b) o aumento dos incêndios florestais, do
desmatamento e da degradação dos solos;
(c) a liberação de carbono pelo
derretimento do permafrost e, portanto,
(d) um crescente desequilíbrio energético
do planeta, hoje já colossal (>1 Watt por m2).
A percepção de que as sociedades humanas
estão confrontadas a um processo de colapso começou a se generalizar no segundo
decênio do século. Em 2012, Denis Meadows, coautor de “Limites do Crescimento”
(1972), declarava à imprensa: “Vejo o colapso já acontecendo”. E em 2013,
um documento intitulado “Consenso Científico sobre a Manutenção dos Sistemas
que Sustentam a Vida Humana no Século XXI”, assinado por 522 cientistas,
afirmava: “A Terra está rapidamente se aproximando de um ponto de
inflexão. Os impactos humanos estão causando níveis alarmantes de danos ao
nosso planeta. A evidência de que os humanos estão degradando os sistemas
ecológicos de suporte da vida é esmagadora. A qualidade de vida humana sofrerá
uma substancial degradação até 2050 se continuarmos na atual trajetória”.
Em 2024, por iniciativa de William Ripple,
um grupo de renomados cientistas reafirma:v “Estamos à beira de um desastre
climático irreversível. Esta é uma emergência global, sem sombra de dúvidas.
Grande parte da estrutura da vida na Terra está em perigo. Estamos entrando em
uma nova fase crítica e imprevisível da crise climática. Durante muitos anos,
cientistas, incluindo um grupo de mais de 15.000, soaram o alarme sobre os
perigos iminentes das mudanças climáticas causadas pelo aumento das emissões de
gases de efeito estufa e pelas mudanças nos ecossistemas”.
O ano de 2023 foi o mais quente dos últimos
120 mil anos e 2024 superou o aquecimento constatado em 2023. Vivemos em 2024 o
primeiro dos últimos 100 mil anos em que a temperatura média superficial do
planeta foi 1,5 oC mais quente do que a do período
pré-industrial (1850-1900). A menos de mudanças sociais radicais, a trajetória
do século XXI prevista pelo IPCC em 1990 está agora traçada. A taxa de
aquecimento planetário desde 1995 é de no mínimo 0,22 C
por década, implicando um aquecimento de 2oC até 2050.
É impossível dizer o grau de dano que esse
aquecimento causará à vida do planeta porque ele nunca ocorreu no Quaternário
(os últimos 2,58 milhões de anos). Duas certezas, contudo, se impõem:
(a) um aquecimento de 2oC é
incompatível com sociedades organizadas e
(b) esse aquecimento é apenas uma etapa em
direção a aquecimentos ainda mais catastróficos na segunda metade do século,
mantida a inércia atual das sociedades.
Muitos outros colapsos socioambientais já
aconteceram no passado. Mas este cujo início estamos presenciando e sofrendo é
absolutamente singular em ao menos três sentidos. Em primeiro lugar, ele é um
colapso multifatorial, envolvendo ao menos onze fatores agindo em sinergia:
(i)
desestabilização do sistema climático, com a ação crescente de
alças de retroalimentação do aquecimento;
(ii)
degelo terrestre, com elevação do nível do mar a taxas recentes
próximas de 5 mm por ano, provocando destruição da infraestrutura urbana,
salinização dos deltas e impactos imensos nos ecossistemas costeiros.
(iii)
Aceleração da sexta extinção em massa de espécies: (a) cerca de
40% das espécies avaliadas de plantas e fungos estão em risco de extinção,
sendo 46% de espécies de plantas com flores. Além disso, “77% das espécies de
plantas não descritas provavelmente estão ameaçadas de extinção, e quanto mais
recentemente uma espécie foi descrita, maior a probabilidade de que esteja
ameaçada”;vi “mais de 500.000 espécies
[terrestres], não têm habitat suficiente para a sobrevivência a longo prazo e
estão condenadas à extinção, muitas delas em poucas décadas, a menos que seus
habitats sejam restaurados”.
(iv)
Desequilíbrios imensos nos ciclos hidrológicos, com secas,
incêndios, chuvas torrenciais, inundações, tempestades tropicais e ciclones
tropicais e subtropicais cada vez mais destrutivos;
(v)
15 milhões de km2 dos solos planetários já
degradados, com expansão da degradação (em direção à desertificação) à taxa de
1 milhão de km2 por ano;
(vi)
intoxicação sistêmica dos organismos pela poluição
químico-industrial, sobretudo pelos agrotóxicos e, em geral, pelo sistema
“alimentar” globalizado;
(vii) uma
maior capacidade das corporações (estatais e privadas) de moldar os Estados
nacionais à sua imagem e semelhança, redundando em bloqueio da governança
global.
(viii) Um
aumento sem precedentes das desigualdades com correlativa regressão das
democracias;
(ix)
proliferação de guerras e conflitos armados dentro e fora das
fronteiras nacionais, em grande parte em decorrência dos oito fatores acima
evocados;
(x)
um aumento calamitoso de migrações forçadas, intra e
intercontinentais, em decorrência dos nove fatores acima elencados,
intensificando mais conflitos e mais xenofobia, e, enfim,
(xi)
a emergência da tecnosfera dos algoritmos pelas Big Techs,
terrivelmente vorazes de energia, com potencial para ameaçar a capacidade
humana de se autogovernar.
Em segundo lugar, o colapso atual se
distingue dos anteriores por sua escala planetária, pois ele está acontecendo
simultaneamente em praticamente todas as latitudes do planeta. O colapso atual
não é nem local, nem seletivo. Ele está golpeando mais imediata e duramente os
países pobres e os sempre mais numerosos pobres dos países ricos, mas ninguém
está a salvo. Absolutamente ninguém. Há, enfim, um terceiro fator igualmente
singular do colapso socioambiental em curso: as sociedades hegemônicas
contemporâneas são as únicas em todo o arco da história humana que há décadas
preveem seu próprio colapso, possuem ciência para conhecer suas causas, têm
tecnologia suficiente para evitá-lo, detêm memória e reflexão histórica para
aprender com os erros passados e mudar de trajetória, mas, ao menos até agora,
preferem aceitá-lo passivamente como se seu destino já estivesse escrito.
Fica, assim, a pergunta inevitável: é ainda
possível reverter esse quadro? É possível a paz entre os homens e com a
natureza? Outro mundo é ainda possível? Muitos de nós, criaturas tardias e
resignadas do capitalismo globalizado, parecem ceder ao desespero ou ao culto
do dinheiro e do individualismo. Mas os rebeldes, os que, não obstante tudo,
reafirmam a visão e a possibilidade de outro mundo, não deram ainda sua última
palavra. Já em 1968, René Dubos (1901-1982) escreveu em seu belo livro, Um animal
tão humano (So human an animal): “Não obstante as repetidas
advertências sobre a paralisia no front intelectual e ético, não obstante a
evidente decadência e deterioração dos valores humanos, não obstante a difusa
devastação da beleza e dos recursos naturais, enquanto entre nós houver
rebeldes, teremos razão de esperar que nossa sociedade possa ser salva”.
Ressoava aqui a vitalidade desse ano
admirável que foi 1968 e é claro que, hoje, as forças vivas da sociedade apenas
resistem à ofensiva do negacionismo, do fascismo e do militarismo. Mas quando
alguém como Mark Rutte, secretário-geral da OTAN, proclama que “é hora de mudar
para uma mentalidade de guerra” (It is time to shift to a
wartime mindset), impõe-se mais que nunca, a todos nós, denunciar a demência
dos que veem a guerra como um caminho para a paz e afirmar a rebeldia civil
contra essa matriz civilizacional belicista, genocida, ecocida e suicida.
Superar essa matriz supõe recusar a
arrogância e a estupidez dos que negam a agonia de nossa biosfera. Supõe também
reconhecer os limites de nossa ciência e aprender com o saber e a resiliência
dos “periféricos” urbanos, dos indígenas, quilombolas e dos trabalhadores de
uma agricultura local e saudável. Cabe-nos, em suma, participar de uma grande
aliança com os que recusam o abismo, para derrotar na arena política o
agronegócio brasileiro e global. Como reafirma a Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB), na reunião do G20 em novembro de 2024: “A Resposta
Somos Nós”.
Sim, os que não perderam a conexão com a
Terra são a resposta à indagação de Rachel Carson, feita há mais de 60 anos: “A
questão é se alguma civilização pode travar uma guerra implacável contra a vida
sem se destruir e sem perder o direito de se chamar civilizada”.
Fonte: A Terra é Redonda
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