Ditaduras cívico-militar – o
que resta delas?
Há sessenta anos, em 1964, dois golpes militares, no Brasil e na
Bolívia, seguidos pelo golpe militar na Argentina (em 1966), puseram a América
do Sul em proa num período que conheceu regimes militares em quase todos seus
países, com violenta repressão contra os movimentos populares, e que concluiria
aproximadamente duas décadas depois, em meados dos anos 1980.
Durante esses anos, os mortos, desaparecidos, prisioneiros políticos,
torturados e exilados, se contaram por dezenas de milhares. No século XIX e na
primeira metade do século XX, as ditaduras militares latino-americanas deram
coesão às pequenas nações para fazê-las ingressar no mercado mundial como
países periféricos, especializados na produção de alimentos e matérias primas,
num circuito cujo centro dinâmico era as nações industrializadas da Europa e,
em medida menor, a jovem potência industrial que começava a emergir na América
do Norte, que garantiu na América Central e no México a sua primeira área de
influência externa (o que, com os anos, seria chamado de “seu quintal”).
As ditaduras cívico-militares sul-americanas dos anos 1960-1980 não se
distinguiram apenas por um grau muito maior de brutalidade do que as
precedentes, mas também pela militarização da economia e por um entrosamento
direto dos EUA nas operações repressivas (com o chamado “Plano Condor”).
Nesses anos, o intervencionismo militar e político dos EUA
multiplicava-se em todo o mundo, do Sudeste asiático (Vietnã, Laos, Camboja),
passando pelo Oriente Médio, em especial no conflito árabe-israelense, até a
América Latina. As ditaduras militares eram um método de dominação mais barato,
para os EUA, de manter a dominação continental, porque evitava a custosa (e
arriscada) tarefa de manter permanentemente tropas nos territórios e países
considerados como aliados na Guerra Fria (embora a ocupação direta fosse sempre
o último recurso, como o demonstrou a lista de intervenções militares e as
bases militares ianques disseminadas pelo mundo).
Depois da Segunda Guerra Mundial, a pressão política e militar sobre
América Latina completou-se com a assinatura (1947) do Tratado Interamericano
de Assistência Recíproca (TIAR), prevendo o direito de intervenção militar em
qualquer país latino-americano em caso de agressão externa. A República Dominicana
foi vítima em 1965 desse tratado, quando foi invadida pelos marines,
travestidos em soldados da OEA, exatamente no meio da onda de golpes da América
do Sul. Os golpes visaram pôr um fim a um período de ascensão das lutas
populares na América Latina com destaque para a Assembleia Popular na Bolívia
de 1970-71, as mobilizações revolucionárias no Cone Sul (Chile, Argentina) nas
décadas de 1960 e 1970, no esteio da revolução cubana de 1959-1961.
O escritor Christopher Hitchens (em The trial of Henry Kissinger)
denunciou a culpabilidade do Secretário de Estado dos EUA em crimes contra a
humanidade, de Camboja até o Chile, descrevendo seu personagem como “um
oportunista, um criminoso de luvas brancas e um traficante de comissões ocultas
que fez pactos com os piores ditadores”. A acusação se sustentava em documentos
dos gabinetes dos EUA, que provaram a colaboração direta entre Washington e as
ditaduras no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai, os países que
formaram parte do Plano Condor.
Para Christopher Hitchens, “a influência dos EUA na América Latina
durante a década de 1970 foi criminosa”. As “façanhas” de Henry Kissinger foram
do Vietnã até Camboja, passando por Chile, Bangladesh, Grécia e Timor Oriental,
mas sempre com o apoio da administração da “democracia americana”, para a qual
ele fez o “trabalho sujo”. A falência financeira do Estado na América Latina
foi o resultado das ditaduras militares, e foi também a “herança” aceita pelos
governos civis que os substituíram a partir de meados da década de 1980.
As democracias latino-americanas se comprometeram com o pagamento da
dívida externa, enormemente incrementada (a maior de todo o Terceiro Mundo) o
que significava transformar América Latina em um pivô da recuperação dos lucros
do capital financeiro internacional, especialmente norte-americano,
comprometidos depois da crise econômica mundial deflagrada em meados da década
de 1970. Os processos hiperinflacionários foram sua consequência, marcando as
economias latino-americanas na segunda metade da década de 1980.
Relatórios do SIPRI (Instituto de Pesquisas para a Paz, de Estocolmo)
informavam que em 1980 os gastos militares no Terceiro Mundo superavam os 80
bilhões de dólares: proporcionalmente, os gastos militares dos países do
Terceiro Mundo já eram maiores que os das superpotências. A queda percentual
dos gastos militares dos EUA e da OTAN durante a década de 1970 não
correspondia a uma tendência “pacifista”: tratou-se de uma racionalização do
gasto, depois da derrota norte-americana no Vietnã, paralela a um
intervencionismo político crescente dos EUA nas áreas chamadas de “interesse
vital”.
Foi nessa década, exatamente, que os EUA superaram à URSS como os
maiores exportadores de armas ao Terceiro Mundo, ao mesmo tempo em que
alimentavam as sangrentas ditaduras militares de América Latina.
O aumento da exploração era o objetivo e foi o resultado dessas
políticas: o fosso que separava os “países subdesenvolvidos” dos países
centrais cresceu. Entre 1980 e 1990, a parte dos EUA nas exportações mundiais
se manteve em torno de 12%; a da Europa cresceu de 37 % para 41%; a do Japão de
7% para quase 9%; enquanto a da África caiu de 5% para 2,5%, e a da América
Latina de 6,5% para menos de 4%, o que levou um autor a concluir num
“desacoplamento (involuntário) do Hemisfério Sul do mercado mundial”.
O trabalho “informal” ocupou o lugar principal como “esponja” da
mão-de-obra: entre 1980 e 1987, ele aumentou de 56% na América Latina. A
polarização social se acentuou: entre 1970 e 1975, a renda anual por habitante
aumentou 180 dólares nos países do Norte, 80 dólares nos países do Leste, e 1
dólar nos países do “Terceiro Mundo”. Como resultado disso, 33% da população
dos países em desenvolvimento (1,3 bilhão) viviam com menos de US$1 por dia.
Deles, 550 milhões no sul da Ásia, 215 milhões na África subsaariana e 150
milhões na América Latina.
Houve um aumento brutal da exploração da força de trabalho, com governos
altamente repressivos, constituição de Estados tecnocrático-militares e
“ideologias da segurança nacional”, permitindo uma recomposição das taxas
mundiais de lucro, deslocando para as periferias as tensões econômicas e
políticas dos centros do sistema imperialista.
No Brasil, o Estado militarizado agiu diretamente como agente do capital
contra o trabalho: em 1964, do total do imposto sobre a renda recolhido na
fonte, 18% se referia a rendimentos do trabalho e 60% a rendimentos do capital.
Em 1970, os mesmos percentuais foram da ordem de 50% e 17%, respectivamente.
Reduziu-se drasticamente o poder de barganha dos sindicatos, submetidos
ao padrão de salários e de reajustes (arrochados) do governo militar, de acordo
com os ditames de sua política econômica; a legislação do trabalho, da qual a
substituição da estabilidade no emprego pelo Fundo de Garantia de Tempo de
Serviço (FGTS) foi o protótipo, para garantir poupança compulsória, beneficiou
a acumulação acelerada de capital, acelerando a rotatividade dos empregados e a
expulsão da força de trabalho dos maiores de 40 anos.
Durante o período do “milagre econômico” (1968-1973), a ala civil do
golpe (em especial, a imprensa golpista) registrou reparos pontuais contra as
arbitrariedades dos atos institucionais, contra a escolha de Costa e Silva como
sucessor de Castelo Branco e contra a ausência de debates antes da promulgação
da nova Constituição de 1967. Com prudência noticiaram-se prisões, cassações e
as primeiras ações de militantes armados. As manifestações estudantis foram
cobertas com destaque.
A Frente Ampla – aliança entre três antigos adversários, Carlos Lacerda,
JK, e Jango – foi acompanhada de perto. A linha dura das Forças Armadas
percebeu que a mesma imprensa responsável pela mobilização da classe média a
favor do golpe convertia-se em porta-voz das primeiras dissidências durante a
ditadura. A Frente Ampla foi extinta pelo ministro da Justiça, Gama e Silva, em
março de 1968, e nove meses depois era promulgado o AI-5, o golpe dentro do
golpe, que viabilizou um “milagre econômico” de pernas curtas.
Com o fim dos acordos de Bretton Woods em agosto de
1971 (declaração de não conversibilidade do dólar pelo governo dos EUA) houve o
aparecimento de um sistema monetário internacional privado, chamado de
euromercado de moedas. Tal sistema passou a disputar com o sistema monetário
multiestatal, composto pelo FMI e Banco Mundial, o oferecimento de crédito a
agentes públicos, especialmente aos países da América Latina regidos por
ditaduras militares. A diplomacia do dólar impôs aos demais países as
consequências de sua política monetária.
Em 1979, os EUA impuseram uma elevação unilateral da taxa de juros
impondo aos demais países uma brutal elevação de suas despesas financeiras, já
que suas dívidas tinham sido contraídas com taxas de juros flutuantes. A
consequência dessa elevação foi a declaração de moratória mexicana e argentina
em 1982, a moratória brasileira em 1987, e a crise de crédito na América Latina
dos anos 1980.
O endividamento externo do Brasil teve sua grande expansão nos anos
1970, durante o regime militar, em sequência do fim do acordo de Bretton Woods,
a crise capitalista depois de 1974, a expansão dos preços do petróleo entre
1973 e 1979, e a elevação da taxa de juros nos EUA em 1979. Na Argentina, entre
o início da última ditadura, em março de 1976, e 2001, a dívida foi
multiplicada por 20, passando de menos de US$ 8 bilhões para quase US$ 160
bilhões. Durante esse mesmo período, a Argentina pagou cerca de US$ 200
bilhões, ou 25 vezes o que devia em março de 1976.
Na renegociação da dívida externa esteve colocada a renegociação de
parte da dívida americana, pois para renegociar a dívida em 30 anos era
necessário um avalista junto aos credores privados. Os EUA deram este aval, mas
para tanto exigiram que o país comprasse títulos do Tesouro americano a taxas
de 6% ao ano. O excedente de capital parasitário rentista dos países centrais
acabou encontrando nos governos militares latino-americanos, ou em agentes
privados com garantias estatais, os grandes tomadores de empréstimos, para
financiar o déficit externo ou alavancar investimentos privados.
No Brasil, dentre os tomadores de empréstimos tivemos a União, os
governos estaduais, empresas estatais e municípios, e os bancos estatais. A
partir de 1965, a proposta econômica da ditadura baseou-se no estímulo à
formação de conglomerados capazes de ampliar os patamares produtivos voltados
ao mercado externo, como também de desempenhar papel no campo durante a
“modernização conservadora” através da expansão dos latifúndios. A produção
agrícola tornou-se espaço privilegiado dos interesses que a transformaram em agronegócio,
uma situação que subsistiu até o presente.
Durante a ditadura, ficaram famosas as explicações dadas por Delfim
Netto, ministro da Fazenda: “É preciso primeiro aumentar o ‘bolo’ para depois
reparti-lo”. Adotou-se uma política salarial de arrocho: o salário mínimo real,
apesar de cair menos do que no período entre 1964 e 1966 (em que houve uma
diminuição de 25%), baixou mais de 15% entre 1967 e 1973.
Para fazer passar esse ataque às condições de vida dos trabalhadores, a
repressão política se abateu sobre a esquerda organizada e a guerrilha, mas
teve um alvo social central: a classe operária, o que foi exemplificado nos
assassinatos de Manoel Fiel Filho, Olavo Hansen, Santo Dias e outros ativistas
operários. Um relatório encarregado pela casa-matriz da maior montadora
automobilística brasileira, a Volkswagen, concluiu na cumplicidade dos
dirigentes da filial brasileira da multinacional com a repressão ditatorial,
afetando, inclusive com a morte, muitos trabalhadores da empresa, segundo o
“Grupo de Trabalhadores da Volks”, que apresentou em 2015 um documento a
respeito ao Ministério Público: uma amostra da violência ditatorial a classe
trabalhadora dentro de um quadro geral em que 308 mil pessoas foram “fichadas”
pelos órgãos de segurança do Estado, segundo revelaram os arquivos do SNI
(Serviço Nacional de Informações).
A crise da ditadura militar brasileira se escancarou em 1974, quando,
economicamente, ficou evidente a crise do “milagre brasileiro” e,
politicamente, a Arena foi derrotada pelo MDB nas eleições parlamentares na
maioria das capitais e nas grandes cidades: o MDB fez quase 73% dos votos, e
elegeu 16 em 22 senadores. Logo depois, de 1975 a 1977, alguns sindicatos e as
oposições sindicais começaram a se movimentar, reivindicando aumento de salário
maior do que aquele concedido pela ditadura.
As greves dos metalúrgicos do ABC paulista em 1978 e dos metalúrgicos da
capital paulista no mesmo ano se difundiram pelo Brasil e em outras categorias.
Elas foram o resultado do trabalho de preparação feito anos antes pelos
operários mais combativos. Os trabalhadores novamente se tornavam protagonistas
da vida política brasileira, agora engajados diretamente na luta contra a
ditadura. A Adusp nasceu no meio dessa movimentação.
Paralelamente, se multiplicavam as mobilizações estudantis em todo o
país, fazendo com que, em 1977, a polícia invadisse a Universidade de Brasília
e a PUC-SP, onde prendeu 1.700 estudantes. Os conflitos no campo se
multiplicavam, com uma participação crescente de organizações católicas, o que
concluiria com a fundação do Movimento dos Sem-Terra (MST). Em inícios da
década de 1980, a ditadura brasileira iniciou sua conta regressiva.
Entre eleições indiretas e, finalmente, diretas; entre anistias
autoconcedidas pelos próprios agentes da repressão, como no caso do Brasil, ou
concedidas depois do julgamento das Juntas Militares (como no caso da
Argentina), governos de direita, centro, esquerda e até neofascistas (Javier
Milei, Jair Bolsonaro, Nayib Bukele), transcorreram os 40 anos posteriores à
redemocratização do nosso continente.
A pior consequência das ditaduras foi, claro, o assassinato de dezenas
de milhares de militantes e lideranças populares. Com eles vivos, nossa
história teria sido diversa nas últimas décadas. Sua morte realizou parte dos
objetivos das ditaduras e de seus sustentadores externos. A estrutura
econômico-financeira de nossos países, herdada do período ditatorial, não foi
alterada nas suas linhas essenciais, em que pesem novas políticas sociais e a
retirada de milhões de patamares de vida inferiores à pobreza absoluta, um
resultado sempre provisório, como o demonstra o crescimento rampante da pobreza
e da fome na outrora orgulhosamente bem-alimentada Argentina.
Para erradicar a pobreza e a fome de modo definitivo, e para proteger o
nosso meio ambiente cada vez mais ameaçado, a experiência das últimas décadas
demonstra que é necessário acabar com aquela estrutura.
O último relatório da Cepal definiu a situação econômica
latino-americana como uma fase de “estagnação neocolonial secular que inibe
qualquer projeto de desenvolvimento independente para melhorar as condições de
vida da população”, sublinhando como o modelo herdado do colonialismo, baseado
na economia extrativa, conduziu o subcontinente a um pântano de baixo crescimento
difícil de reverter, na ausência de mudanças profundas na estrutura produtiva.
O relatório indica como, na América Latina e no Caribe, a taxa média de
crescimento anual para a década 2015-2024 foi de apenas 0,9% e que há uma
necessidade absoluta de “estimular o crescimento para responder aos desafios
ambientais, sociais e laborais que enfrenta atualmente”. Como crescer e
distribuir com orçamentos cada vez mais consumidos pelas dívidas com o grande
capital financeiro? Que tipo de crescimento? Através de que meios, econômicos,
sociais e políticos?
É a pergunta que a história põe para as atuais gerações. O perigo
neofascista está aí para demonstrar quão precárias foram nossas conquistas
democráticas. Nos jovens que gritam “ditadura nunca mais”, sem ter nunca
conhecido alguma ditadura militar, ou seja, nos jovens que aprendem com a
experiência da história, está nossa melhor esperança de futuro.
Fonte: Por Osvaldo Coggiola, em A Terra é
Redonda
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