Por que alguns
cristãos não comemoram o Natal?
Se
é praticamente consenso que Jesus existiu
enquanto figura histórica, da mesma forma se entende que a data de seu nascimento
é incerta.
Não
há nenhum documento ou texto antigo no qual conste o aniversário dele e o 25 de
dezembro é, mais do que invenção, a ressignificação de antigas festividades.
Este
é um dos argumentos que fazem com que alguns cristãos não celebrem
o Natal, ao contrário de católicos e da maioria dos protestantes que fazem da
data um importante dia religioso.
"Os
Adventistas do Sétimo Dia não têm uma posição clara sobre a celebração. Algumas
igrejas celebram, outras não. Entre os [evangélicos] pentecostais também varia.
Há comunidades que celebram o Natal e há as que não o fazem. As igrejas mais
modernizadas costumam celebrá-lo", comenta à BBC News Brasil o sociólogo
Edin Sued Abumanssur, professor na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP).
"Em
geral, os que não celebram dizem que se trata de uma festa pagã. A origem, de
fato, é pagã, mas o cristianismo incorporou muitas festas pagãs em seu processo
de expansão", explica ele. "Outros dizem que a data do nascimento de
Jesus é incerta e não veem motivo para a festa no dia 25 de dezembro."
Abumanssur
acrescenta ainda que "há os que não veem sentido em celebrar o Natal
porque o nascimento de Jesus não é relevante na narrativa salvacionista".
"O que importa é a morte e a ressurreição de Jesus", observa.
De
fato, a data ou mesmo o período em que Jesus teria nascido não está, direta nem
indiretamente, em nenhum dos dois evangelhos canônicos que narram o episódio,
os textos atribuídos a Lucas e a Mateus.
As
Testemunhas de Jeová tratam sobre isso em documento oficial da igreja. No
texto, justificam a não observância do Natal com base em passagens bíblicas.
"Jesus nos mandou comemorar sua morte, não seu nascimento",
argumentam os religiosos, citando o trecho da chamada última ceia, em que ele
teria pedido aos seus seguidores que refizessem o ritual "em memória de
mim".
Os
seguidores dessa denominação também se baseiam em carta de Paulo aos Coríntios
para argumentar que esse tipo de festividade "se origina de costumes e
rituais pagãos" e, por isso "acreditamos que o Natal não é aprovado
por Deus".
Autor
de estudo acadêmico sobre as Testemunhas de Jeová, o filósofo Cleberson Dias,
doutor em ciências da religião pela PUC-SP, esclarece à BBC News Brasil que
esta origem não-cristã faz com que eles "considerem isso como algo
errado", a despeito da ressignificação histórica que foi feita.
"Não
existem provas de que Jesus tenha nascido em 25 de dezembro; a data de seu
nascimento não foi registrada na Bíblia", argumentam ainda os seguidores
das Testemunhas de Jeová.
"Os
apóstolos e os primeiros discípulos de Jesus não comemoravam o Natal. A
Enciclopédia Barsa diz que 'a festa do Natal foi instituída oficialmente pelo
bispo romano Libério no ano 354', mais de 200 anos depois que o último apóstolo
morreu."
Em
artigo publicado em 2013, o pastor adventista Carlos Hein lembra que a
religiosa Ellen G. White (1827-1915), cofundadora da Igreja Adventista do
Sétimo Dia, deixou em seus escritos 26 menções ao Natal — alguns deles são
vistos como rejeição categórica à celebração da data, ponto que divide até hoje
os membros da denominação.
White
escreveu que Deus teria ocultado "o dia preciso do nascimento de
Cristo" para que o dia "não recebesse a honra que devia ser dada a
Cristo como redentor do mundo".
Ela
também fez uma crítica à camada capitalista que envolve a data. "Que não
haja muitas pressões ambiciosas para adquirir presentes no Natal e Ano Novo.
Pequenos presentes para as crianças não são importunos, mas o povo do Senhor
não deve despender seu dinheiro na aquisição de presentes caros", pontuou.
No
seu artigo, Hein avalia que "podemos perceber uma orientação clara quanto
à possibilidade da celebração com certas condições". Ele traz trechos de
escritos de White lembrando que como a data se tornou tradicional no mundo
seria "difícil passar" por este período "sem lhe dar alguma
atenção" e, portanto, a oportunidade "pode ser utilizada para um bom
propósito".
Em
outras palavras, ela sugere que a alegria e o desejo de dar presentes sejam
direcionados em boas ações.
Algumas
igrejas evangélicas mais fundamentalistas também recomendam que seus fiéis não
celebrem o Natal, não enfeitem suas casas e não troquem presentes na data — em
geral, os argumentos são de que a comemoração se tornou uma festa capitalista
que deixa a religiosidade em segundo plano.
"Há
denominações que vão dizer que o Natal foi uma coisa inventada posteriormente e
que, por isso, rechaçam a data", diz à BBC News Brasil o teólogo e
historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana
Mackenzie. "Em geral são grupos pequenos [dentro do cristianismo]. De uma
maneira geral, os cristãos como um todo comemoram o Natal."
Essa
é uma controvérsia que já apareceu em outros momentos da história. Em 1644, por
exemplo, os puritanos ingleses decidiram abolir o Natal e o feriado ficou
proibido na Inglaterra até 1660 — a lei só foi revertida quando Charles 2º
(1630-1685) assumiu o trono.
Também
há cristãos que consideram outras datas. Em seu livro The History of
Christmas (A História do Natal, em tradução livre), o autor católico
Wyatt North lembra que as datas divergem entre igrejas de tradição ocidental
oriental.
"Embora
o dia 25 de dezembro tenha se tornado a data aceita em Roma para a natividade
de Jesus, a igreja em Jerusalém, até o século 6º, e no Oriente (Antioquia e
Constantinopla), e no Egito, estabeleceram o dia 6 de janeiro […]", diz
ele.
"Com
o tempo, o dia 6 de janeiro passou a ser associado à visita dos Reis Magos e
acabou se tornando um dia de festa junto com o Natal. Os cristãos armênios e os
cristãos ortodoxos russos celebram atualmente o Natal nos dias 6 e 7 de
janeiro, respectivamente", completa.
Um
caso peculiar é o da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mais
conhecida como igreja dos mórmons. Em primeiro lugar porque possivelmente se
trata da única religião que diz conhecer, "inequivocadamente", a data
de nascimento de Jesus.
De
acordo com o fundador denominação religiosa, Joseph Smith (1805-1844), este dia
seria 6 de abril — na mesma data, a igreja foi inaugurada em 1830. Smith teria
recebido essa informação em uma revelação divina.
Por
outro lado, os mórmons celebram o Natal de 25 de dezembro por entenderem que
essa data foi a escolhida pelos primeiros missionários cristãos para a
celebração, ressignificando as festividades pagãs que já ocorriam no período.
North
pontua que uma dificuldade em se chegar a uma data exata ou aproximada do
nascimento de Jesus passa também pelo fato de que, na época, coexistiam
"calendários diferentes". "É difícil lançar âncora em mares
instáveis. Os primeiros cristãos tinham calendários judaico, romano e egípcio
que se baseavam nos ciclos da lua e do sol, respectivamente", afirma.
·
Do
festival pagão ao Papai Noel: camadas de significado
"Quando
olhamos de forma retrospectiva para a história do Natal, vemos que talvez seja
a festa cristã mais carregada de ressignificações ao longo do tempo",
comenta o teólogo Moraes.
Nesse
sentido, uma festa no auge do inverno no hemisfério norte remonta aos períodos
mais remotos da civilização. "É uma verdade que muito antes do Natal se
tornar Natal havia festivais de inverno em todo o hemisfério norte em torno do
que os calendários modernos agora chamam de 25 de dezembro", diz o
pesquisador e escritor Andy Thomas, em seu livro Christmas - A Short
History From Solstice to Santa (Natal - Uma breve história do
Solstício até o Natal, em tradução livre).
O
solstício de inverno era o momento da guinada rumo ao renascimento da primavera
seguinte.
"Para
os antigos, este era um momento importante, pois significava que podiam
definitivamente esperar que a vida se tornasse um pouco mais fácil de
sobreviver novamente", explica ele.
Os
antigos romanos celebravam a divindade do Sol Invencível nesta época. Mas não
era o único — e provavelmente a festança era gigante porque nela havia uma
conjunção de crenças.
Os
historiadores Mary Beard e John North afirmam, no livro Religions of
Rome (Religiões de Roma, em tradução livre), que a festa ao deus
Mitra, nesta época do ano, durava uma semana e era cheia de celebrações
familiares, boa comida e trocas de presentes.
Deus
da sabedoria, Mitra veio da mitologia persa e representava a vitória da luz
sobre a escuridão, do bem contra o mal.
Saturno
também foi ganhando espaço, em festa chamada de Saturnália. Deus da
agricultura, era natural que ele fosse lembrado nessa época de renascimento.
"A Saturnália envolvia muita bebida, festas e até inversão de papéis:
chefes de família poderiam servir refeições aos seus escravos neste dia, e não
o contrário", diz Thomas.
As
celebrações romanas chegaram a ser oficializadas em lei — pelo imperador Lúcio
Domício Aureliano (214-275), que decidiu institucionalizar o culto festivo ao
Sol Invictus.
Quando
o cristianismo foi incorporado por Roma, após os governos de Flávio Valério
Constantino (272-337) e Flávio Teodosio (346-395), o sol invencível acabou se
transformando em uma figura humana: Jesus.
Thomas
aponta que, "embora possam ser encontradas referências anteriores ao fato
de o 25 de dezembro ter sido adotado como o aniversário de Jesus [como uma
celebração em sua homenagem descrita como ocorrida no ano de 336]", o
primeiro reconhecimento de que ele havia "se tornado festa de pleno
direito" em Roma data de 354.
"Ele
[o Natal] não nasceu por imposição da Igreja, mas sim por práticas que estavam
ocorrendo de uma religiosidade que ganhava espaço. Foi-se consolidando um tipo
de festa com caráter missionário, de evangelização dos pagãos", explica
Moraes.
Nos
séculos seguintes, a festa ganharia elementos de outras tradições, como conta
Thomas. Da mitologia nórdica o voo de Odin pelos céus foi redesenhado como o
bom velhinho a bordo de um trenó voador. Aliás, a figura cristã de um bispo
bondoso que dava presentes ås crianças, São Nicolau, se tornou o Papai Noel tão
bem explorado pelo capitalismo contemporâneo — que conferiu a camada mais
moderna da festa.
Do
costume nórdico de sacrificar animais, pode ter origem à mesa farta, conforme
conjetura Thomas. E nobres europeus, em gestos de ostentação, consolidaram o
costume de dar presentes nessa época do ano.
E
tudo isso acabou ganhando novas cores no continente americano — mais
especificamente, na Nova York do século 19.
"Embora
o Natal fosse desaprovado pelos colonos puritanos, a partir de 1800 as
celebrações públicas nas ruas da América se tornaram tradição sazonal. Isso
parecia divertido para os celebrantes mais pobres, que podiam desfrutar
livremente de um período de desgoverno. Mas como a população nova-iorquina
saltou 10 vezes entre 1850 e 1900, os mais ricos passaram a temer que essas
festas de rua pudessem se transformar em tumultos", conta Thomas.
"Assim,
a elite passou a promover a ideia de um Natal doméstico, com troca de presentes
em casa. Famílias de classe média, felizes por manterem seus filhos longe do
que consideravam influências nocivas, adotaram imediatamente a ideia",
prossegue.
"Em
1867, comprar brinquedos já era um negócio grande o suficiente para que a
principal loja Macy's de Nova York ficasse aberta até meia-noite na véspera de
Natal. [No século 20,] Com a América do pós-guerra dando grande parte do tom
natalino mundial, dar presentes tornou-se a ordem do dia na maioria dos países
que celebram a festa."
Fonte: BBC News Brasil
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