Os desastres da extrema
direita
O mundo de hoje está cheio de desastres reais. Mas da
prontidão militar às fantasias de deportação em massa, a direita e a extrema
direita prometem a seus apoiadores catástrofes melhores: aquelas em que eles
estarão no comando. Portanto, é necessário perguntar o que é o “nacionalismo de
desastre” e por que ainda não veio a ser fascismo.
Há alguns anos, percebi que a nova extrema direita estava
obcecada por cenários fantásticos em que prevalecia um mal extremo imaginário.
Campos de extermínio da FEMA (Agência Federal de Gerenciamento de
Emergências nos EUA), a “teoria da grande substituição”, a “grande
reinicialização”, cidades de 15 minutos, antenas 5G que funcionam como
faróis de controle mental e microchips instalados nas pessoas por meio de
vacinas. Na Índia, existe uma teoria chamada “romeo jihad”, segundo a
qual os homens muçulmanos seduzem jovens hindus e os convertem ao Islã,
travando assim uma espécie de guerra populacional. O QAnon fantasia que
pedófilos satanistas e comunistas governam o mundo. Ou seja, as novas direitas
são verdadeiramente cativadas e obcecadas por cenários alucinatórios de
desastre extremo. Por que acontece isso?
Não faltam desastres reais: incêndios, inundações,
guerras, recessões e pandemias. No entanto, eles frequentemente negam que esses
desastres existam. Muitos dizem que o COVID-19 foi apenas uma desculpa para o
Quarto Reich, ou que a mudança climática é uma desculpa para um regime liberal
totalitário, uma nova forma de comunismo e assim por diante. Contudo, as
pessoas de direita são realmente cativadas e obcecadas por cenários
alucinatórios de catástrofes extremas. Costumo usar o exemplo dos incêndios
florestais no Oregon. Os incêndios varreram planícies e florestas e queimaram a
800 graus Celsius. Eles representavam uma ameaça real à vida das pessoas. Mas
muitas pessoas se recusaram a sair porque ouviram que, na verdade, eram os
“antifas” que estavam ateando fogo e que tudo fazia parte de uma conspiração
sediciosa para acabar com os cristãos conservadores brancos. Então, em vez de
fugir para salvar suas vidas, eles montaram postos de controle armados e
apontaram suas armas para as pessoas, alegando que estavam procurando os tais
“antifas”. Por que ocorre essa fantasia de um apocalipse em massa? Porque ela
transforma o desastre de um modo que ele se torna realmente muito emocionante.
Na maioria das vezes, quando as pessoas sofrem catástrofes, elas ficam deprimidas
e se afastam um pouco da vida e da esfera pública. Mas a extrema direita
oferece outra saída.
Ela diz que “aqueles demônios em sua cabeça, com os
quais você está lutando, são reais e você pode matá-los”. O problema não é
difícil, abstrato ou sistêmico; não, ele simplesmente vem de pessoas más; logo,
é preciso acabar com essas pessoas. Inventa-se uma fantasia sobre as emoções
dolorosas que as pessoas enfrentam diante das crises econômicas e das mudanças
climáticas e se encontra um modo de dar a elas uma saída que pareça válida e
empoderada. Isso é o que chamo de nacionalismo de desastre. Ainda não é
fascista porque, embora organize os desejos e emoções das pessoas em uma
direção muito reacionária, não se tenta derrubar a democracia parlamentar, não
se busca esmagar e extirpar todos os direitos humanos e civis … ainda não. Essas
direitas também carecem de maturidade organizacional e ideológica. Elas estão
ainda numa fase de acumulação fascista de força. Se voltarmos ao período entre
guerras, vê-se que esse processo de acumulação ocorreu, pois havia pogroms em
massa; ou seja, já havia importantes movimentos de extrema-direita antes do
fascismo. Portanto, parece que está se desenrolando ainda uma fase inicial de
um fascismo incipiente.
No final de The Anatomy of Fascism, publicado
em 2005, Robert Paxton nos adverte que a política israelense pode cair no
fascismo. É necessário pensar que lugar Israel está ocupando nesse fascismo que
ainda não é bem fascismo. Quando comecei a escrever este livro, não
esperava falar muito sobre Israel. Achei que seria um elemento menor em um
mosaico global constituído por estados muito maiores. No final, tive que
escrever um capítulo totalmente novo por causa do genocídio em Gaza. Há muito
tempo está claro que o sionismo pratica ainda um genocídio incipiente porque o
seu desejo final é que os palestinos não existam. E sempre houve elementos do
fascismo hebraico desde a década de 1920. Eu diria que sua dinâmica colonial é
bastante única. Você não vê isso, por exemplo, nos Estados Unidos. É óbvio que
o colonialismo dos colonos é uma realidade histórica com repercussões
permanentes, mas não é uma realidade viva e atual. Você não pode viver em
Israel sem conhecer os palestinos e seu desejo recalcitrante e irritante de
existir.
Mas existem outros aspectos que são bastante
semelhantes aos padrões observados nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Índia,
Brasil etc. É o declínio do Estado, o declínio do sistema político. É o
declínio do sistema do pós-guerra, no caso um arranjo corporativista entre o
trabalho judeu, o capital judeu e o Estado, alcançado por meio da limpeza
étnica de 1948. Esse sistema entrou em colapso na década de 1970 e, como em
todos os lugares, tornou-se neoliberal. Os sindicatos israelenses recusaram.
Contudo, tentaram se adaptar por meio da política da “terceira via”. Ora, a sua
última chance foi provavelmente o processo de Oslo. Hoje quase não existe essa
perspectiva. Essas tendências de crescente pessimismo e desigualdade de classe
já ocorreram, mas a velha utopia nacionalista do mundo do pós-guerra
desapareceu. A classe capitalista se tornou cosmopolita e intimamente integrada
a Washington, não à utopia nacionalista judaica que eles estavam tentando
construir. É por isso que alguns membros do movimento sionista estão tentando
reconstituir esta pátria judaica, uma salvaguarda judaica, se se quiser. A
direita diz: “Não, já superamos isso. Estamos em uma situação em que temos que
resolver a questão com os palestinos de uma vez por todas.” Para eles, isso
significa expulsar os palestinos e colonizar decisivamente cada pedaço de terra
que eles acreditam pertencer ao Grande Israel.
Isso leva ao fascismo? Não, ainda não enquanto houver
sistemas democráticos constitucionais liberais. É uma democracia de exclusão. E
isso não é tão incomum. Os Estados Unidos até a década de 1970 eram uma
democracia de exclusão. Ora, eu diria até que ainda é hoje, mas em um grau
diferente. Israel tem uma cultura cada vez mais racista, autoritária e genocida
e está mais perto de um golpe fascista do que em qualquer outro lugar. Acho que
o genocídio e o processo de radicalização das bases vão levar a um golpe kahanista ou
de extrema direita. Se se quiser ver onde o fascismo está bastante avançado, eu
diria que isso se vê em Israel, mas também na Índia. Você tem que ouvir os
alarmes: “Estamos à beira do genocídio”, porque o BJP [Partido Bharatiya
Janata], um movimento autoritário de direita ligado ao fascismo histórico,
colonizou o Estado e suprimiu os direitos civis. É um fenômeno global no qual
Israel desempenha um papel único e distinto. Israel está muito perto de um
regime fascista milenar. A médio prazo, essa é uma possibilidade real e
perigosa, dado que se trata de um estado nuclear.
Parece tolice ignorar as fantasias catastróficas da
direita. Eles geralmente estão sintonizados com realidades que o otimismo
liberal prefere não reconhecer. Isso é bem real. Às vezes, eles colocam o dedo
em elementos importantes da realidade. As teorias da conspiração sobre cidades
de 15 minutos, por exemplo, são incompreensíveis e delirantes porque as pessoas
pensam que elas anunciam algum tipo de ditadura comunista contra o automóvel.
Mas, em sua essência, é uma ameaça real ao uso do automóvel, ao estilo de vida
suburbano e às vantagens relativas de possuir um carro. Se você construir
cidades em torno do conforto e ciclovias em todos os lugares, eliminando a
poluição o máximo possível e eliminando vagas de estacionamento, isso se torna
um problema para aqueles que gostam de dirigir para todos os lugares. Será
especialmente problemático se se começa a colocar barreiras de tráfego para
impedir que se use certas estradas. Se você for direta e pessoalmente afetado,
pode ter a sensação de que a vida mudará radicalmente nas próximas décadas. E
eles não estão totalmente errados: a mudança climática exigirá grandes mudanças
estruturais. Os liberais querem negar a gravidade do que está por vir e do que
as pessoas já estão experimentando. Acho que a resposta da esquerda deveria ser
dizer: “Sim, você está certo, vamos transformar tudo, mas será muito melhor
para você. Veja como.”
O exemplo que sempre vem à mente é o de Barack Obama,
em 2016. Ele zombou de Donald Trump por ser um pessimista em sua campanha,
dizendo com ironia: “No dia seguinte, as pessoas abrirão as janelas, os
pássaros cantarão, o sol brilhará”. O páthos que ele estava
tentando invocar era que as pessoas estavam realmente muito felizes, que tudo
estava indo bem. Então, na eleição, ele teve sua resposta: Donald Trump venceu.
Para muitas pessoas, as coisas não estão indo bem. Donald Trump fez seu
discurso de posse, escrito por Steve Bannon, falando sobre “carnificina
americana”, que eu acho que é uma espécie de poesia reacionária, porque
carnificina não é uma descrição imprecisa da destruição da América industrial. Eles
colocaram o dedo em um problema real, mas sua resposta foi culpar a China, o
Leste Asiático. A maioria dos empregos perdidos foi resultado de uma guerra de
classes vinda de cima: enxugamento, destruição sindical. Houve um elemento de
terceirização, mas a culpa é das empresas, dos empregadores, não dos
trabalhadores do Leste Asiático. Então, pode-se ver que eles são capazes de
identificar certas formas de desastre. O que eles não incapazes é de
integrá-los numa análise global coerente e sólida. Tudo o que eles propõem, na
realidade, são sintomas projetados para não resolver nada, mas que permitem que
você massacre muçulmanos na Índia, palestinos na Cisjordânia e Gaza, mate
apoiadores do Partido dos Trabalhadores no Brasil, atire, esfaqueie ou use
carros para atropelar manifestantes do Black Lives Matter nos
EUA, ou organizar tumultos racistas na Grã-Bretanha, onde tentaram queimar
requerentes de asilo em seus abrigos. É isso que a direita propõe como
alternativa ao desastre; ou seja, ela propõe melhores desastres, desastres em
que você sente que está no controle.
É necessário falar sobre os assassinatos de muçulmanos
na Índia. É necessário perguntar em que consistiu o pogrom de Gujarat e porque
ele deve ser visto como o ponto de partida da atual onda de nacionalismo de
desastre. Parece que há um canário na mina de carvão. Obviamente, está longe de
ser o único grande pogrom na Índia. Existe uma espécie de máquina de pogrom:
Paul Brass fala dela com elegância. O que aconteceu. Eclodiu um incêndio em um
trem no qual vários peregrinos hindus morreram. Como eles eram membros do
partido de extrema-direita VHP, o movimento Hindutva [do
nacionalista hindu] especulou que os muçulmanos haviam ateado fogo no trem com
coquetéis molotov. Havia poucas evidências disso: investigações imparciais
concluíram que o incêndio foi um acidente. Mas eles decidiram que o genocídio
havia ocorrido contra os hindus e, nos dias seguintes, incitaram a população a
pegar em armas e perseguir, matar e torturar muçulmanos. Foi o que fizeram,
organizados diretamente por membros do BJP, incitados por líderes do BJP, com a
cumplicidade e participação da polícia e empresários que pagaram indivíduos
para participar da operação. Foi uma explosão coletiva de violência pública
coordenada e permissiva com algum controle das autoridades. O resultado foi que
a votação do BJP aumentou 5%, embora se esperasse que perdesse o governo do
estado depois de ter administrado mal um desastre real: um terremoto ocorrido
no ano anterior.
Então se vê o padrão: há uma catástrofe real que afeta
as pessoas, o governo administra terrivelmente, então eles inventam uma versão
falsa da catástrofe e fazem com que as pessoas matem alguém e é muito
emocionante. As coisas que fizeram foram horríveis. Eles mataram bebês na
frente de suas mães, cravaram estacas entre as pernas das mulheres, cortaram as
pessoas ao meio com espadas.
Obviamente, isso já acontecia há muito tempo, então,
nos meses que se seguiram, Narendra Modi organizou comícios do orgulho hindu e
disse às pessoas que, se pudéssemos restaurar o orgulho do povo hindu, todos
os Alis, Malis e Jamalis não seriam
capazes de nos prejudicar – ele estava obviamente se referindo à população
muçulmana que acabara de sofrer um pogrom. O fato de que esses comentários não
desacreditaram o BJP, mas eletrificaram sua base e fizeram de Modi um símbolo
sexual pelaprimeira vez, diz muito sobre esse tipo de política. Já vimos isso
repetidamente. Sem todas as manifestações armadas, comícios antibloqueio e
violência contra os manifestantes do Black Lives Maters (BLM),
não teríamos visto a insurgência fracassada de 6 de janeiro. Algo semelhante se
viu no Brasil: Jair Bolsonaro ficou alguns pontos atrás, quase venceu em 2022 e
obteve mais votos do que em 2018. Como ele fez isso? Um verão caótico de
violência em que ele declarou que os ativistas de esquerda devem ser
metralhados, e seus apoiadores brandiram suas armas na cara dos apoiadores do
Partido dos Trabalhadores, agrediram-nos ou mataram-nos. Não estou dizendo que
o pogrom de Gujarat precipitou esses outros eventos, mas foi um dos primeiros
exemplos do que estava acontecendo, e assim que Modi foi eleito em 2014.
Ademais, ele mostrou que o capitalismo liberal toleraria esse excesso. A maior
parte da violência genocida desde a década de 1990 tem sido contra muçulmanos
de várias etnias e, embora haja muito racismo contra diferentes grupos na
política ocidental, os ataques mais veementes parecem ser reservados aos
muçulmanos. Tommy Robinson, por exemplo, se gaba de que os negros são
bem-vindos em seus comícios. Que papel desempenha a figura abstrata do
“muçulmano” no catastrófico discurso nacionalista? Por que ele substituiu o
“judeu” como a figura de ódio da extrema direita?
Não acho que isso vai acontecer no Brasil ou nas
Filipinas. Mas está em toda uma constelação de estados, da Índia a Israel,
passando pelos Estados Unidos e pela maioria dos países da Europa Ocidental e
até da Europa Oriental. Em termos semióticos, não é exatamente o mesmo que a
figura do “judeu”, porque, por enquanto, o discurso da extrema direita não dá a
impressão de que os muçulmanos, além de serem uma espécie de massa miserável da
Terra, controlam tudo. Houve tentativas de desenvolver uma espécie de teoria da
conspiração, como a de Bat Ye’Or sobre a Eurábia, por exemplo. Mas na maioria
das vezes não se trata de uma crença de que os muçulmanos estão secretamente no
comando e administram o sistema financeiro, mas sim que eles são uma massa
subversiva, violenta, anormal e inferior que precisa ser subjugada com
violência e fronteiras para mantê-la sob controle. Eu diria que isso tem suas
origens na virada da década de 1980 para o absolutismo étnico, a coalizão entre
os apoiadores do Likud em Israel e os fundamentalistas cristãos nos Estados
Unidos, em direção a um tipo de política de identidade absolutista na qual
todos têm de caber em uma determinada caixa: há uma espécie de colapso da
solidariedade antirracista unificadora que vimos na era da Guerra Fria em
Grã-Bretanha, assumindo a forma de negritude política. Tudo isso desmoronou, E
então veio o caso Rushdie e os muçulmanos foram categorizados como um problema
específico.
É importante que isso esteja enraizado na experiência
cotidiana da vida capitalista. Na Grã-Bretanha, por exemplo, as pessoas que
eram membros do mesmo sindicato nas cidades do norte ou nas docas, uma vez que
essas indústrias foram fechadas e os sindicatos foram desmantelados, muitas
vezes se mudaram para setores marginais da economia e descobriram que suas
moradias ainda eram segregadas, que o sistema escolar era efetivamente
segregado, que os municípios praticavam políticas segregacionistas e que a
polícia era segregacionista nesse sentido, ou seja, muito racista. Se
acrescentarmos austeridade a isso, chegamos à miséria pública, ninguém tem
nada, e os que estão na base são sempre culpados: “Eles têm tudo, eu não tenho
nada”. É quando se começa a ver tumultos nas cidades do Norte e a guerra ao
terror parece catalisar tudo isso. Portanto, este é um fenômeno global no qual
a civilização liberal se definiu contra os “maus muçulmanos”. No início, havia
essa ideia de que o problema não eram todos os muçulmanos, mas apenas o que foi
chamado de fascismo islâmico: George W. Bush enfatizou isso. Mas a forma como
essa ideia foi entendida pela população e a forma como foi politizada se
estendeu a todos os muçulmanos. Portanto, o muçulmano é uma figura central, mas
acho que temos que vê-lo como parte de uma cadeia de equivalências com o
“predador transexual do banheiro”, o “marxista cultural” e o imigrante.
Nas Filipinas, a principal categoria são os viciados em
drogas. Pode ter nuances diferentes, mas concordo com a tese que diz:
globalmente e, em particular no Ocidente, “o muçulmano” resume em si todos os
problemas. Um dos capítulos mais interessantes do meu livro trata do papel do
gênero no discurso nacionalista sobre desastres. Há também um capítulo sobre o
genocídio em Gaza, embora coloque um pouco menos de ênfase na psicanálise do
que em outros capítulos. Questões de exploração e agressão sexual foram
recorrentes durante todo o genocídio em Gaza, desde soldados israelenses
postando vídeos no TikTok vestindo roupas íntimas de mulheres palestinas até
motins em defesa de soldados acusados de estuprar detidos na prisão. Qual
é o papel do sexo no imaginário nacionalista do desastre?
Eu argumentaria que, em termos da economia libidinal
dessa nova extrema direita, sua premissa subjacente parece ser que alguém é
sempre estuprado e que o problema é que os “comunistas” (incluindo Kamala
Harris etc.) querem que as pessoas erradas sejam estupradas. O movimento
“incel” dos celibatários involuntários, os ativistas dos direitos dos homens
etc. tentam muitas vezes justificar o estupro. Há uma espécie de contradição
nessa economia libidinal entre proibições severas renovadas – não mais
casamento gay, não mais transexuais, mulheres de volta à cozinha, “fetichismo”
de esposa tradicional – por um lado, e por outro, total liberdade predatória
para os homens e, portanto, permissividade seletiva. Não é surpreendente ver
isso em zonas de guerra. As guerras geralmente resultam em inúmeras violações:
a vitimização do inimigo inclui a brutalização das mulheres.
Recentemente, pesquisei os autores de crimes, em
particular o genocídio em Gaza, e uma das coisas que surge é a ideia da mulher
perigosa. Em termos modernos, se trata da guerreira da justiça social, uma
ruiva que grita alto, etc. Contudo, para o movimento Freikorps alemão
da década de 1920, a mulher perigosa era uma comunista com uma arma na saia.
Essa mulher era alguém que deveria ser morta por alguém capaz de se aproximar
dela. Essa proximidade perigosa é emocionante porque você se aproxima do
perigo, depois o supera e pega o que quer, da pior maneira possível. Imagino
que grande parte da política masculina de direita de hoje seja uma tentativa de
superar uma sensação de ineficiência, impotência, paralisia e assim por diante.
E, francamente, quando eles falam sobre estupro, eles insinuam que há muito
estupradores. Mas as evidências sugerem que os homens jovens, os homens
jovens em geral, não estão tão interessados em sexo quanto as gerações
anteriores. Eles não estão tão interessados em sexo, eles não estão tão
interessados em romance, não há nada muito sexy na vida contemporânea.
Uma das coisas aqui é que eles culpam as mulheres pelo
fato de não terem desejo e dizem: “somos celibatários involuntários”. Eles
dizem que se as mulheres flertassem com eles, estariam dispostos a fazer sexo o
tempo todo. Eu duvido. Eles estão tão confusos, chateados e fodidos quanto
todos os outros, se não mais. Mas acho que eles tentam inflar seu desejo
transformando-o em uma demonstração de poder, eficiência, força. Há muito
disso. Eu acho que haverá coisas específicas em Gaza, porque toda a coisa de
soldados israelenses se filmando com a lingerie roubada de mulheres palestinas
é obviamente paródica, é genocida, mas há algo nisso que envolve uma
identificação inconsciente com a vítima. Meu livro carecia de uma análise do
papel dos centristas liberais nessa situação. Estou pensando em particular
em Kamala Harris, que fez campanha com os Cheneys antes de perder para Donald
Trump. Está lá em segundo plano, mas eu me perguntei se era possível explicar
como os liberais se encaixam nesse quadro.
Existem dois ângulos para esta questão. O primeiro
aponta para os centristas liberais como indivíduos e como grupo e sua relação
simbiótica com a extrema direita. A segunda é aquela em que me concentro no
livro, sobre os fracassos da civilização liberal. Sua barbárie inerente se
manifesta no imperialismo e na guerra, no racismo, no sadismo fronteiriço, no
trabalho e na exploração, mas também nas hierarquias de classe e na miséria que
eles geram. A questão, então, é como chegamos a situações concretas em que
pessoas como Obama, Hillary Clinton e agora Kamala Harris e Joe Biden
contribuem para a ascensão ao poder dessa nova formação extremista. Eu diria
que o filósofo Tad DeLay coloca uma questão interessante em seu livro
recente, O futuro da negação, sobre a política climática: “O que
o liberal quer?” É uma boa pergunta, porque os liberais constantemente
proclamam sua afinidade com valores igualitários e libertários. Afirmam apoiar
a luta contra as alterações climáticas, mas também se opõem a quaisquer meios
eficazes para alcançá-las. Acredito cada vez mais que, em última análise, os
liberais não querem o liberalismo. Obviamente, é preciso fazer distinções,
porque há liberais que estão realmente comprometidos filosófica e politicamente
com os valores liberais, que lutarão por eles e que irão para a esquerda se
necessário. Mas também existem centristas ferrenhos cuja política é organizada
principalmente em torno de uma fobia da esquerda. Estou falando aqui de um
anticomunismo alucinatório, principalmente relacionado à direita, mas os
liberais têm uma visão igualmente irrealista da esquerda e de sua suposta
ameaça.
Seria bom se a esquerda fosse mais forte e estivéssemos
à beira de uma revolução comunista, mas não estamos. Quando Bernie Sanders
concorreu ao cargo presidente dos Estados Unidos, lembro-me do pânico entre os
liberais americanos. Um apresentador temia que, uma vez que os socialistas
tomassem o poder, eles encurralariam as pessoas e atirariam nelas. Pense também
em como o centro duro (centro-esquerda e centro-direita) fomentou teorias da
conspiração, como na Grã-Bretanha, a Operação Cavalo de Tróia: a ideia de que
os muçulmanos estavam tomando conta das escolas de Birmingham. Essa teoria da
conspiração não veio da extrema direita, mas dos governos liberais.
A relação é a seguinte: a extrema direita pega os
predicados já estabelecidos pelo centro liberal, radicaliza-os e torna-os mais
coerentes internamente. Há alguns anos, no início do período em que o Novo
Trabalhismo estava no poder, começou a reprimir os requerentes de asilo. Eles
regularmente colocam no noticiário fotos de um ministro em Dover procurando
requerentes de asilo em vans de pessoas e coisas do gênero. Enquanto isso, o
Partido Nacional Britânico (BNP) estava crescendo e dizendo em entrevistas:
“Gostamos do que eles estão fazendo, eles estão nos legitimando”. Eles pegaram
as preocupações que estavam no fundo das preocupações do povo em 1997 e as
trouxeram para o topo, o que deu legitimidade ao BNP. Por suas próprias razões,
eles tendem a amplificar as correntes reacionárias que já estavam circulando.
Então, quando a extrema direita se desenvolve nessa base, eles tendem a dizer
“essa é uma boa razão para irmos mais longe nessa direção, porque mostra que,
se não resolvermos esse problema, a extrema direita se desenvolverá ainda
mais”. É como uma máquina de ressonância, ricocheteando uma na outra. Um dos
problemas com a escolha entre um democrata centrista e um republicano de
extrema-direita é que ela se baseia na exclusão da esquerda. Estruturalmente,
ambos se alimentam dessa exclusão, mas no longo prazo é a extrema direita que
se beneficia. No final do livro, digo que apelar para a racionalidade e o
interesse próprio das pessoas nem sempre funciona, e que a política do “pão com
manteiga”, embora necessária, pode não ser suficiente: para mobilizar as
pessoas politicamente, é preciso despertar suas paixões. Como devem ser as
“rosas” que devem ser oferecidas junto com o “pão”?
Eu deveria ter usado essa metáfora no livro: “pão e
rosas” é uma boa maneira de dizer isso. Acredito que existe uma aspiração
legítima e inata à transcendência que é imanente à vida como tal. Em outras
palavras, estar vivo é aspirar a uma situação sempre diferente. A vida é um
processo teleológico no qual nos esforçamos para alcançar um certo nível de
desenvolvimento. Mas também, a aspiração ao conhecimento, a aspiração ao outro
– este é o instinto social, a aspiração, na linguagem de Platão, ao bem, ao
verdadeiro e ao belo. Acredito que esse instinto está presente em todos, em
todos os seres vivos. Eu diria que podemos ver isso quando acontecem rupturas
de esquerda, como a campanha de Bernie Sanders. É muito bom falar sobre pão com
manteiga. Há coisas boas de que as pessoas precisam, como assistência médica e
um salário-mínimo mais alto. Trata-se de lutar contra a exploração do
empregador, mas também além disso é preciso enfrentar o sadismo com os que
estão além das fronteiras. É preciso dizer às pessoas que elas precisam e
intimamente querem viver em uma sociedade decente. As pessoas com instintos
decentes foram atraídas para esse tipo de campanha, foram, assim, eletrificadas
por ela; mas, afinal, o que ela dizia? Não dizia “vote em mim e você terá mais
bens materiais”; ao contrário, dizia “vote em mim e você terá uma revolução
política”. E não apenas vote em mim, junte-se a um movimento político comigo,
tome o poder, derrube todos os elementos decrépitos e sádicos de nossa
sociedade e se aprofunde na democracia.
Bernie Sanders falou de uma jornada improvável juntos
para refazer e transformar o país. As pessoas realmente querem trabalhar juntas
para alcançar algo maior. Uma das patologias da vida moderna é que as pessoas
se sentem frustradas, paralisadas, ineficazes. O seu modo característico de
expressão era “se ficarmos juntos” e, quando ele disse isso, a multidão
explodiu. Este é apenas um exemplo de ruptura da esquerda. Jean-Luc Mélenchon
tem seu próprio estilo, Jeremy Corbyn tem um estilo muito diferente, mas a
ideia básica é sempre a mesma: o ethos social, o esforço
comum. Karl Marx e Friedrich Engels falaram sobre essa dialética na qual você
se junta a um sindicato no início para obter salários mais altos, uma jornada
de trabalho mais curta, coisas de que você precisa fundamentalmente, mas depois
desenvolve outras necessidades mais ricas. Muitas vezes, os trabalhadores
entram em greve para defender seu sindicato, mesmo que percam dias de pagamento
e suas condições materiais objetivas se deteriorem um pouco. Eles precisam um
do outro, eles precisam de sua união. Ora, isso pode ir mais longe; pode ser
politizado muito mais profundamente. A necessidade mais radical é a necessidade
de universalidade, no sentido marxista do termo. Quando as pessoas saem às ruas
para combater as mudanças climáticas, elas pensam em um mundo unido em uma
totalidade, não necessariamente num mundo onde tenham todos os gadgets e
produtos de que precisam, mas um mundo onde todos e todas as espécies tenham a
oportunidade de prosperar e florescer. Eu diria que isso é normal.
A questão é como esse comunismo instintivo básico, nas
palavras de David Graeber (1961-2020), é frustrado, esmagado e sequestrado. Como
essa necessidade impecavelmente respeitável é negligenciada e patologizada, de
modo que as pessoas nem se atrevem a pensar sobre isso, muito menos
expressá-lo? Cria-se esse tipo de situação para que as pessoas adotem uma
espécie de postura cínica.
Acredito que as rosas de que precisamos são aquelas que
vêm de nossa unidade: mencionei os termos platônicos “o bom, o verdadeiro e o
belo”. Vamos pensar na cultura e no trabalho que podemos fazer juntos, vamos
pensar na busca da verdade na ciência e no trabalho que fazemos juntos. Nossos
esforços para elevar o padrão moral, tentando acabar com a violência, o estupro
e o racismo, são capacidades intrínsecas que todos nós possuímos. É óbvio que
não estamos à altura da tarefa, que podemos viver vidas privadas em que somos
egoístas, odiosos e ressentidos. Mas isso não é tudo. Se fosse esse o caso,
poderíamos muito bem parar com o esforço transformador e renunciar.
Fonte: Por Richard
Seymour, no portal Sin Pemiso - tradução: de Eleutério F. S. Prado, em A
Terra é Redonda
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